Opinião
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10 de junho de 2025
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07:51

Pequenas caixas de leitura para ver (Coluna da Appoa)

Por
Sul 21
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Pequenas caixas de leitura para ver, de Georges Didi-Huberman | Foto: Lucia Serrano Pereira
Pequenas caixas de leitura para ver, de Georges Didi-Huberman | Foto: Lucia Serrano Pereira

Lucia Serrano Pereira (*)

Ler é tocar tudo o que nos funda e nos transborda. Tem a ver com o noturno e com o infantil. Tem a ver com se deixar ultrapassar e transformar, suspensos na borda do precipício, da vertigem e aceitar o risco – pois é no risco que ao mesmo tempo pode vir de volta, em uma fugacidade, algo do momento inaugural das coisas. 

Em Pequenas caixas de leitura para ver, de Georges Didi-Huberman, avançamos justo neste território. Como alguém se torna um leitor, e como é importante, neste caminho, o ver e o escrever. É lendo e dialogando com Petite nuit, pequena noite, de Marianne Alphant, que acontece seu ensaio. Ele, historiador da arte, filósofo, grande leitor de Freud e Lacan; ela escritora e crítica literária francesa. 

Petite nuit, um livro que nos ajuda lembrar e imaginar o que é ler livros, ele diz, porque ler é escrever algo da sua admiração pelo livro dos outros. Ideia inusitada e ao mesmo tempo quanta verdade. E vai mais longe: ver é também uma forma de se escrever o que se admira em imagens produzidas por outros. 

Ler, ver e escrever, entramos em contato com certa mágica que mistura letra e corpo; encaixar, mexer, embaralhar, recortar, pegar. Pegar as letras no que Didi-Huberman recompõe das lembranças infantis com sua caixa de leitura. Experiência de outro contexto, ele diz do que era comum no tempo da sua infância, essa caixa com as letras em caligrafia gótica, alinhadas, soltas em ordem dentro das canaletas, prontas para o manuseio e a decifração do enigma de formar as palavras. Para ele coisa lúdica, de desejo. Coisa de ver com o corpo, com as mãos. Isso, sim, entendemos bem, esse tempo em que ver tinha essa relação tão íntima com o pegar com a mão. 

A pequena solidão dos começos infantis. Das descobertas. Dos recursos que encontramos para enfrentar a noite e seus monstros, o desamparo, as separações (separar como parte, também, do crescimento). Encontros singulares, cada um a seu modo, ao mesmo tempo com a ênfase posta mais do lado da aventura, do experimentar e descobrir (mas também de renunciar, ou perder, por vezes) do que propriamente em uma experiência concentrada no eu, no narcísico. Não se trata de algum movimento do pequeno herói, mas, sim, de seu avesso, de se deixar perder, mergulhar. É o que ele gosta no relato de Marianne em Petite nuit

 “Um livro nos toca quando ele toca aquilo que nos deixa abandonados, sem amparo, sem referências.” Quando ele nos toma sem aviso, “pela mão, pela garganta, por onde for”, e com isso nos transporta. Ele é feito para nos carregar quando a gente aceita ser carregado por ele dentro de nós. De certa forma assim nos fazemos acompanhar, cuidar. Nesse sentido, ele pode ser o amuleto, o paninho transicional que nos acompanha. 

A leitura de pequenas caixas vai também produzindo associações no leitor. Lembro desde muito cedo carregar um livrinho, em viagens de fim de semana ou de férias com a família, ou em uma sala de espera (sempre tantas na vida); também em algum compromisso dos adultos onde a gente, criança, tinha que estar. Bem mais tarde, principalmente na faculdade, andava sempre com uns dois ou três (porque podia precisar para esta ou aquela ocasião), os colegas riam com isso, porque era constante. Talvez fossem mesmo, de certa forma, protetores.

Transicionar, transportar e também transformar. Trazer junto essa faísca das primeiras incursões, do inaugural do desejo, e ao mesmo tempo transitar pelo que já não é mais infância, luto dessa perda do lugar primeiro, para adentrar outros. Estarmos disponíveis a essas transformações mesmo que invisíveis ou presentes em traços mínimos não é qualquer coisa – pois nunca sabemos o que é que vai movimentar em nós, o que “se nota na hora sem saber”. É um pouco deste modo que a leitura nos transporta, mas esse holding (e aqui ele se refere a Winnicott, presente na narrativa em Petite nuit) não é nunca um elemento fixo, e sim de movimento, flutuante, como a rebentação de uma onda quando ela se retrai e de repente se relança com força inesperada.

Imagens que vão sendo associadas na sequência do livro de Didi-Huberman, uma delas o encontro de papéis da mãe, depois de sua morte, onde em alemão (língua que ela proibiu para ele) encontra as anotações das poesias de Goethe, no alemão de sua juventude, que ela tanto amava; e junto, o canto da resistência francesa escrito no tempo da guerra. 

