
O episódio desta semana do podcast De Poa, uma parceria do Sul21 com a Cubo Play, recebe Heverton Lacerda, presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Ele conversa com Luís Eduardo Gomes e Luciano Velleda sobre como o ambientalismo gaúcho analisa as enchentes de maio no Rio Grande do Sul, a cobertura jornalística sobre as questões ambientais relacionadas à tragédia e o papel do movimento daqui para frente.
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“Quando começaram aquelas enchentes, o pessoal começou a sair de casa e começou aquele horror todo que a gente acompanhou no início, nós dissemos: ‘olha só, tudo que foi dito há 50 anos, e pela ciência há mais de 30 anos, pelo menos, [está acontecendo]’. Quando eu falo ciência, o meu pensamento está no IPCC, em especial, o painel intergovernamental para mudanças climáticas. Então, tudo isso já está muito bem desenhado e está se concretizando exatamente como o painel dizia. O ano 2024 está no 6º relatório do IPCC que iria começar a ter essas enchentes em 2024, no máximo em 2025. Cravou. Então, quando a gente via isso, assim, governantes sabem o que está acontecendo. Não existe um governante que não saiba. Prefeito pode não saber? Não sei. Como é que um prefeito não vai saber o que estão falando sobre previsão climática? Não é previsão meteorológica, previsão climática. Acontece, que no Estado do Rio Grande do Sul, o governador não deu ouvido sequer para a previsão meteorológica que falou das chuvas. Isso nas primeiras, no final do ano passado. Depois, ele se deu conta do que aconteceu, correu, botou um colete lá, ele foi fazer as cenas. Mais cena do que trabalha em si, na minha opinião. Bom, mas quando a gente diz: ‘olha, não foi avisado’. Não é da questão meteorológica, é não foi avisado das questões climáticas. Ele pode dizer que não foi avisado das questões climáticas? Alguém poderia não saber, se Porto Alegre é o berço do ambientalismo mundial?”, questiona.
O De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.
Sul21 — Heverton, como presidente da Agapan, como é que tu viu o que aconteceu no Rio Grande do Sul, as enchentes de maio e a até mesmo as do ano passado?
Heverton Lacerda: No dia 27 de abril, quando o Agapan completou 53 anos. Nós fizemos viagem com os associados até Rio Pardo, que é onde está enterrado o Lutzemberger, no Rincão Gaia. O pessoal, às vezes, pensa que em Pantano Grande, mas é do lado de Pantano, já na divisa ali com o Rio Pardo. E, ali, nós fomos no túmulo dele, fizemos uma homenagem, cantamos parabéns para a Agapan. É um espaço que ele é dirigido por uma das filhas do Lutz. E ali já estava começando a chuva. O tempo já estava úmido. Nós voltamos, inclusive, com chuva para Porto Alegre. E quando começaram aquelas enchentes, o pessoal começou a sair de casa e começou aquele horror todo que a gente acompanhou no início, nós dissemos: ‘olha só, tudo que foi dito há 50 anos, e pela ciência há mais de 30 anos, pelo menos, [está acontecendo]’. Quando eu falo ciência, o meu pensamento está no IPCC, em especial, o painel intergovernamental para mudanças climáticas. Então, tudo isso já está muito bem desenhado e está se concretizando exatamente como o painel dizia. O ano 2024 está no 6º relatório do IPCC que iria começar a ter essas enchentes em 2024, no máximo em 2025. Cravou. Então, quando a gente via isso, assim, governantes sabem o que está acontecendo. Não existe um governante que não saiba. Prefeito pode não saber? Não sei. Como é que um prefeito não vai saber o que estão falando sobre previsão climática? Não é previsão meteorológica, previsão climática. Acontece, que no Estado do Rio Grande do Sul, o governador não deu ouvido sequer para a previsão meteorológica que falou das chuvas. Isso nas primeiras, no final do ano passado. Depois, ele se deu conta do que aconteceu, correu, botou um colete lá, ele foi fazer as cenas. Mais cena do que trabalha em si, na minha opinião. Bom, mas quando a gente diz: ‘olha, não foi avisado’. Não é da questão meteorológica, é não foi avisado das questões climáticas. Ele pode dizer que não foi avisado das questões climáticas? Alguém poderia não saber, se Porto Alegre é o berço do ambientalismo mundial?
