
Márcio Pereira Cabral (*)
“Eu não acho que os super-ricos estejam apenas entediados. Eu acho que eles têm uma combinação de poder extremo com ressentimento profundo. É aí que mora o perigo.”
— Jesse Armstrong
Quatro bilionários da tecnologia se isolam em uma mansão de luxo nas montanhas de Utah, enquanto o mundo lá fora mergulha em pânico e caos. Do lado de dentro, o colapso é tratado como uma rodada de negociações. Nenhum deles está em busca de soluções ou de salvação coletiva. Estão ali para decidir quem vai lucrar mais com o fim — ou ao menos com a sua aparência.
Essa é a base de Mountainhead, filme dirigido por Jesse Armstrong, criador da série Succession. Mas não se trata de uma sátira distante ou alegoria futurista. A trama parece escrita com a tinta fresca do presente: algoritmos fora de controle, inteligência artificial como chantagem, redes sociais causando surtos coletivos, deepfakes desorganizando o sentido. O que Armstrong constrói é um retrato feroz do que acontece quando o poder escapa da política e passa a operar diretamente sobre os afetos, a linguagem e a percepção da realidade.
O enredo acompanha Ven Parish, CEO da rede social Traam, cuja nova tecnologia de manipulação de imagens dispara uma crise global de desinformação. Ao invés de conter o desastre, Ven quer usá-lo para adquirir a Bilter, empresa de IA comandada por Jeff Abredazi — o único do grupo que ainda hesita, por ambição ou por cálculo, em entregar tudo. Randall Garrett, investidor veterano e doente, aposta na fusão como seu legado, seu “pacto de sobrevivência”. Já Hugo “Souper” Van Yalk, anfitrião do encontro, encarna o desejo de pertencer: quer ser finalmente admitido entre os gigantes, mesmo que para isso precise ajudar a apagar o resto do mundo.
Não há heróis. Não há dilemas morais. A humanidade não entra em cena. São corpos fechados em seus próprios números, tratando o colapso como ativo financeiro. Nada mais contemporâneo.
A falência do vínculo e a performatização do fim
O que Mountainhead escancara, sem precisar gritar, é que já estamos vivendo a era do colapso privatizado. O fim do mundo não é mais um cenário temido — é um produto em disputa. As grandes fortunas não querem evitar o desastre. Querem posicionar-se estrategicamente diante dele.
O mundo desaba, e eles jogam pôquer com cláusulas contratuais. Pintam no próprio peito o valor de seus patrimônios. Disputam acesso à imortalidade via tecnologia. Tudo isso enquanto o resto da população — que sequer aparece no filme — tenta sobreviver aos efeitos daquilo que esses homens operam como se fosse apenas uma simulação.
A linguagem, nesse universo, já não serve para estabelecer laços. Serve para manipular, simular, ocultar. As imagens não dizem — apenas afetam. A verdade se tornou obsoleta. E a política foi rebaixada a ferramenta de marketing para bilionários ressentidos com o mundo que não os ama o suficiente.
Succession, Musk, Trump — e o espelho invertido do poder
A genealogia entre Succession e Mountainhead é evidente — mas há um deslocamento decisivo. Se a série ainda nos oferecia os restos humanos de uma família de magnatas se debatendo entre culpa, afeto e poder, o filme já mostra uma elite que deixou até isso para trás. Não há mais dilemas nem disfarces. Só resta a técnica, o capital e o cálculo. São homens que já não fingem que agem em nome de algo maior. Agem por si — e pelo jogo.
Essa lógica aparece de forma escancarada na recente guerra de egos entre Donald Trump e Elon Musk. Os dois, durante anos, foram aliados táticos num projeto que combina autoritarismo, antipolítica e fetiche tecnológico. Musk defendia Trump quando era conveniente, e Trump exaltava Musk como gênio da livre iniciativa. Juntos, personificaram uma nova forma de poder: performática, obscena, bilionária, descomprometida com a realidade factual e movida por cliques.
