Opinião
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3 de junho de 2025
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09:47

Dias de espanto (por Coluna da Appoa)

Foto: UENP
Foto: UENP

Volnei Antonio Dassoler (*) 

Entre tantos outros efeitos forçados pelo contexto da pandemia que acabaram se instalando em nossas vidas, está a constatação de que muito do que costumávamos fazer presencialmente podemos, hoje, realizar de forma remota – e, muitas vezes, é a opção que escolhemos. Essas mudanças de comportamento alcançaram as atividades profissionais, e a grande maioria dos eventos, como congressos ou simpósios, migraram para a modalidade remota. Vantajoso em vários aspectos, essa variante suprimiu as vicissitudes dos encontros e fez desigual o investimento necessário em termos de presença física e do pensamento. Se os movimentos e deslocamentos requeridos do corpo minguaram, as exigências para o exercício do pensamento aumentaram, circunstância que, raramente, se cumpre satisfatoriamente.

Apesar do fenômeno apontado, os eventos presenciais ainda não se encontram em vias de extinção e, dias atrás, estive em um seminário em São Paulo. Como corriqueiramente acontece, coisas interessantes ocorrem fora dos espaços formais onde os debates se desenvolvem. Minha primeira atividade profissional, datada dos anos de 1990, requisitava viagens constantes, inclusive idas a São Paulo. Durante esse período, várias delas aconteceram obedecendo os roteiros calculados, enquanto outras enveredaram para fora dos circuitos previstos. Desde então, fiz outras viagens, visitando lugares distantes da estética afetiva e material daquela época. Mas, nessa última estada, quis reencontrar o “centro”. Interessavam-me os falares, os falantes, o tangível e o intangível aos sentidos.

Essa pequena aventura, nos intervalos do congresso, não era uma errância desorientada, tampouco respondia ao pedantismo de um projeto de flâneur performatizando uma rasa sensibilidade contemplativa. A cidade era o destino. Misturado à multidão, a cidade ainda guardava um misto de estrangeiridade e, ao mesmo tempo, uma surpreendente familiaridade. Não houve, no meu vagar, nenhum momento de júbilo por um reencontro com o passado, tampouco uma revivência memorável. Houve, sim, a estranheza da presença de um sentimento de espanto que se fez notar acompanhado de um pensamento: “já vivi muitas coisas”, seguramente mais do que seria possível esboçar um projeto biográfico pessoal. 

Assim foi que, durante dias, estive às voltas com a reverberação da palavra “espanto”, que se tornou uma hóspede, simultaneamente intrusiva e criativa. Só após o retorno pude perceber, retroativamente, uma inflexão no modo como meu olhar se posicionava naqueles dias, comparado ao meu olhar de tantos anos antes. O olhar que eu tinha, desta vez, era direcionado e objetivo; era o olhar de alguém avançado no domínio dos códigos do mundo e que, por isso, parecia seguro de que buscava algo, de saber o que queria. Em contraste, se fosse descrever meu olhar de há três décadas, enquanto passeava pelas selvas de concreto, diria que era um olhar ávido, flutuante e atento, prenhe de toda a ordem de espantos. O que intrigava é o fato de que a palavra espanto estar praticamente em desuso no vocabulário coloquial e sua insistência, a princípio, parecia deslocada, sem fazer muito sentido. “Espanto” é uma palavra que evoca tanto temor e medo quanto assombro, admiração e mesmo a nomeação do inesperado e do surpreendente, um léxico de afetos contraditórios desfrutando do mesmo território. 

A palavra é um operador democrático e universal no processo de vir-a-ser da condição de humanos. A palavra, antes de tudo, é uma tentativa, um arranjo mais ou menos bem-sucedido de estabelecer laço com o mundo e com os outros, sejam eles distantes ou próximos do nosso espelho narcísico. No entanto, como sabemos, nem todos escutam o que dizem e, muito menos, o que os outros lhe dizem. Escrever é, também, uma forma de se escutar; ler é outra maneira de se deixar escutar. Como bem sabemos, as palavras curam e machucam; confundem e esclarecem; criam e limitam; acolhem e, na sua ausência, desamparam. As palavras podem ser excessivas, inúteis ou podem virar canto, aconchego e amor. Achamos que dominamos as palavras e seguidamente tropeçamos nelas. Por isso, vale lembrar de que para além do que é dito, há o dizer, ou seja, algo que está à espera de ser lido. Há momentos em que nos confrontamos com nossa covardia, e há outros que somos surpreendidos por uma coragem impensada. Aprendemos que a aposta na vida nunca se dá sem a companhia do medo, da angústia ou, muitas vezes, de ambos. Em cada palavra que nos vem à mente – ainda que não em todas elas – há uma questão a ser formulada: O que lhe causa espanto?

(*) Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA. Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). 

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