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5 de junho de 2010
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06:00

Bairros invisíveis

Por
Sul 21
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O futuro da Capital depende do processo de revisão do Plano Diretor

Clarissa Pont

clarissapont@sul21.com.br

Porto Alegre é uma cidade cada vez mais vertical. Dados da Secretaria Municipal de Obras e Viação de Porto Alegre (Smov) apontam que em quatro meses – de dezembro de 2009 e março deste ano -, foram aprovados 1.289 projetos. Os números significam a liberação de mais de 1,5 milhão de metros quadrados a serem construídos.

Escondidos entre os novos prédios estão fragmentos de bairros que talvez sejam esquecidos. Em pequenas travessas pulsam o que resta de sobrados, as suas fachadas. Nos prédios da década de 50, que ainda enfeitam alguma rua do Bom Fim ou do Centro, ecos tímidos e charmosos de uma cidade que muda em ritmo acelerado.

Problemas de transporte, meio ambiente, serviços públicos, estética e segurança são apenas alguns exemplos do que acontece com uma cidade que não sabe pensar seu crescimento. Ou seja, a questão não é a verticalização em si, mas a forma como ela se estabelece. Em Porto Alegre, o processo de revisão do Plano Diretor começou em 2003 e o projeto de lei tramita há mais de seis meses na Câmara Municipal. Os parâmetros utilizados pelo Executivo para a liberação de tantas novas edificações levam em consideração o Plano Diretor atual e não a revisão. Esta pretendia incluir diminuição de alturas máximas e aumento de recuos em algumas regiões, além de definições em áreas de interesse cultural e área livre vegetada nos terrenos.

Agora, a matéria está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que deve encaminhar o texto ao Executivo na próxima semana. A expectativa do presidente da comissão, vereador Pedro Ruas (P-Sol), era finalizar a apreciação da matéria na semana que passou. O vereador Reginaldo Pujol, do DEM, responsável pelo parecer da CCJ, ainda está avaliando o projeto e prevê finalizar sua análise até a próxima terça-feira. Ele recebeu a matéria na quarta-feira passada e já identificou três problemas a serem discutidos pela CCJ. “Uma emenda enfrentou determinado assunto com um tipo de redação e em outra emenda, o mesmo tema foi enfrentado de outra forma”, exemplifica.

No entanto, especialistas afirmam que o Plano Diretor tem vivido de exceções à lei, o que permitiu o boom imobiliário e gerou debates e manifestações. No dia 24 de maio, o Jornal do Comércio publicou entrevista que deu visibilidade ao assunto. Na matéria, Pujol, um dos mais influentes parlamentares durante a votação da revisão do Plano Diretor de Porto Alegre na Câmara Municipal, discordou que exista qualquer relação entre a demora de seis meses para a redação do texto final e eventuais interesses em aprovar empreendimentos com o atual regime urbanístico.

Segundo ele, a liberação de um grande volume de projetos é normal para o tamanho da cidade. E observa que os novos índices construtivos terão reflexos diferenciados nas várias regiões. “Em alguns bairros, as alturas dos prédios serão restringidas e, em outros, estimuladas”, salientou. O Plano Diretor deve definir as áreas que podem ser adensadas, com edifícios de maior altura, as áreas que devem permanecer com média ou baixa densidade, e aquelas áreas que não devem ser urbanizadas, tais como as áreas de preservação permanente.

Para Daniela Tolfo, da ONG Cidade, apesar dos sete anos de debates, pouco se avançou. “O trabalho mais atual sobre o assunto é uma publicação nossa, na qual tentamos desvendar estas questões”. O documento é a 17ª edição dos Cadernos da Cidade: “A participação na revisão dos Planos Diretores”. Segundo a publicação, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) previu, por exemplo, no artigo 36, a realização de uma Conferência de Avaliação do Plano Diretor a cada gestão administrativa. A primeira aconteceu no terceiro ano de aplicação do Plano, em 2003. “Não se tem notícia, ainda, da realização de outra Conferência. Desta forma, o exame que aqui se propõe baseia-se no conteúdo da 1ª Conferência, partindo do pressuposto da sua validade”, avalia o documento.

