
Luciano Velleda
Embora os casos graves causados pelo novo coronavírus não escolham raça, etnia ou classe social, é consenso que a atual crise tem maior impacto nas populações mais vulneráveis, tradicionalmente alijadas de bons serviços de saúde e necessidades básicas de subsistência. A própria estratégia de isolamento social, importante para reduzir a propagação do vírus, acaba afetando particularmente as pessoas mais pobres, com maior dificuldade em ganhar seu sustento. Nesse contexto, ações de solidariedade têm crescido nas periferias de Porto Alegre, com a intenção de minimizar os impactos decorrentes da pandemia que assola o mundo.
Na Vila Cruzeiro, o líder comunitário Cleber Moraes da Silva, de 35 anos, logo nos primeiros dias da implementação das medidas de isolamento social, começou a rodar pela comunidade com um carro de som para divulgar a importância da ação. Agir um prol dos moradores da Cruzeiro não é novidade para Silva. Há tempos que ele e colegas, por meio dos coletivos Periferia Move o Mundo e a Frente de Favela Brasil, arrecadam alimentos para instituições assistenciais da região, trabalho que os tornou referência no bairro. Logo após as primeiras medidas adotadas pela Prefeitura de Porto Alegre relativas ao fechamento do comércio e a restrição na circulação de pessoas, o líder comunitário diz que a falta de comida se fez realidade na Cruzeiro. Segundo ele, desmoronou aquela ideia do “falso empreendedor” — pessoas simples que se obrigam a praticar o pequeno comércio como modo de sobrevivência.
Por meio de uma enfermeira, Cleber Moraes da Silva entrou em contato com o projeto Rede de Solidariedade com e pela comunidade contra o COVID-19, desenvolvido por cerca de 30 estudantes e 60 professores e pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O projeto auxilia as comunidades do Morro Santana, Glória, Cruzeiro e Cristal no enfrentamento ao novo coronavírus. Ao todo, são 12 cursos envolvidos na iniciativa de produzir álcool em gel, itens de higiene, máscaras de proteção, orientação em saúde e arrecadação de alimentos: Administração, Arquitetura, Ciências Sociais ,Enfermagem, Educação Física, Farmácia, Fonoaudiologia, Medicina Veterinária, Odontologia, Psicologia e Saúde Coletiva e Serviço Social.
“Tem muita gente mobilizada trabalhando nisso tudo”, diz o líder comunitário. Desde então, a arrecadação de alimentos cresceu, impulsionada pela ideia do “nós por nós”. Silva afirma não saber qual a situação de pessoas contaminadas ou sob suspeita de covid-19 na Cruzeiro, até mesmo pela falta de testes para a população.
O que ele sabe é que a estratégia de isolamento social não tem funcionado bem. E uma das razões, avalia, é tão simples quanto impactante: o alto índice de analfabetismo tem dificultado a compreensão de pessoas da comunidade. “O isolamento está muito baixo, pela forma como a informação chega. As pessoas que não são alfabetizadas, como elas vão interpretar essas informações?”, questiona, reconhecendo que a conclusão foi inesperada para ele mesmo. “São coisas mínimas, mas que contribuem para dificultar o isolamento.”

Fome e ruas movimentadas
O cenário de necessidades básicas e a pouca adesão ao isolamento social se repete na Restinga, o grande e populoso bairro na zona sul de Porto Alegre. Por lá, Cristiane Machado Marques, de 34 anos, coordenadora da Casa Emancipa, tem articulado um movimento de entrega de comida e cestas básicas para pessoas em situação de rua e famílias carentes. A ação ocorre há quatro sábados. No primeiro, foram 135 “quentinhas” entregues, quantidade que subiu para 200 no sábado seguinte, depois 250 e novamente 200 quentinhas no último sábado (18).
As doações tem sido entregues na própria casa de Cristiane, onde também funciona a cozinha, pois há pessoas idosas na sede da Casa Emancipa Restinga e o local tem sido evitado. A cada sábado, ela e outras colegas distribuem o alimento na esquina da residência, e depois saem para entregar mais comida em ocupações habitacionais existentes no bairro.
“O isolamento funciona muito pouco. As pessoas estão na rua, quase normal. Quanto mais tempo em casa, mais fome”, explica Cristiane. Para ela, a necessidade de ir à rua e ganhar o sustento, prejudica a estratégia do isolamento. Nascida e criada na Restinga, Cristiane coordena, há três anos, a Casa Emancipa Restinga. Antes da covid-19 impor novas dificuldades à comunidade já carente, a instituição oferecia uma série de cursos, incluindo artes e esportes. “Estamos chegando em locais que eu nem tinha noção que existia, uma situação de miséria mesmo, bastante criança com fome”, relata.
Com ou sem o novo coronavírus, Cristiane diz que a ausência do poder público segue sendo a norma na região. “Não vejo nada, sinceramente. Não vejo atuação nenhuma da Prefeitura sobre a covid-19, segue igual”, conta Cristiane, tão igual quanto as filas nos bancos e lotéricas do bairro.
A ausência do poder público também é a regra na Cruzeiro, segundo o líder comunitário Cleber Moraes da Silva. Ele destaca que o Estado, quando aparece, costuma ser na forma de repressão. E, agora, não se apresenta. “É muito pouco o que o governo faz. O governo continua chegando da forma que sempre chegou, e a gente precisa que seja diferente.”
Em nota, a Prefeitura de Porto Alegre afirma ter “preocupação com os cidadãos que residem nas áreas vulneráveis da Capital”, reconhecendo que, em algumas situações, “são famílias numerosas que vivem em pequenas casas e enfrentam desafios de saúde e higiene”.
“Os Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) das regiões seguem com atendimento para população com informações da assistência social e cestas básicas, além de entregar material com orientações sobre a covid-19 nas unidades. O serviço de Abordagem Social também continua funcionando, recebendo as demandas por telefone 156 e acompanhando casos direcionados para o auxílio moradia”, diz o governo municipal.
A Prefeitura destaca que, no último dia 20, houve a inauguração de mais um restaurante do projeto Prato Alegre, com alimentação gratuita para pessoas em vulnerabilidade social. “O Prato Alegre da Restinga, na zona sul, distribui 100 refeições por dia, de segunda a sexta-feira, no horário do almoço. Por fim, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) já entregou 587 cestas básicas na Vila Cruzeiro e 512 cestas básicas na Restinga no período da pandemia”, explica o executivo municipal.
Doações
Quem quiser doar alimentos para os moradores da Vila Cruzeiro, basta entrar em contato com o coletivo A Periferia Move o Mundo, por meio dos telefones (51) 99310-97 24 e (51) 3232-25 89. Outra opção é entregar os alimentos diretamente nos pontos de arrecadação: Rua Edson Pires, 33 (Sede do coletivo); rede de supermercados Anuar Pezzi; e Super Frare (Rua Corrêa Lima, 1210, bairro Santa Tereza). Para colaborar com o trabalho da Casa Emancipa Restinga, o contato pode ser feito diretamente com a coordenadora Cristiane Machado, pelo telefone (51) 98540-9267.