Opinião
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10 de junho de 2025
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07:41

Soft Power: temos que falar sobre isso (por Giovanni Mesquita) 

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Sul 21
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Michael Jackson no filme This is It | Foto: Sony Pictures Releasing France
Michael Jackson no filme This is It | Foto: Sony Pictures Releasing France

Giovanni Mesquita (*) 

Ariano Suassuna disse, numa charla, que “Em vez de porta-aviões, os americanos hoje mandam Michael Jackson e Madonna para dominar o Brasil. ” Que saudade quando era Madonna e Michael Jackson; hoje temos que aturar todo tipo de escatologia deselegante. Sendo elegante ou não, a sagacidade de Suassuna para enxergar o óbvio é fascinante. Seguindo com esse vocábulo ovalado, temos mais atrás Nelson Rodrigues, que esfregava na cara de todos seus coetâneos, portadores da síndrome de vira-latas, o óbvio ululante. Essas verdades que uivam e zunem, parecem inaudíveis para nós que vemos, mas temos dificuldades de enxergar através da grossa lente da ideologia.

O chamado Soft Power, com o seu peso esmagador, lavra nossas consciências e germina apenas sua estética, suas ideias, seus pressupostos. O império impõe sua imagem como sendo a personificação universal dos humanos. Você está lá, vendo um filme japonês, e sobe o som de um pop, como trilha sonora na hora do beijo, ou um heavy-metal, quando estoura a pancadaria. É uma série turca e um rap, estampa e acompanha a paisagem da Capadócia. A arte da dança popular (daqui ou de qualquer país), rica em imagens e dinamismo, é substituída por pulos e caricatos passar de mão nos cabelos…  Nossas carnes assadas são profanadas e adoçadas ao molho barbecue…. 

É uma árdua jornada comprar uma camiseta, para ti ou para o teu filho, que não esteja na língua do império, e tu tem que trilhar essa Via-crúcis ao som de uma música oriunda da mesma fábrica. Tu vais ver uma coleira pro teu cusco e se depara com um fofo ossinho nela pendurada, com a inscrição: “dog”. É tão irritante ser sensível a isso… Ao externar essa irritação as pessoas próximas olham para ti com estando prestes a indicar um psiquiatra. Quando critico a sua seleção de músicas, minha filha me responde: “Papai, deixa para me falar dessas coisas quando eu sair da adolescência.” Anotado!

Historicamente, o Poder Leve, como é cinicamente intitulado essa forma de dominação, é do tempo do Big Stick. No Brasil, sua aparição mais rumorosa ocorreu no tempo do Franklin D. Roosevelt, sobrinho do homem do Big Stick, Theodore. O Roosevelt, sobrinho, esteve na terra Brasilis em 1943 para descolar o apoio do nosso país na guerra contra os nazis. Mas, antes disso, mandou sua vanguarda armada de lápis, pincéis e câmaras. Em 1941, Walt Disney, em carne e osso no comando de um batalhão de artistas, fez seu QG no Copacabana Palace. A contragosto, esses soldados do Soft Power tiveram que beber muiiito de cultura brasileira. Mas não custou para que eles colocassem um cocar de fruta na cabeça da Carmem Miranda e a exibisse dançando ao som de maracas num misto de Colômbia e México. É claro que Carmem era mais… “disseram que voltei americanizada…”. 

Orson Welles, também foi enviado para esse front em 1942. Ficou inebriado com o brilho do nosso povo, com a nossa natureza e com o consumo de várias caixas de uísque, of course. Dizem que ele fez um filme maravilhoso, chamado É Tudo Verdade. Era tão bom que nunca foi para as telas. Uma versão diz que o estúdio RKO quis retalhar a obra, talvez pela morte de Jacaré. Welles emputeceu e tentou sair no soco com tudo mundo, resultado meteram a Verdade num sarcófago e o enterraram em algum galpão da RKO.

Sempre percebo um estranhamento no rosto das pessoas quando Luís Nassif, e eu, dizemos que temos a música mais bela do planeta. Muitos, progressistas e mesmo marxistas, quando questionados sobre “suas” preferências anglófilas, dizem:  “é, mas é a música que eu gosto de ouvir”. É como se o gosto, sempre inclinado para o mesmo lado, fosse um fruto da árvore do acaso. Parece até que o domínio cultural não compõe o arcabouço do predomínio ideológico. No “Ainda estamos aqui”, muitos esquerdistas descobriram a riqueza do cinema brasileiro, será que a maioria é tão nova que nunca viu o Beijo no Asfalto? 