Eu sempre lembro para o pessoal que não conhece bem o quanto é importante isso, nós temos, aqui no Rio Grande do Sul, a figura do Henrique Roessler, que dá nome à Fepam, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental. No inicio dos anos 60, o Roessler escrevia no jornal Correio do Povo, crônicas semanais sobre essa pauta ambiental. Embora ele não fosse um jornalista, ele escrevia dentro de um jornal. Já mostra o quanto a imprensa tem a importância nessa pauta. Depois do Roessler, nós tivemos aqui a própria Agapan, em 1971, falando sobre essa pauta. A Agapan é fundada em abril de 71, antes do Greenpeace, que foi fundado em Vancouver, no Canadá , em setembro. Antes disso, o pessoal às vezes confunde um pouquinho, tinha a WWF, que é de 1961, mas ela não era uma entidade ambientalista. Era um fundo para a vida natural, depois eles foram mudando o nome e se tornou uma grandes entidades que atua nessa área. Mas não era uma entidade ambientalista.
Sul21 — A Agapan é a primeira do Brasil?
Heverton Lacerda: O próprio Roessler chegou a afundar uma UPN, a União Protetora da Natureza. O que acontece? O Roessler era um contador, então para ele atuar, pediu uma permissão para o governo central para atuar como fiscal de floresta. Aí, os políticos da época contestaram isso, porque, se ele não era servidor público, não poderia estar fazendo aquela fiscalização. Então, para isso, ele criou a UPN, que foi uma primeira entidade. Mas ela só ficou atuante com ele, era ele durante a vida dele. Enquanto uma entidade ambientalista como a gente conhece hoje do porte da Agapan, sim, ela é a primeira, e a primeira em atividade até hoje.
Sul21 — Heverton, é difícil explicar o que aconteceu no Rio Grande do Sul se tu sair um pouco da superfície. O fácil é: choveu muito e alagou. Mas, se a gente sair um pouquinho disto, explicar que a chuva foi concentrada, questões que foram explicadas por especialistas em programas anteriores, como é que uma entidade ambientalista faz essa discussão? Como se tenta trazer um assunto que é complexo, que envolve vários fatores, numa linguagem acessível?
Heverton Lacerda: Eu vou dar um exemplo, num programa que teve Beto Moesch e o Francisco Milanes, nós mesmos pegamos ali, quando a gente viu um ponto importante da explicação do Milanes sobre a retirada das árvores da mata ciliar, na beira dos rios, a gente pensou: ‘pô, esse ponto é importante’. Nós fizemos um corte por conta mesmo e largando. Aquele corte ele bombou. Eu acho que os cortes são uma boa ferramenta hoje em dia, para Tik Tok, inclusive. Por quê? Num bate-papo como esse, se nós temos tempo para acompanhar, o ouvinte está nos assistindo, ele fica e acompanha o nosso raciocínio. Se não tem tempo, tu precisa pegar um corte de um ponto que nós falamos algo daqui até ali numa edição e largar aquele ponto para a maioria da população, que hoje em dia está sempre carregado de conteúdo. A gente tem que convir isso também.
A pauta ambiental é um tema difícil. Se o tema é difícil, se o tema é ruim, é negativo, ele me traz dor, eu não vou acompanhar por muito tempo uma coisa que eu não consigo entender direito. Por exemplo, um projeto de lei que permite a construção de barragens dentro de área de preservação permanente. O que é isso para o povo leigo? A gente diz: ‘olha, isso aí vai destruir essa área de preservação permanente, que já é uma pequena parte dentro da propriedade, e isso vai causar futuramente um problema que vai mexer no microclima dessa região da propriedade’. Várias propriedades com suas áreas de preservação permanente impactadas a partir dessa lei que entrou para o Código Ambiental. Mas isso é uma coisa complexa, como é que eu desenho isso? Eu faço um corte para deixar isso aí em 10 segundos, 20 segundos e a pessoa entender?
Sul21 — Infelizmente, agora, principalmente as populações das margem do Rio Taquari e ali no Vale, a gente tem uma região do Rio Grande do Sul que entende o que significa tu não ter a mata ciliar para segurar a água e que, sem ela, encontra um campo limpo para correr e correr com força. Agora, esse é um desafio da pauta ambiental, a comunicação. No caso da nossa tragédia, pode ser talvez uma oportunidade para isso mudar um pouco?
Heverton Lacerda: Eu acho que a oportunidade pode, sem dúvida nenhuma. Agora, nós vamos utilizar essa oportunidade? Será que realmente a população vai se dar conta? Mata ciliar. É verdade, você tem que explicar o que é mata ciliar, porque, quando a gente ouvisse pela primeira vez, pode até entender que ciliar tem a ver com cílios. Mas será que é isso mesmo? É borda de rio.
