Opinião
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5 de junho de 2025
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08:15

Urbicídio e barbárie na Faixa de Gaza: a distopia endocolonial reflete no espelho digital (por Ronaldo Queiroz de Morais)

Foto: UNICEF/UNI448902/Ajjour
Foto: UNICEF/UNI448902/Ajjour

Ronaldo Queiroz de Morais (*)

Quando o estrategista chinês Sun Tzu alertou: “a pior política é a de atacar a cidade”. Isto é, o ataque ao território urbano, exclusivamente, como última alternativa militar. Ele manifestava a estratégia militar dominante. Exatamente, porque as cidades da antiguidade situavam-se como enorme campo de defesa às invasões militares. Totalmente protegidas por muralhas inexpugnáveis, posto que uma cidade derrotada corresponde a uma civilização morta. Diferentemente do mundo antigo, na modernidade da pólvora e dos canhões, não há mais qualquer muralha de proteção. Cidades são pontos frágeis, inflacionadas de milhões de habitantes, inteiramente impotentes em face da máquina de guerra contemporânea. Importante adicionar, a guerra é a política de imposição da vontade de um Estado sobre outro, jamais descarga de violência absoluta contra populações desarmadas. A moderna ofensiva militar de violação das cidades não é, tão somente, a pior política possível, mas a política do pior, mutação da arte da guerra, ou melhor, urbicídio endocolonial – combate imoral e desonra militar. É um combate que produz, amiudadamente, monstros, em vez de heróis dotados de coragem e de espírito de justiça.

Nesse sentido, há objetiva distinção entre a Guerra Russo-Ucraniana e o conflito na Faixa de Gaza. O primeiro acontecimento beligerante restringe o limite do conflito ao traço de teatro apropriado, sendo assim a maior parte das cidades ucranianas está isolada da violência belicosa. De modo oposto, o segundo acontecimento, a destruição das cidades prefigura a lógica geral das ações de progressão militar. Em palavras com melhor precisão, a operação militar israelense segue o que Patrick Wolfe descreve como a “lógica da eliminação”. Factualmente, os combates em Gaza escapam do propósito de guerra tradicional. Uma vez que é ato obsceno a incursão de combatentes no território urbano, munidos de avançada tecnologia de destruição militar, para travar combate indiscriminado contra a sociedade civil. Trata-se de tumulto endocolonial, de ocupação e exterminismo militar. Basta olhar com atenção a nefasta paisagem de Gaza, lá a “destruição criativa” devora monstruosamente a precária civilização palestina. 

Na Faixa de Gaza, 81% do território compõem o teatro operacional militar israelense. A ordem de evacuação da população civil é constante a fim de liberar o espaço à destruição militar. Mais de meio milhão de palestinos estão, desesperadamente, em deslocamento contínuo com o intuito de salvaguardarem-se do terror militar. Há também o uso de estratégia punitiva de contenção dos suprimentos de ajuda humanitária no afã de potencializar o pânico sobre a sociedade civil. As cidades de Gaza não estão simplesmente cercadas e ocupadas, mas algo ainda pior, estão sendo destruídas completamente. As ações militares israelenses já perduram desde a Nakba do século passado. Todavia, a contabilização do recente tumulto endocolonial, de 7 de outubro de 2023 até o tempo presente, é instrutiva. Ela expõe a obscena lógica da eliminação. São 53.600 mortos e 121.950 feridos, a maior parte desses números é da população civil, sendo 20 mil crianças eliminadas. Estamos diante de situação limite, de alerta vermelho, a barbárie de Gaza reflete no espelho digital, reverberando um futuro distópico de aplicação estendida da política militar do pior, que adentrará nas cidades com o objetivo de destruir as forças de resistência civil e endocolonizar o espaço urbano.

O urbanista Le Corbusier realça que, depois da primeira guerra total, o poder dos instrumentos modernos de destruição militar foi confirmado e desenvolvido. Desde então, nos sentimos tomados pelo medo sufocante do terror sobre as cidades. Espaço demasiadamente povoado, no qual emerge urbe desprotegida de defesa militar e máquina beligerante de urbicídio. O alarme está acionado. Não há cidade sã e salva da ameaça militar. No passado, fortaleza de defesa da sociedade civil, hoje campo de hiperguerra e de destruição. O poder militar contemporâneo investe, ordinariamente, contra as forças vivas que lá habitam. Assustadoramente, as forças armadas lançam seus projéteis de aço contra a frágil carne civil. É a barbárie militar que atravessa a cidade e os corpos civis. 