Passa por Walter Benjamin e o Infância em Berlim, com os pequenos textos fragmentários das experiências infantis que vão para além do si mesmo, e que vão de alguma forma serem transportados, como forma, para sua escrita. Montagens, mais do que a narrativa em continuidade (que, sabemos, vai marcar de forma especial o estilo de sua escrita).

Didi-Huberman vai dando lugar, assim, a uma espécie de sublinhar, de remontar às técnicas infantis. Quando tinha medo à noite, na infância, a partir das coisas noturnas, sabia que precisava desmontar este medo, desarticulá-lo de alguma maneira, quebrá-lo em pedaços. 

Escrever e ler, para abrir os olhos à noite, nos propõe. Ler é ligar, é conectar. Nos fala, então, da técnica que encontra para articular o ler e escrever com o que vem da “técnica” de certa maneira herdeira da forma de enfrentamento dos medos na infância. Desarticular e ligar. Conta do que costuma fazer, cortando folhas de ofício em quatro partes, fazendo então inúmeras fichas de papel. Em cada parte, escreve algo, uma frase, alguma coisa, e depois busca o escrito que resulta em um conjunto, já tendo agora embaralhado os papéis. Fragmentos que se recombinam. Técnicas infantis que agora, com essas fichas de leitura podem virar um novo jogo, uma nova arquitetura.

Cartuchos, munição para uma “máquina de guerra” contra os “aparelhos de estado” do pensamento. Recombinados, esses pedaços de papel que proliferam produzem novas constelações onde jogar com a mistura faz o jogo da leitura virar jogo de escrita.

“Cortar para inventar diferenças e separações, remontar para inventar contatos e afinidades.” E se pergunta: como fazer isto? Lê, de Marianne, a forma pela qual ela se movimentava na leitura: abrindo o livro ao acaso, destacando as partes mais famosas, se detendo, explorando as menos familiares, tentando montar uma ordem, aceitando também a desordem. Uma leitura inquieta, ele aponta, que pode produzir este efeito maravilhoso de dar origem a um jogo de escrita.

Ele inclui sua paixão pelas imagens na relação ler, ver escrever (relação que foi também interrogação de Benjamin). Diz que de alguma forma, para ele, cada livro é como um livro ilustrado. Aqui outro caleidoscópio, a força mimética da linguagem recuperando as imagens que desde a infância fazem também entradas na linguagem, lembremos essa passagem tão forte de Benjamin quando dizia que as crianças entram nas palavras como se entra em uma nuvem, carregadas de sentidos, sons, imagens; mosaico de coisas heterogêneas… Associa o Livro das Passagens, de Benjamin a um grande Lego, se a gente se reporta a esse jogo das montagens, que todos conhecemos.

A imagem ganhando um lugar de importância, com sua legibilidade podendo assumir também caráter político e revolucionário, subversivo. Sua legibilidade como aquilo que forma uma liga entre elementos que se dão a ver, uma nova formação: constelação potente no presente, em seu tempo – diferente do que pensar que o passado ilumina o presente e que o presente iluminaria o passado.

Por mais trabalhado, até mesmo sofisticado o sistema de Didi-Huberman em sua produção, o que ele nos diz nesse escrito é que seu sistema de fichas, suas caixas de leitura ou seus atlas visuais “continuam a ser o que sempre foram, meus papeizinhos, meus cubos, meus livros ilustrados, meus jogos de cartas” ou mesmo as suas colagens de infância. As matrizes técnicas para ver, que envolvem o ensaiar, que fazem a experiência de novas maneiras de ler o mundo.  

Duas associações mais, para concluir. Há pouco tive nas mãos o livro mais recente do escritor argentino Alan Pauls – Alguien que canta en la habitación al lado -, que fala também a partir do ler, da leitura: tudo começa, com relação a se tornar um leitor, pelo fato de que “alguien me le”. Linda ressonância entre as línguas, no texto em espanhol o sentido que vem na frente é o que quer dizer que alguém lê para mim, está falando das histórias que os adultos leram para ele desde criança. Mas para nós o que ressoa de pronto é o “alguém me lê”. Não é bem de onde surge a nossa possibilidade de existência, e portanto, de leitura?

A outra, foi o impacto que me causou nestes dias, o encontro com a tela La liseuse (a leitora), de Picasso (Museu Picasso, Paris). Justo quando estava às voltas com a leitura das Pequenas caixas, tendo recebido com muita alegria a bela tradução para o português realizada por Anelise De Carli e  Elisandro Rodrigues, em edição que agora chega à nós.

Novas maneiras de ler o mundo. A importância de fazer o gesto.

(*) Psicanalista da APPOA.

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