
O episódio desta semana do De Poa, podcast do Sul21 em parceria com a Cubo Play, recebe o professor Luciano Fedozzi, do Departamento de Sociologia da UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles, para uma conversa sobre a proposta de concessão do Cais Mauá. Integrante do Projeto de Extensão Ocupação Cais Mauá Cultural, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fedozzi avalia o novo edital de concessão, apresentado pelo governo do Estado na semana passada, e discute as possíveis alternativas à proposta.
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Confira a seguir alguns trechos da conversa com Luciano Fedozzi.
Luís Gomes: Como o senhor vê o novo edital de concessão do Cais Mauá?
Luciano Fedozzi: Como a gente está conversando, é um processo longo, complexo e permeado de contradições. Mas, depois do final do ano passado, onde houve um processo vazio de licitação, não houve interessados, nós, por meio do projeto de extensão da UFRGS, que reúne ali três departamentos e programas de pós-graduação — Sociologia, Arquitetura e Urbanismo e Administração –, juntamente com o Coletivo Cais Cultural, que reúne a sociedade civil, pessoal da cultura, de várias atividades culturais, prosseguimos analisando e, ao mesmo tempo, buscando uma negociação, uma interação com o governo do Estado, seguindo aquela luta longa que que iniciou lá no início de 2010, mais ou menos. Inclusive, de certa maneira, mostrando os prejuízos para a cidade, do ponto de vista público, com aquela licitação que acabou mostrando a sua fragilidade e o seu caráter, eu diria, de certa maneira danoso para a cidade. Então, a partir daí, a gente buscou, sempre defendendo a importância desse processo, entre aspas, de ‘revitalização’ do Cais, 3 km e meio, um pedaço da orla no Centro de Porto Alegre muito importante, mais de 180 mil metros quadrados, com 12 armazéns que são tombados do ponto de vista do patrimônio histórico cultural. E aí tentamos, numa situação adversa, eu diria, para o interesse público, na medida em que o governo do Estado e a Prefeitura de Porto Alegre concebem um projeto de caráter privatista, entendem que essa é a única forma de revitalizar essa área muito importante, simbólica, econômica e cultural para Porto Alegre. Não só para Porto Alegre, acho que pro Estado do Rio Grande do Sul em geral, considerando toda a história que o Cais teve na formação da própria cidade, diria no berço da cidade. E aí, o que nós conseguimos, defendendo a prevalência e o interesse público, foi pelo menos reservar dois dos 12 armazéns, A e B, mais o Pórtico, que é importante, tombado também, tem toda uma uma característica arquitetônica importante, com o caráter público. O restante não foi possível, porque realmente a análise de uma correlação de forças não era positiva. Continua não sendo positiva, à medida que tanto o governo do Estado, como a Prefeitura, a Assembleia Legislativa do Estado é a Câmara de Vereadores Porto Alegre têm uma maioria que é muito favorável à concepção neoliberal de cidade. Então, essa situação se colocou. Nós continuamos tentando negociar a partir desta análise, quase que a partir de uma estratégia de redução de danos digamos, já que não era possível objetivamente. Embora nós tenhamos comprovado, com dados técnicos, que havia, sim, possibilidades, viabilidade de revitalizar esse espaço todo conservar, os armazéns para fins culturais, sem privatizar e conceder para grupos privados. Nós provamos isso, isso tá muito claro. Portanto, se trata de uma opção.
Luís Gomes: Pelos dados apresentados pelo governo, o investimento na área dos armazéns e na manutenção ao longo de 30 anos no processo de capitalização em si é de cerca de R$ 500 milhões de reais, R$ 350 milhões agora no curto prazo, R$ 500 milhões no total, mas já incluindo manutenção ao longo dos próximos 30 anos. Não parece uma quantia tão exorbitante assim para o governo do Estado, que tem orçamento de R$ 70 bilhões por ano, ainda mais se a gente considerar ao longo de 30 anos. Como foi a conta que o coletivo e o projeto de extensão apresentaram para que a revitalização não necessitasse de recursos privados?
