
O episódio desta semana do podcast De Poa, uma parceria do Sul21 com a Cubo Play, recebe o professor Lúcio Almeida, fundador do Núcleo de Pesquisa Antirracista da UFRGS, atualmente professor das universidades La Salle, Dom Bosco e PUCRS, e organizador dos livros o “Estado de Direito e a Mulher Negra: desafios para enfrentar o racismo cotidiano” e “Racismo acadêmico no Brasil: desafios para um direito antidiscriminatório”. Ele conversa com Luís Eduardo Gomes sobre a questão racial e o combate ao racismo em Porto Alegre.
Questionado sobre quais os elementos que deveriam compor um projeto para o enfrentamento do racismo na cidade, ele pontua que isso passa, principalmente, pelas políticas universalistas, como educação, saúde e segurança, e apresenta uma visão crítica sobre o que considera ser um “antirracismo de mercado”.
“Nós não estamos conseguindo fazer uma comunicação adequada com a massa da população preta dessa cidade. Logo, não vejo saída, nem a médio, nem a longo prazo. Há de se definir bem um projeto. Por exemplo, eu ataco muito o antirracismo de mercado. Para mim, o antirracismo de mercado é algo antagônico. Só quem realmente não estudou o que está por trás do racismo vai acreditar que o mercado vai resolver as nossas questões. O mercado, enquanto espaço de troca, ele é bem-vindo. O mercado, como espaço de dominação, o espaço totalizante, de forma alguma ele vai nos trazer solução para a questão do racismo. Então, eu vejo que a coisa tomou o rumo no combate ao racismo que, na minha avaliação, é um rumo extremamente equivocado. Não é o mercado que vai resolver isso”, afirma.
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O De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.
Confira a seguir, alguns trechos da conversa com o professor Lúcio Almeida.
Luís Gomes: Como é que tu vê Porto Alegre do ponto de vista racial? Como é que tu a vê essa pauta na própria conformidade da cidade?
Lúcio Almeida: Há, digamos assim, diversas perspectivas. Numa perspectiva urbana, Porto Alegre situa-se como uma cidade como qualquer outra. Há um racismo ambiental muito presente, os bairros são divididos conforme a cor. Nós temos o bairro Rio Branco, o bairro Moinhos de Vento. Temos bairros de transição, que embora sejam majoritariamente brancos, ainda há uma parcela de população negra. Mas Porto Alegre é uma cidade que situa-se nessa divisão racial do seu espaço urbano, o que a gente identifica como o racismo ambiental. Há outros campos da Sociologia que identificam uma higienização da cidade, alguns processos que ocorreram nessa transição de uma cidade não tão urbana para uma cidade urbana. Numa perspectiva política, Porto Alegre ainda deixa a desejar. Nós nunca tivemos uma prefeita negra, alguém vai dizer que já tivemos um prefeito negro. Por outro lado, também nós não tivemos uma mulher prefeita da nossa cidade, isso é inacreditável. Na perspectiva educacional, também deixa muita desejar. Embora tivéssemos alguns projetos positivos no passado, hoje, na minha avaliação, esses projetos de base na cidade então quase que desaparecidos. Eu não sei se é um movimento pós-moderno, a pós modernidade, até mesmo políticos de esquerda têm pecado, digamos assim, por essa por essa pós-modernidade. Não se discute mais um projeto para a cidade. Então, numa perspectiva política, a política se resume a resultados, uma racionalidade instrumental cuja principal consequência é a não discussão de um projeto para a cidade. E esse projeto, evidentemente, deveria estar atrelado à questão da população negra e nós não temos um projeto para a cidade.
Luís Gomes: E quais os elementos que deveriam ser centrais de um projeto para a população negra da cidade?