Efetivamente, não é uma guerra convencional, sequer uma guerra rigorosamente dita. É combate irregular esvaziado de política de guerra. Horror com face de acidente. É um urbicídio que reflete no espelho digital. Gaza é o epicentro que reverbera o terror, pois a barbárie está aqui e lá. Onde há Sul Global, espaço de espoliação tecnológica, também há corrente modo de destruição militar que faz sangrar inocentes. Toda pessoa humana necessita de moradia e de uma cidade livre. Está lá nos Direitos Humanos, mas mulheres, crianças e idosos agonizam sem qualquer proteção a cada ataque imoral. A curva da regressão ao estado incivilizante é inequívoca. Ante o exposto, deve-se ter clareza, a invasão e destruição das cidades não é, propriamente, guerra, já que a infiltração no frágil território urbano consigna endocolonização militar com o propósito de instaurar barbárie e distopia. A bizarra – embora previsível – proposição de Donald Trump de “reconstrução” da Faixa de Gaza para transformá-la na “Riviera do Oriente Médio”, a partir da evacuação total de milhões de palestinos, além da cobiça imobiliária, representa a realização do pesadelo distópico de forjar cidade big brother, na qual a vigilância será posta palmo a palmo, sem qualquer possibilidade de insurgência. 

É perverso arrastar o acontecimento horroroso de Gaza ao campo conceitual de guerra, visto que compõe modo de produção de dominação colonial. Contextura militar, em que a ocupação impõe a completa destruição das cidades. A máxima sionista de “terra sem povo para um povo sem terra” demanda o exterminismo absoluto do povo que insiste em resistir. Melhor dizendo, eliminação total dos laços materiais e imateriais de memória e da história da alteridade insuportável dos palestinos. O historiador israelense Ilan Pappe qualifica o processo de conquista como o de “colonialismo de assentamento”, que consiste na proposição de substituir absolutamente a sociedade nativa por meio das operações militares. Nessa perspectiva, a frase de Golda Meir “não existe povo palestino”, que reverbera ainda hoje, marca o diapasão do tumulto endocolonial que prospera, sem freios, na Faixa de Gaza. Ela, em tempo real, representa a distopia militar que reflete no espelho digital das telas que colonizam nosso imaginário. Subjetividades cativadas, presas aos grilhões da informação, que laconicamente registram a barbárie como acidente de guerra. Todos os dias, a imprensa tradicional repete – com a monotonia de um mantra publicitário – que a massa de mortos e feridos resulta de um lamentável acidente de combate. Efeito colateral declarado como inevitável da “guerra contra o terror”. Enquanto o exterminismo palestino prossegue ordinariamente. 

Entretanto, o bom senso nos diz que, para conferir ao acontecimento a prerrogativa de acidental, há que apresentar uma singularidade excepcional, que lá não há, porque a verdade factual é outra. A destruição das cidades na Faixa de Gaza não configura nenhum acidente militar. A violência militar é a regra geral de uma longa história de ocupação e destruição das cidades na Palestina. Urbicídio executado por uma nação império, que reflete no espelho um modo de destruição colonial que carrega “efeito bumerangue”. Ele se amplia como pandemia de dominação. Gaza é o terror que se expande, laboratório em tempo real que forja a violência urbicida. Dito objetivamente, a operação Espadas de Ferro, conduzida pelo Estado de Israel, transborda a cartografia da Palestina, tendo em conta que configura imenso laboratório de guerra impura contra a sociedade civil. Segundo o geógrafo Stephen Graham, lições militares apreendidas das incursões militares israelenses nas cidades de refugiados palestinos, desde 2002, são objeto de estudo castrense para todas as Forças Armadas das nações aliadas. Ou seja, instruções de endocolonização militar preparam tropas ao iminente ataque e Gaza é o campo de aprendizagem. 

Em suma, o tumulto endocolonial de Gaza reflete o “efeito bumerangue” do poder imperial que retorna como estratégia de controle e extermínio das alteridades insuportáveis. No passado, a experiência militar de conquista da Argélia foi ampliada para conter a Revolução de Paris (1871) e transformar a capital francesa em campo de batalha. Não é tudo, a guerra do Estado Francês no século XX contra a independência da mesma colônia produziu o modelo de combate aos insurgentes, melhor dizendo, originou uma guerra suja que logo passou a ser utilizada na repressão latino-americana em tempos de república dos generais-presidentes. Ademais, é impossível negligenciar da memória social que a contrarrevolução neoliberal aflorou no Chile de Pinochet por meio da violência militar urbana e ainda hoje descarrega barbárie e desregulamentação sobre as cidades contemporâneas, usurpando a democracia. Assim, a limpeza étnica na Palestina deve ser testemunhada como a barbárie que ameaça – não somente o povo palestino – mas a civilização moderna como projeto de emancipação e liberdade. O modo de produção de destruição aplicado lá, que reflete no espelho digital – tão distante geograficamente de nós –, está embrionariamente posto como vírus do terror nas inúmeras áreas sombrias de desigualdades social e racial. A militarização contemporânea que promete a segurança total é efeito do caos que advém de Gaza. No limite do crescente emparedamento político bifurcado por vereda de civilização e barbárie, a “Questão Palestina” impõe-se como resistência política impreterível que extrapola a luta dos nativos, na medida em que o urbicídio endocolonial é o mau agouro totalitário de um futuro próximo.

(*) Doutor em História Social na Universidade de São Paulo (USP). 

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