Ao percorrer um bairro de ricos, a visão é espantosa. O impacto não se deve ao glamour de suas vitrines, mas ao idioma de suas placas. Eu, particularmente, me arrepio com o grau de servilismo e pelo desprezo por nossa língua e, certamente, pelo nosso povo. Nesses lugares desfilam Odetes Roitman, com cabelos tingidos com o já tradicional tom louro golpista.  E quanto mais parasitária for a área de negócios da elite, maior é o domínio do léxico alienígena, que, “casualmente”, via de regra, é oriundo da língua inglesa…

No cinema, na lista dos filmes mais assistido nos EUA, o primeiro filme estrangeiro que aparece está no 520º lugar. Ou seja, eles inundam o mundo com a produção da sua indústria “cultural” ao mesmo tempo que impõem uma forte barreira contra a entrada de manifestações artísticas e intelectuais vindas de fora. Trump, mesmo odiando cada artista que há em seu país, anunciou 100% de taxação sobre filmes estrangeiros. Manter os estadunidenses ignorante sobre outras culturas é uma política de Estado, ou seja, o porrete do Soft Power cai primeiro na cabeça do próprio povo dos EUA.

Voltando algumas casinhas nessa prosa, qual seria o peso e o caráter da tal cultura? Marilena Chauí nos informa que, na sua origem, a palavra cultura está ligada a ideia de cuidar, semear e crescer. Ela não é uma metáfora da agricultura, na realidade parece que a cultura é uma metáfora dela. O princípio diz que o humano ao fazer (trabalho), faz a si mesmo. Isso também é conhecido como dialética materialista. 

As sociedades de classes, onde os estamentos têm relações diferentes com o fazer, apresenta dois tipos distintos de relação com a cultura. Para os trabalhadores a cultura é um ato, consciente ou não, de resistência. Para os patrões, é uma ferramenta de formatar um comportamento servil. Quando é massificada, pelo financiamento da elite, a cultura se torna o seu oposto: de resistência se transmuta em acomodação. Em geral, a classe média é a executora dessa transmutação de cultura em entretenimento, mas também é divulgadora dessa mesma cultura que avilta. Ao se abandonar a cultura advinda do processo de formação de uma comunidade, de uma região, de um povo, a resistência se converte em capitulação. “A classe dominante impõe o conformismo, o entretenimento. Nós estamos de frente a uma tragédia.” Às vezes, para que se compreenda determinadas coisas, é bom olhar para outro aquário, já que a água que nos envolve, no nosso viveiro, nos é imperceptível. 

O império romano pode funcionar como um perfeito contraste para este nosso experimento cognitivo, já que, por muitos séculos, influenciou a política, a economia e a cultura do mundo “ocidental” que oprimia. Seu domínio se estendia do Egito a Britânia, da Lusitânia a Romênia. Depois que os “Trumps” daqueles tempos, e as invasões dos povos do Leste transformaram o império milenar em poeira, o seu latim em pó, como nos canta Caetano, resistiu impregnado em todas as línguas europeias e, junto com as palavras, a sua cultura. Esse é um tipo de contaminação que pode durar mais que a radiação de algumas formas de plutônio… 

Por mais que possamos considerar que a imposição de aspectos da cultura romana tenha sido importante para a construção da cultura coetânea dos países europeus, e das terras que eles invadiram, há de se pesar o custo: “genocídio” de culturas, línguas, crenças e costumes, dos povos indígenas da América e da África. Assim, a principal vítima, depois do extermínio de vários povos, foi a diversidade. Um império impõe sua língua, cultura e religião como condição precípua de seu domínio.  E, via de regra, os bastiões de resistência cultural sempre foram as classes oprimidas. As elites, em geral, se adaptam gostosamente ao opressor, como nos mostra Chauí, nossa Palas Atena, ou melhor, nossa Nanã Buruquê.  

No nosso caso, herdamos a derradeira e bela flor do Lácio… mas o preço e a intenção eram claros. Em um surto de lirismo e arrebatada paixão, Mathias canta, em Calabar : “Guitarras e sanfonas / Jasmins, coqueiros, fontes / Sardinhas, mandioca. / Num suave azulejo / E o rio Amazonas / Que corre trás-os-montes / E numa pororoca / Deságua no Tejo…” e conclui, “Ai está terra ainda vai cumprir seu ideal, a inda vai se tonar-se um imenso Portugal. ” Hoje, com o nosso uso dialético do dialeto luso, canibalizamos a língua de Camões e dela surgiu a de Guimarães Rosa e a de Simões Lopes Neto, mas a marca colonial se manteve. 