“O projeto de lei não propõe a redução da densidade urbana, mantendo-se a densidade populacional prevista no PDDUA, e, quanto à densidade construtiva, ao mesmo tempo em que propõe a redução das alturas no regime volumétrico, mantém inalterados os índices de aproveitamento, o que tem como resultado a manutenção da densidade construtiva. Por fim, pode-se afirmar que o conteúdo da proposta de revisão não contempla integralmente as resoluções da 1ª Conferência de Avaliação do PDDUA relativas ao tema, apesar de ter, parcialmente, externado a intenção de reduzir a altura dos prédios, e, por consequência, reduzir a densidade urbana”, conclui o texto do Cadernos da Cidade.

“O ambiente natural está sendo dilapidado”

“Há muito tempo a cidade deixou de ser sustentável, e nossos filhos e netos vão pagar um preço bem alto pelo que se faz agora”, concorda um dos mais atuantes arquitetos e urbanistas no tema, Nestor Ibraim Nadruz.  Segundo ele, as construtoras se apropriaram da cidade: “O que acontece hoje é a contramão das necessidades. A primeira delas é a questão ambiental. O ambiente natural está sendo dilapidado estruturalmente. E o responsável por isso é o homem, o homem empresário que transformou todas as benesses urbanas em mercadoria”.

“O primeiro Plano Diretor não teve participação popular também, mas a cidade era pensada para um bem coletivo, e não para negócios. Os atuais são de interesse das classes dominantes, que ingressaram com gente deles na prefeitura. Hoje, o Conselho do Plano Diretor está na mão do Sindicato da Construção Civil e nem as leis são mais obedecidas. A idéia é aprovar tudo antes e protelar ao máximo a provação do Plano Diretor. Você coloque na matéria quantos edifícios foram feitos e aprovados com tamanha rapidez nos últimos tempos”, sugere Nadruz.

Sem simplificações

Para Maria Etelvina Bergamaschi Guimaraens, responsável pelo caderno da ONG Cidade, a questão não se encerra em simplificações. “Penso que tratar deste tema com seriedade hoje é essencial. Tenho visto e ouvido afirmações muito simplistas. O furo é mais embaixo, e vem de muito tempo”, garante a especialista em Advocacia Municipal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestre em Planejamento Urbano pela Faculdade de Arquitetura da mesma Universidade.

“Podemos dizer que tivemos, até 1959, um crescimento sem regulação específica sobre o uso do solo. Podia construir tudo, desde que fosse proprietário. Assim, o valor dos imóveis estava muito mais relacionado ao ponto do que ao direito de construir propriamente dito”. Segundo Maria Etelvina, exemplo disso é a construção dos grandes prédios no centro da cidade, em especial na Avenida Borges de Medeiros, quando não havia limite de altura. “A partir de 1959, entra em vigor o primeiro plano diretor da cidade, com um regramento bastante permissivo. Era possível construir prédios altos, porém existiam limites de altura relacionados à largura das vias. Um exemplo, no Menino Deus, é a Avenida Ganzo, uma das ruas mais largas do bairro, onde foi construído um prédio muito alto, que até hoje se destaca”.

Em 1979, é aprovado o 1º Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU). “Este plano reduziu muito as alturas e a capacidade de construção nos terrenos, e demorou cerca de seis meses para entrar em vigor. Isto fez com que os escritórios de arquitetura apresentassem um número enorme de projetos para garantir o direito a construir o que era permitido pela lei anterior. Não trabalhava ainda com o assunto, mas lembro de amigos – estudantes de arquitetura que trabalhavam em escritórios da cidade – que passavam as noites sobre projetos para poder apresentá-los na prefeitura antes da entrada em vigor do então novo plano”, relembra.