Luciano Fedozzi: Vamos pegar ali 2019, quando houve a quebra do contrato pelo governo do Estado com o antigo consórcio, que ficou praticamente quase 10 anos sem desenvolver nada. Aliás, só piorou a situação, inclusive com desvio de recursos e uma série de questões muito sérias, o que mostrou que o mercado privado não solucionou a questão, ao contrário, trouxe danos muitos severos, algo que vários ativistas, movimentos sociais ou organizações falavam sobre isso, já haviam previsto e denunciado. Então, isso, lamentavelmente para a cidade, se confirmou. Quando houve a quebra desse contrato, de maneira acertada e atrasada pelo governo do Estado, mas acertada, nós achamos que, juntamente com a comunidade cultural de Porto Alegre, seria importante apresentar um projeto que demonstrasse, a partir de dados e não só de uma vontade, a viabilidade de concretizar ali um projeto de caráter público e cultural.
Bom, nós fizemos dois cenários, um deles que considera a situação que em 2019 se anunciava, e de certa maneira era real, de dificuldade financeira do Estado, toda uma situação do governo, que melhorou bastante agora, mas ainda não é aquela que seria ideal e necessária, e outro cenário onde se apresentava as condições para fazer o investimento público e dali retornar. O que isso mostrou? Por exemplo, numa ideia de redução de danos, se nós tivéssemos que ceder a área das Docas. Para quem não sabe direito, o Cais, esses três quilômetros e meio, 180 mil m², ele é dividido, inclusive ponto de vista das matrículas dos terrenos, em três áreas. A área do Gasômetro, que é do lado da Usina até os armazéns, a área dos armazéns e, por fim, um pedaço do Cais chamado de Docas, que tem três docas. Assim é que se divide aquele espaço. Então, nesta lógica de redução de danos, vamos fazer um exercício. Se nós tivéssemos que ceder o terreno das Docas para construção imobiliária, quanto isso geraria? Isso geraria recursos suficientes para revitalizar os armazéns e manter eles com caráter público e cultural? Avaliamos isso ponto de vista técnico e os dados posteriormente divulgados corroboram isso. Ou seja, a avaliação daquele terreno dava em torno de noventa e poucos milhões, nós chegamos a uma conta de R$ 95 milhões. Claro, uma conta com uma certa dificuldade, porque esse terreno é inédito, a comparação é um pouco difícil, mas é plenamente possível esta avaliação. Então, isso seria suficiente, como mostram os dados atuariais, para tornar os armazéns revitalizados como espaço público e cultural. E o que é mais importante, talvez uma das discussões mais importantes, um projeto que devolva esses armazéns para a cidade no sentido mais público e universal. Ou seja, que a sua ocupação e uso não seja a seletiva, como em geral são os grandes projetos urbanos com esse tipo de característica, que a literatura internacional chama de waterfront, regeneration, quer dizer a revitalização de áreas de frente para as águas, portuárias.
Em geral, com raras exceções, como o caso de Rosário, da Argentina, são projetos que promovem uma elitização do espaço. Por quê? Porque são concedidos para empreendimentos privados, o caso clássico é Puerto Madero, em Buenos Aires, onde a ocupação e o uso se dá ou para fins residenciais, ou restaurantes ou empreendimentos cuja renda necessária para frequentar é de classe média para cima. Ou seja, leva a uma elitização desse espaço, de forma muita clara.
Luís Gomes: E aí a gente pode questionar o argumento usado pelo governo do Estado de devolver a área do Cais para a cidade, que foi usado na outra concessão, é usado pela Prefeitura para pressionar a liberação. Está devolvendo para um segmento da cidade.
Luciano Fedozzi: Que é minoritário da cidade. A gente tem exemplos, nem precisa recorrer ao Puerto Madero, que hoje é o metro quadrado mais caro de Buenos Aires, ali foi realmente implementado um projeto radical de cunho neoliberal, da cidade mercadoria, onde, digamos, não tem mais cidadania e tem clientes, usuários, consumidores. Quer dizer, o espaço tem que ser consumido, e não usufruído de uma forma universal por todos as classes, camadas e grupos sociais. Então, essa é uma preocupação muito grande, um projeto público, cultural, claro que tem que ter várias coisas de alimentação, mas não que sejam selecionadores por renda, o que é muito comum, e isso é uma preocupação muito grande.
Luís Gomes: Hoje o Cais Embarcadero já é um pouco isso.
Luciano Fedozzi: Certamente. Ali se anuncia um pouco do que provavelmente será, se der certo, esse projeto. Como é uma concessão ao setor privado, seja por meio de PPP, ou concessão direta ou alienação, são empreendimentos que estão ali para auferir rentabilidade, ou seja, uma extração de lucro daquele empreendimento. E, para isso, as atividades são comercializáveis, elas têm que ser para que o empreendimento se torne viável.