Agora, distanciados e em disputa aberta, exibem aquilo que Mountainhead antecipa com precisão: quando o mundo real entra em colapso, os donos do sistema não propõem saídas — eles brigam entre si para ver quem controla os destroços. A briga entre Musk e Trump não é entre projetos opostos. É entre dois homens que operam pela mesma lógica e disputam quem vai moldar o mundo à sua imagem.
Ambos representam formas distintas de dominação sem mediação: Musk aposta na automação total da vida, na glorificação do algoritmo, na ideia de que tudo pode ser resolvido por dados e foguetes. Trump representa a brutalidade direta, o discurso que dispensa qualquer verniz institucional. Um se vende como vanguarda racional do progresso. O outro, como expressão visceral da “vontade do povo”. Mas ambos estão ancorados na mesma crença: a de que o mundo é um palco privado, e a humanidade, um ativo a ser administrado.
É esse o ponto que Mountainhead revela sem precisar nomeá-los. Os personagens do filme falam pouco, mas dizem muito. Jogam pôquer enquanto cidades colapsam. Negociam fusões enquanto o planeta queima. Eles não querem governar — querem vencer. Não querem mediar conflitos — querem deletá-los. E, no fim, são só faces de uma mesma moeda: a do poder que perdeu qualquer relação com a vida comum e se tornou puro gozo de si.
A montanha como sintoma
A mansão que dá nome ao filme — Mountainhead — remete ao romance The Fountainhead (1943), de Ayn Rand, obra que se tornou referência ideológica entre empresários neoliberais e defensores do individualismo extremo. No livro, o arquiteto Howard Roark desafia convenções sociais em nome de sua liberdade criativa absoluta, tornando-se símbolo de um ego heroico, auto-suficiente e descolado de qualquer obrigação coletiva. Para boa parte da elite americana, The Fountainhead é quase um manual de conduta: vença, ainda que seja sozinho — e, de preferência, acima dos outros.
Mas Armstrong faz da montanha algo oposto a esse ideal: ela é sintoma. Lugar de isolamento absoluto, onde o mundo vira tela e os outros desaparecem. Um bunker com jacuzzi, onde só entra quem puder pagar para não sentir o colapso — apenas assisti-lo.
Ali, os personagens se observam como marcas, se desafiam como algoritmos, se negam como humanos. A realidade é só mais uma camada de interface. E o colapso, mais uma oportunidade de performar transcendência.
É nesse ponto que o filme se recusa a oferecer catarse. Não há desfecho moral. Há uma transação. Um contrato. Uma nova fusão. E o mundo, que siga derretendo.
E então, qual a saída?
Ao final do filme, um dos personagens medita em silêncio em sua varanda, agora finalmente bilionário. O plano é bonito. A neve cai. Tudo parece calmo. Mas a cena é uma piada. Um meme espiritualizado em 4K. Um tutorial de como vencer o apocalipse sem precisar levantar da poltrona.
Mountainhead não propõe saída. Mas talvez, justamente por isso, nos obrigue a perguntar: e nós? Seguiremos assistindo os donos do mundo decidirem nosso destino entre uma rodada de pôquer e outra? Vamos aceitar que o colapso virou investimento, e que só nos resta sermos dados, alvos ou extras no reality show dos muito ricos?
A saída talvez não venha do topo da montanha. Talvez comece quando pararmos de naturalizar esse jogo. Quando deixarmos de romantizar bilionários, de aceitar que o futuro seja privatizado, de tratar a tecnologia como fetiche redentor.
A saída não está pronta. E isso é o que mais assusta — e o que mais exige de nós. Porque se eles estão confortáveis, é sinal de que ainda não está doendo o bastante no topo.
(*) Psicanalista, professor Mestre pela UFRGS, diretor do Instituto SIG – Psicanálise & Política e do Instituto E Se Fosse Você?
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