Nas inversões deste mundo louco, que parece ter sido reinaugurado desde a fuga em massa da extrema-direita do Asilo Arkham, a domesticação cultural se mostra mais clara e indecorosa. Nas manifestações nazi-sionistas, a bandeira ianque é sempre a maior. Governadores e deputados desfilam por aí com os bonezinhos “Make America Great Again”.  São, sem dúvidas, patriots!

É significativo que, no atual bochincho, gerado pelo Trump, a China responda vetando a produção hollywoodiana no país. É claro que não é de hoje que isso é uma preocupação do governo de Pequim, visto que eles baniram do seu território várias redes sociais que desrespeitaram suas leis. Usaram um princípio simples: não importa se os senhores concordam ou não com a nossa legislação, no nosso território os senhores só têm que cumpri-las! Há quem chame isso de autoritarismo, eu chamo de soberania. E esse critério levou de arrasta na China, Facebook, Instagram, Twitter, Google e YouTube. “Mas, que horror!” diriam os monarks, “os chineses foram exilados das redes!” Não, eles criaram suas próprias redes e parecem felizes com elas, inclusive há estadunidenses aderido as mesmas. Veja o fenômeno da Xiaohongshu (Livro Vermelho), que sutileza, está gerando furor na galera ianque. 

Não é, no entanto, possível nem desejável que o pensamento revolucionário se alheei do cadinho onde é mesclado e forjado o espirito das massas. O pensamento crítico tem a capacidade de submeter a luz do conhecimento todas as manifestações existentes. E elas são importantes, nem sempre, ou quase nunca, pela sua qualidade, mas sim pelo impacto que ela exerce sobre a consciência dos trabalhadores pobres. Mas, devemos fazer o que nós brasileiros sempre soubemos fazer, transformar essas manifestações a ponto delas se tornarem o seu avesso. Mostraremos, assim, que como o entretenimento é o contrário da cultura, e a manifestações culturais se tornam cada vez mais entretenimento e cada vez menos cultura, o caminho inverso também é possível. Para ilustrar, podemos usar aqui o causo luso da sopa de pedra da região do Almeirim. O viajante solicitava aos locais alguma ajuda para fazer uma sopa de pedra. Uma cenoura para um, duas batatas para outro, uma cebola e aí por diante e “milagrosamente” a sopa de pedra se tornava uma iguaria.

Yanis Varoufakis, ex-ministro da Economia da Grécia, para dialogar com a sua filha adolescente, começou a fazer um sincretismo entre política, economia e ficção científica da chamada cultura pop. Mesmo que não se concorde em toda a extensão da curvatura que ele dá para as possibilidades pedagógicas oferecidas por esse arco, é um pouco difícil dizer que não é um caminho válido para acessar a juventude, conceito cada vez mais estendido. Yanis Varoufakis, que segundo alguns é socialista, em outro arco bemmmm estendido, escreveu o texto Star Trek, seriado comunista?, em que ele faz uma acurada análise em que vai de ferengis a Marx. Mas, se o caráter comunista do mundo de Star Trek é questionável, é inquestionável a mensagem anti-imperialista de Star War, principalmente em Andor. Mas, para a sopa de pedra ficar substanciosa é necessária a intervenção contínua, criteriosa e consciente de quem quer livrar e se livrar dos grilhões do imperialismo da Indústria “Cultural”. Temos que remar, na nossa interestelar canoa, da “cultura” deles, para a nossa. Talvez esse seja o caminho para a construção da tal “contra-hegemonia”.   

Luís Nassif, ao escrever sobre o show de Chico Buarque e Mônica Salmaso, que presenciou, fez um desabafo sentimental: “Eram milhares de pessoas, órfãs não propriamente de Chico, mas de Brasil.  O retorno ao que somos, e a nossa mastodôntica cultura, é um caminho que deve ser trilhado de olhos abertos, conscientes que sabemos de onde partimos, mas não sabemos onde chegaremos, porque o importante não é o chegar e sim o caminhar. 

(*) Historiador

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