O 1º PDDU vigora entre 1979 e 1987, até a gestão municipal de Alceu Collares, quando foi aprovada uma lei que aumentou a capacidade construtiva da cidade. “Não voltou à situação anterior a 1979, mas atendeu em grande parte os interesses imobiliários. Esta modificação vale até 1999, quando é aprovado o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental”. O Plano é sancionado em  dezembro de 1999 e entra em vigor em março de 2000. Mais uma vez, acontece uma corrida para apresentação de projetos. “A reação da população foi forte e inicia-se em 2003 o processo de revisão do PDDUA. Em 2003, é realizada a 1ª Conferência que determina que se revisem os limites de altura em toda a cidade, com a finalidade de garantir qualidade de vida e todas as questões envolvidas”.

Nos Moinhos de Vento

A revisão já era prevista no PDDUA original, mas ganhou força com o surgimento de um forte movimento comunitário, iniciado no bairro Moinhos de Vento, onde amplos terrenos com casarões se tornaram o principal alvo, para dar lugar a espigões de 20 andares. “Quando o prefeito José Fogaça assumiu em 2005, retirou os projetos de tramitação. Um novo processo de revisão iniciou em 2007 e culminou com a remessa de Projeto de Lei em 2008, aprovado no final de 2009. Acontece que o governo apresentou um mapa afirmando a redução das alturas dos prédios, o qual, parece, foi aprovado. Acontece, também, que este projeto, que foi aprovado no final do ano passado, até hoje não tem a redação final. Não é de admirar o número de projetos aprovados neste período”, afirma Maria Etelvina com o conhecimento de quem foi presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico-Cultural de Porto Alegre de 2002 a 2005 e pesquisadora da Rede de Avaliação de Planos Diretores Participativos, criada pelo Ministério das Cidades.

Os dados apresentados por Maria Etelvina mostram também um caso exemplar, de como o poder público pode frustrar as iniciativas da cidadania, atendendo o interesse de minorias organizadas. Quando perguntada quem é o responsável, a pesquisadora indica que para tal questão não existem respostas simples. “Seria o governo atual, que retirou os projetos, demorou muito para retomar o assunto e promoveu um processo onde a representatividade e a legitimidade da participação popular são questionáveis? Ou os governos anteriores, que promoveram um debate entre 1993 a 1999 que resultou na aprovação de um plano que aumentou a capacidade construtiva dos terrenos? O Conselho é ‘vendido’? Não sei se é ‘vendido’, mas o que se pode afirmar é que a representação majoritária defende os interesses da Construção Civil e aprova os projetos nesse sentido. Ou finalmente a Câmara Municipal, que até agora não enviou ao prefeito a redação final para sanção?”, pergunta-se.

A resposta de Maria Etelvina é que, com a revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre, busque-se afirmar na cidade um modelo de planejamento cuja escolha de prioridades e instrumentos não seja pautada pela valorização imobiliária. “Ampliar o potencial construtivo dos terrenos, bem como expulsar das áreas valorizadas as vilas populares, ou criminalizar vendedores ambulantes, carroceiros, flanelinhas, moradores de rua constituem formas, como diria David Harvey, de acumulação por despossessão. Lutar contra este modelo envolve não apenas a defesa de direitos humanos básicos, como é o caso das vilas em que se instalou o sistema corta-vazão (interrupção automática do fornecimento de água ao se atingir a quota mensal correspondente à tarifa social), mas implica também uma estratégia política e econômica para provar que outra cidade é possível”, explica na edição organizada por ela dos Cadernos da Cidade.

O condomínio fechado, o transporte em automóveis particulares, a saúde privada, a escola privada, o clube social particular, o shopping cercado de seguranças são indícios de um desenvolvimento urbano que é social, econômica e ambientalmente predatório e insustentável. “Garantir os espaços populares enquanto áreas especiais de interesse social, preservar e recuperar o meio-ambiente e a qualidade de vida que ainda nos resta, assegurar a efetiva discussão pública dos mega-projetos imobiliários que vão afetar a vida de todos em benefício de uns poucos, impedir a manipulação da institucionalidade democráticoparticipativa tão duramente conquistada são ações que precisam caminhar juntas”, resume.


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