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6 de agosto de 2015
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20:36

Entenda o que aconteceria em caso de intervenção federal no Estado

Por
Luís Gomes
luisgomes@sul21.com.br
Sartori teve três reuniões em sequência na noite desta terça. Primeiro, com Teori Zavascki e depois com os ministros Celso de Mello e Roberto Barroso. (Foto: Divulgação/STF)
Sartori teve três reuniões em sequência na noite desta terça. Primeiro, com Teori Zavascki e depois com os ministros Celso de Mello e Roberto Barroso. (Foto: Divulgação/STF)

Luís Eduardo Gomes

Com o atraso nos pagamentos dos servidores públicos do Rio Grande do Sul, começou a ser ventilada a possibilidade de intervenção federal no governo do Estado, caso o Executivo estadual descumpra uma decisão judicial, ainda em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), ordenando o pagamento do funcionalismo. Apesar de pouco provável, a possibilidade de intervenção motivou uma viagem às pressas do governador José Ivo Sartori à Brasília para conversar com alguns ministros do STF sobre a situação financeira do Estado.

Mas, afinal, o que é a intervenção federal em um estado e quais as consequências disso? Entenda a seguir.

Intervenção federal está prevista na Constituição de 1988

A intervenção federal é uma medida de caráter excepcional de supressão temporária da autonomia de um ente federativo. Tem por objetivo preservar a soberania do Estado e as autonomias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

É um instrumento condicionado a hipóteses previstas na Constituição Federal de 1988, como manter a integridade nacional, repelir invasão estrangeira, garantir a independência dos poderes, garantir a ordem pública, reordenar as finanças de um ente, prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial, entre outras.

Através do secretário da Fazenda, Giovani Feltes, o governo anunciou o parcelamento do funcionalismo na sexta-passada | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Através do secretário da Fazenda, Giovani Feltes, o governo anunciou o parcelamento do funcionalismo na sexta-passada | Foto: Guilherme Santos/Sul21

De acordo com o professor Eduardo Kroeff Machado Carrion, titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP), a hipótese que poderia ser alegada para se requisitar a intervenção federal no Rio Grande do Sul está prevista no Inciso IV do Art. 34 da Constituição Federal, que fala em “prover a execução de ordem ou decisão judicial”. No caso, a eventual decisão judicial do STF sobre o pagamento de salários.

Carrion explica que, nesta hipótese, a intervenção federal é autorizada por meio de um decreto da presidente da República e depende de requisição do STF. Para valer, o decreto presidencial também precisaria ser apreciado pelo Congresso Nacional.

Contudo, esta etapa seria dispensada caso a intervenção federal limite-se a uma medida que “suspenda a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade”. Isto é, caso a ação federal resolva o problema gerado pelo descumprimento da decisão judicial, o que, no caso do RS, seria o pagamento do funcionalismo.

Quem seria o interventor

O decreto de intervenção não implica necessariamente que o governo nomeie um interventor, mas essa é uma possibilidade. Caso isso venha acontecer, o governador do Estado é afastado provisoriamente – até que o problema seja solucionado -, e cabe à União especificar “a amplitude, o prazo e as condições de execução” (§ 1º. art. 36º) das funções do interventor.

A Constituição não esclarece com precisão quem seria o interventor, mas indica que ele deve ser servidor federal. Segundo Carrion, o interventor fica a critério do presidente da República, podendo ser uma liderança política. “Poderia ser alguma liderança acima de qualquer suspeita, alguém com trânsito, eventualmente alguém do Poder Judiciário”, avalia o professor.

“A rigor, se interpretássemos literalmente a Constituição, haveria inúmeras hipóteses de intervenção da União em estados membros ou de estados membros em seus municípios”

Contexto político não recomenda intervenção 

O professor Carrion salienta que esta é uma medida eminentemente política, por isso envolve todo um período de negociação e pressões que dificilmente levariam a uma intervenção de fato (apesar de pedidos terem sido feitos, o expediente nunca foi aprovado desde a promulgação da Constituição de 1988).

“A rigor, se interpretássemos literalmente a Constituição, haveria inúmeras hipóteses de intervenção da União em estados membros ou de estados membros em seus municípios. Levando em conta a excepcionalidade do instituto da intervenção, tende haver muita cautela e prudência na sua eventual aplicação. Antes de tudo, cabe uma negociação política em que eventualmente há um jogo de pressões, como, por exemplo, a ameaça de intervenção”, afirma Carrion.

Na última segunda-feira, o STF começou a apreciar o tema do pagamento do funcionalismo gaúcho, mas o julgamento foi suspenso após o ministro Teori Zavascki pedir vistas do processo. Antes desse pedido, o presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, alertou que o governo gaúcho poderia até sofrer uma intervenção pelo descumprimento da decisão da Justiça.