Lúcio Almeida: Majoritariamente, os projetos voltados às políticas universalistas. Quem é a população mais atingida hoje por ausência de saneamento básico? A população negra. Educação, para quem gosta, para quem não gosta, mas eu sou de uma de uma família muito pobre, desejei muito na minha infância e adolescência uma escola de tempo integral, que eu pudesse sair cedo, me alimentar, praticar esportes e não ter que ficar sozinho em casa, muitas vezes, como eu ficava. Então, falta um olhar do nosso político para essas questões mais necessárias para essa população. A população preta, negra, da nossa cidade é uma população que pega o seu ônibus cedo, que tem uma média de filhos acima da média de quem vive no Bom Fim no Rio Branco, então ela é uma população que grita por participação do Estado nos seus espaços. O que é diferente de mim, eu posso pagar um convênio, posso ter um carro, vivo numa região privilegiada, que é o Centro, próximo ao Gasômetro, mas 99% da população… Eu sempre comento com o movimento negro, o movimento negro é composto em boa parte por servidoras públicas e que defendem pautas legítimas, mas por que os 99% da população negra não está aí? Então, há uma falha de comunicação e que esvazia a discussão política, esvazia a discussão sobre os projetos mais importantes para a cidade. E vivemos uma época da pós-modernidade, onde a representatividade caiu como uma luva, onde a representatividade parece que é uma solução mágica, o que, na minha modesta avaliação, é uma armadilha. Porque a população precisa urgentemente que suas necessidades sejam atendidas, essa é uma política de base, é um projeto de um município que eu entendo mais adequado. Mas, como eu te disse, até mesmo nossos representantes de esquerda parecem terem sido pegos por essa armadilha da representatividade.
Luís Gomes: Professor, o senhor falou da questão de Porto Alegre ter bairros para brancos e para negros. Isso não é oficial, obviamente ninguém vai impedir um branco de comprar um terreno num bairro negro e, oficialmente, não é proibido a um negro comprar num território considerado branco, embora a gente saiba das dificuldades que se possa ter. Mas, do ponto de vista do enfrentamento ao racismo cotidiano, que é tema de um dos livros que o senhor organiza, como você o vê quando os negros transitam nos espaços brancos em Porto Alegre?
Lúcio Almeida: Olha, se eu tivesse que usar o termo culpa, eu culpo a nossa pseudo-intelectualidade negra que, de certa forma, relativiza essa inserção. Muitos dos nossos ocupam esses espaços, trafegam nessas espaços, mas a massa da população que vai trafegar nesses espaços trafega como empregada doméstica ou como um profissional que vai apenas trabalhar. Esses são espaços de trabalho. A verdade, na minha avaliação, é que nós não temos um projeto de cidade que contemple a população negra. O racismo cotidiano, eu gosto muito desse termo porque a Grada Kilomba trabalha no seu livro ‘Memórias da Plantação’, ele é um elemento que constitui, digamos assim, eu não gosto muito de usar racismo estrutural, mas constitui essas relações econômicas, as relações sociais, relações culturais evidentemente, a questão da hegemonia tá muito presente. Porto Alegre tem uma particularidade que é a capital de um estado cuja metade tem uma tradição germânica e italiana, então é uma cidade que respira muito os valores europeus e evidentemente, quando a gente fala em trafegar, esse racismo cotidiano presente ele não se dá só no enfrentamento direto. Há outras formas de hostilizar a presença dos corpos negros nos bairros Rio Branco, Moinhos, poderia colocar aqui o Bom Fim, mais ainda é um bairro de transição, que guarda, digamos, uma relação mais crítica social, com as pessoas que estão lá. Então, esse racismo cotidiano só pode ser combatido ou enfrentado com políticas de base. Eu não acredito em fórmula mágica. As ações afirmativas são fundamentais, mas elas não resolvem por si só as questões de desigualdade econômica. E aqui eu posso apontar alguns atores dessa desigualdade econômica, o capitalismo, que está tão presente, faz parte da nossa realidade. Do ponto de vista político, o neoliberalismo, que resume os problemas sociais à responsabilidade do indivíduo. ‘Eu sou pobre porque eu não batalhei’.