Luís Gomes: Temos dois pontos que podem ser discutidos. Tem o modelo de concessão com o edital previsto para dezembro. E aí tem um ponto que é o seguinte: ninguém é contra ter alguma coisa na área do Cais do Mauá.
Luciano Fedozzi: De forma nenhuma.
Luís Gomes: Tanto que a gente começou essa conversa explicando que existe um modelo alternativo, voltado para uma produção cultural, que fosse um pouco menos elitizado, que envolvesse setores culturais, pudesse ser usufruído por uma parcela maior da cidade. Outra coisa é que, quando se discute qualquer processo dessas chamadas revitalizações em Porto Alegre pelo caso bem sucedido do uso da população das áreas da Orla do Guaíba, muito se diz: ‘ah, não gostaram da Orla, a Orla é um sucesso, por que estão criticando a revitalização agora do Cais?’ Eu sempre gosto de deixar claro que são processos diferentes. O trecho 1 e o trecho 3 da Orla, que podemos discutir o modelo, devemos discutir a questão do ponto de vista do impacto ambiental, temos visto nas últimas semanas em Porto Alegre as cheias do Guaíba, mas, independente disso, foram modelos em que não foi uma concessão público-privada. O governo municipal captou um financiamento, ele contratou a empresa para fazer as obras e, só depois que estavam prontas, fez uma parceria para manutenção.
Luciano Fedozzi: Financiamento esse que terá que ser pago, porque quem fez foi a a população da cidade.
Luís Gomes: E essas áreas que são de uso comum, tem ali restaurante, mas a circulação é ampla e livre. As quadras de esportes são utilizadas por toda a população. Então, são modelos que são diferentes. O que vai acontecer no Cais, se tivermos interessado nesse leilão, é diferente do que aconteceu na Orla, não é, professor?
Luciano Fedozzi: É diferente, são duas coisas bem diferentes. Aliás, eu acho muito importante também rememorar a trajetória desde a redemocratização, porque a própria orla essa citada, os três trechos, que vai do Gasômetro ao Beira-Rio, só foram mantidos públicos porque houve um movimento de defesa da orla muito grande no famoso projeto Praia do Guaíba. Em 1988, aprovado pela Câmara de Vereadores, o projeto previa a construção imobiliária em toda orla esta que hoje conseguiu ser, de maneira urbanizada e de acesso público. Quem é mais antigo um pouco na cidade sabe, quando houve, por exemplo, um grupo que subiu na Usina do Gasômetro, foi retirado de lá com força policial e tal, mas fazendo o movimento de resistência à privatização diante do projeto Praia do Guaíba, que foi encaminhado pela gestão do prefeito Alceu Collares, na época, com um escritório famoso da cidade de Arquitetura e Urbanismo. Se não tivesse tido uma mudança do contexto político em 1989, o projeto teria sido executado. E ele previa o quê? Prédios e shoppings em toda a orla, esta que foi devolvida agora para a cidade. Então, é preciso considerar esse processo na sua sequência histórica. Portanto, é totalmente incorreto, eu diria até não é muito honesto, dizer que aqueles que certa maneira veem esses projetos com uma visão um pouco mais crítica, um pouco mais justa, eu diria, como sendo contra projetos desse tipo.
Não se trata de ser contra, como tu bem disse. Se trata de, primeiro, resgatar a defesa da orla pública. Segundo, de considerar a diferença entre os projetos. Porque, exatamente isso, um empréstimo que a Prefeitura de Porto Alegre fez junto ao Banco Andino, US$ 60 milhões, quem paga é a população de Porto Alegre, os contribuintes. São projetos que nós vemos que poderiam e deveriam ser executados sobre outra ótica, mediante uma viabilidade técnica que mostra ser possível. Eu acho que uma grande questão em torno do Cais Mauá é uma ideia muito típica do projeto neoliberal, que foi inclusive muito presente quando o neoliberalismo surgiu na Inglaterra, que ficou conhecido inclusive pela ideia de que não há alternativa, ou seja ou se faz assim ou não há alternativa. É a ideia que ficou conhecida com Margareth Thatcher, que dizia ‘não há alternativa’. Nesse caso do Cais Mauá, a gente mostrou que há. Vamos pensar num cenário mais, entre aspas, “conservador”, vamos considerar que não há condições, o que é muito questionável.