“O ministro Teori apenas convocou o governador do Estado. Em razão dessa ação que foi feita para forçar o governador a pagar as remunerações, três ministros já tinham se manifestados contrariamente ao governador. O ministro segurou. É todo um clima de tentar resolver qual é o problema”, diz Carrion.

Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Servidores protestaram na última segunda-feira (3) contra o parcelamento | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

O professor avalia que a possibilidade de intervenção é ainda mais reduzida nesse momento devido ao cenário político atual do país.

“Até mesmo pela situação política que o País atravessa, dificilmente haveria a decretação de uma intervenção, o que tumultuaria ainda mais o quadro político. Daí a necessidade cada vez maior do diálogo entre os poderes e do Executivo estadual com o seu funcionalismo”, afirmou.

Carrion ainda salientou que uma eventual intervenção teria como consequência a impossibilidade de o Congresso Nacional fazer qualquer reforma na Constituição Federal durante o período em que ela durar. Isto é, nenhuma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) poderia ser apreciada, votada ou sancionada no período. “Veja o tumulto que se criaria”, salientou Carrion.

Por isso, a possibilidade mais provável é que essa questão se arraste por mais alguns meses, “dando fôlego” para que o governador Sartori solucione o problema em questão: o atraso nos salários. Isso poderia ocorrer através de uma demora do ministro Teori em emitir seu posicionamento. “Ele vai deixar meio engavetado. Aqui entra um pouco do realismo político”, prevê Carrion.

Posteriormente à decisão final do STF, o governo do Estado teria um período para cumprir a decisão. Em caso de descumprimento de fato, o Supremo teria que requisitar a intervenção. Aí entraria mais uma margem para segurar por mais algumas semanas a decisão sobre o tema e mais um período de “fôlego” ao governo.

Nesta quinta-feira, o ex-governador Tarso Genro, que também foi ministro da Justiça, se posicionou contrariamente sobre a possibilidade de intervenção. “Intervenção no Estado por motivos de crise financeira não só nada resolve, mas desmoraliza a escolha soberana no processo eleitoral”, disse.

Ele salientou que uma intervenção federal só poderia ser eficaz caso levasse à suspensão da dívida com a União sem que o Estado fosse penalizado por isso.” Mas isso, se o Supremo quiser permitir, pode permitir ao governo eleito, não precisa intervenção. Aliás, com interpretação viável da Lei que reduziu o valor final da dívida, o Supremo pode reduzir as prestações mensais imediatamente”, afirmou.

“Não esqueçamos, o Supremo pode tudo. Ele, pelo princípio da razoabilidade, se pode intervir, pode também tomar decisão que evite intervenção, protegendo as finanças estaduais. Como? Se os salários são alimentares, e são, o STF pode sustar o pagamento da dívida naquele valor para cumprir esta obrigação alimentar. Enfim, intervenção é a pior solução e “absolve” a União dos juros escorchantes que ela mesma impôs aos Estados, há décadas”, concluiu o ex-governador.

STF julgou o pedido de intervenção federal no Distrito Federal em 2010 | Foto: Divulgação/STF
STF julgou o pedido de intervenção federal no Distrito Federal em 2010 | Foto: Divulgação/STF

Precedentes

A intervenção federal é um instrumento legalmente previsto desde a Constituição de 1891. Nas primeiras décadas da Primeira República, era utilizado para a resolução de conflitos políticos e foi realizada em vários estados, como Goiás, Pernambuco, Sergipe, Mato Grosso, Ceará, Rio de Janeiro, Bahia, entre outros. A intervenção também foi utilizada durante a primeira Era Vargas até a Constituição de 1946.

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, porém, esse instrumento nunca mais foi utilizado, ainda que diversos pedidos de intervenção tenham sido feitos.

Em 2002, o então ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, pediu uma intervenção federal no Espírito Santo devido à situação de violência no Estado e às ligações dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário com o crime organizado. Nessa época, o Estado também devia cerca de R$ 300 milhões ao funcionalismo. Contudo, o pedido foi engavetado pelo então procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro.

Em 2010, o STF votou contra o pedido de intervenção no Distrito Federal requisitado pelo então procurador-geral Roberto Gurgel. O motivo para o pedido foram as denúncias de corrupção, formação de quadrilha, desvio de verbas públicas e fraude em licitações no DF, um escândalo que resultou nas renúncias do governador José Roberto Arruda, e do vice-governador, Paulo Octávio.

Gurgel pediu intervenção para “resgatar a normalidade institucional e a própria credibilidade das instituições e dos administradores públicos no Distrito Federal”, mas o STF considerou que a ordem já tinha sido restabelecida no DF.


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