Sul21 — Ninguém faz essa associação.
Heverton Lacerda: Ninguém faz essa associação, você tem que explicar. Outra coisa que a gente tem que pensar? Por que que eu preciso proteger a mata ciliar? Por que eu não posso simplesmente tirar a mata ciliar que ela está atrapalhando a minha plantação de soja? E o resto da população que não tem essa propriedade, que vive numa outra cidade bem distante ou aqui em Porto Alegre e isso vai acontecer lá em Lajeado, na volta do Taquari? Por que que eu tenho que me preocupar com a mata ciliar de lá? Quando a gente começar a entender a complexidade das relações como os indígenas compreendem, quando eles compreendem que tudo está interligado e que nós somos parte da natureza, quando for dizer: ‘olha, quando tirar os cílios do rio, é tirar os meus cílios’. Se eu te dissesse: ‘tira os teus cílios’. Simplesmente, tira os teus cílios. Não, os meus cílios protegem a minha vida, a minha visão. Então, a mata ciliar é tua mata ciliar também, dos teus rios. Nós temos que perceber essa relação que a gente tem com a natureza, porque existe um afastamento. Nós estamos cada vez mais em lugares asfaltados, os nossos parques estão asfaltados, estão cimentados, estão concretados, querem tirar a árvore para botar a roda gigante, querem tirar espaço de grama, o pouco espaço que a gente tem, muitas pessoas moram em apartamento aqui em Porto Alegre, para botar um estacionamento com concreto também. Então, essa relação com a natureza é importante a gente voltar a ter isso, entender essa conexão que os indígenas nunca perderam, por mais que eles estejam impactados, mas eles têm essa noção. Isso eu acho que nós temos que trazer também, que o ambientalismo tenta trazer para a nossa população. O Roessler já tinha essa conexão, embora fosse um homem de origem alemã. Então, nós temos que manter essa conexão e aproveitar essa oportunidade na dor e mudar um pouco o nosso estilo de vida. Não voltar ao normal. Voltar a discutir coisas diferentes. Será que a gente vai usar o carro da mesma forma que a gente usava antes? ‘Ah, mas o que tem a ver com o uso de carro?’ Tem a ver, principalmente com a questão climática. A gente meio que separa as questões ecológica e climática, mas uma está relacionada a outra. No início da luta ambiental, era mais a questão ecológica, a questão dos rios, dos impactos dos agrotóxicos, da poluição, fauna, flora, ainda não se falava muito com a questão climática. Isso fica mais forte a partir dos anos 1990, a Eco 92. Ali, começam também os relatórios a mostrar o quanto que esse aquecimento do nível médio da temperatura da terra, que hoje está em 1,5º, o quanto que isso impactaria. E esse era o número o número atual do IPCC, que, se chegasse a 1,5º, nós iríamos ter grandes enchentes, secas e aumento das atividades extremas.
Sul21 — Chegamos?
Heverton Lacerda: Chegamos nisso. Estava previsto para 2024 a 2025. Demoramos 250, 260 anos, para chegar nesse 1,5º acima da temperatura que é tida como a temperatura do parâmetro, pré-Revolução Industrial, que seria o zero, o equilíbrio. Estamos 1,5º acima disso, na média. Para chegar a dois, talvez não leve 100 anos, talvez não leve 20 anos. E as consequências podem aumentar muito, segundo o próprio IPCC. As alterações não são no grau, é no décimo de grau. Não é 1,5 ou 2, é 1,6, 1,7, 1,8, 1,9, até chegar 2. E tem cenários apontados até para 3º, que seria o pior. Já vi para 4º também, mas esse aí quase nem se fala, seria o mundo entrar em colapso total e acabar com a vida no planeta. Mas, no dois, seria muito pior do que a gente viu aqui e, no três, estaríamos falando inclusive de níveis dos oceanos subindo. Como já disse o professor Carlos Nobre, aqui em Porto Alegre, o Guaíba iria virar mar. Se nós vimos uma enchente agora de rios e o problema que ela trouxe, imagina se nós chegarmos a ter uma enchente de oceanos. É quase inimaginável a gente trazer um pensamento desses. O que seria o oceano entrando lá pela Lagoa dos Patos e vindo água de lá pra cá? Seria coisa de filme.
Sul21 — Mas é uma possibilidade?
Heverton Lacerda — Quem vai dizer que não.