Luís Gomes: Tu achas que essa mentalidade está muito impregnada na população negra hoje?
Lúcio Almeida: Eu acho que, particularmente, nós intelectuais negros temos uma responsabilidade. E o que eu vejo, pelo menos em Porto Alegre, é que estamos sendo cooptados por um antirracismo de mercado. Nosso papel, como intelectuais, é exatamente permitir um olhar mais crítico, trazer esse diálogo com a população de base. Mas muitos de nós estamos deslumbrados com esses espaços que estamos acessando. Então, aqui eu responsabilizo nós intelectuais. Nós não estamos conseguindo fazer uma comunicação adequada com a massa da população preta dessa cidade. Logo, não vejo saída, nem a médio, nem a longo prazo. Há de se definir bem um projeto. Por exemplo, eu ataco muito o antirracismo de mercado. Para mim, o antirracismo de mercado é algo antagônico. Só quem realmente não estudou o que está por trás do racismo vai acreditar que o mercado vai resolver as nossas questões. O mercado, enquanto espaço de troca, ele é bem-vindo. O mercado, como espaço de dominação, o espaço totalizante, de forma alguma ele vai nos trazer solução para a questão do racismo. Então, eu vejo que a coisa tomou o rumo no combate ao racismo que, na minha avaliação, é um rumo extremamente equivocado. Não é o mercado que vai resolver isso.
Luís Gomes: Como é que tu defines esse termo ‘antirracismo de mercado’?
Lúcio Almeida: Principalmente, na busca das instituições, especialmente privadas, de reduzir ou de trazer a sua discussão como se fosse uma discussão, digamos assim, com profundidade epidérmica. O racismo no Brasil se deu exatamente, isso é importante dizer, por esses mecanismos de produção do excesso econômico. O excedente econômico foi produzido neste País pelo braço do negro escravizado, pelo braço da negra escravizada. Pelo indígena, nem se fala, o roubo de suas terras, tudo que foi feito com as terras indígenas. Para que nós tivéssemos um capitalismo neste País. Então, não tem o menor sentido apontar que o resultado disso, que é o capitalismo tardio, vai resolver uma questão que para ele é muito cômoda. Quer dizer, uma massa de pessoas que ofertam a sua força de trabalho a um valor muito baixo, é a lógica do capitalismo. Então, quem não entende isso, não vai conseguir entender os meios adequados de combater o racismo. O papel dos intelectuais é o papel de causar desconforto. O banco não pode me chamar, como já me convidaram, para falar sobre racismo sem eu tocar nesses pontos tão delicados. Na minha avaliação, não há como atacar o racismo sem pensar o estilo de vida cuja base é o capitalismo. Eu não acredito numa mudança profunda sem atacar o sistema econômico.
Luís Gomes: O que o senhor pensa da questão de ocupar esses espaços para se aproveitar dessa visibilidade para fazer denúncias e também de promoção do antirracismo?
Lúcio Almeida: Acho importante, mas de antemão eu aviso, não resolve quase nada. Uma ministra do supremo não vai resolver a questão racial no Brasil. Isso só importa, exatamente, para quem entende que o combate ao racismo seria através de mecanismo muito paliativos. Então, eu gostaria de ver a população preta e negra com postos de saúde adequados. Eu tenho duas irmãs que vivem no bairro Rubem Berta, uma parte dele tomado por uma equivocada guerra às drogas, por uma equivocada visão de que aquela população não mereça atenção estatal e política. Eu vejo que a solução para eles não é a representatividade de um só, como diz a Nancy Fraser, o 1%, aquelas pessoas desejam e pedem uma educação básica de qualidade, saúde pública de qualidade e segurança de qualidade. Seria uma traição me afastar dessa realidade, apontar que a representatividade hoje seja a solução. Ela é importante, mas ela está muito longe de representar um avanço para a população preta neste País, a população negra nessa cidade. Porque, senão, nós não estamos entendendo os termos de como é que se construiu o racismo neste País.