Opinião
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11 de junho de 2025
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08:10

A representação de qualidade do senador (por Céli Pinto)

Por
Sul 21
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Presidente do Senado Federal, senador Davi Alcolumbre | Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
Presidente do Senado Federal, senador Davi Alcolumbre | Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Céli Pinto (*)

O presidente do Senado, ao se manifestar contra a cota de 20% de cadeiras no parlamento para mulheres, afirmou: “Na hora que fizermos uma cota para a quantidade de mulheres no Parlamento, nós vamos acabar não dando condições adequadas para elas representarem com qualidade a sociedade brasileira” (Davi Alcolumbre, Folha de São Paulo,  06/06/2025 p. A12).

Não costumo começar meus artigos de opinião com citações anedóticas mas, frente a esta, não pude me furtar de fazê-lo. Há uma multiplicidade de argumentos contra ou a favor da reserva de cadeiras no parlamento para mulheres, mas não é sobre este tema que quero me ater. Também não me deterei no machismo primário do senador ao se atribuir um “nós” masculino por óbvio, como se coubesse a ele dar condições para as mulheres atuarem adequadamente na política.

Meu foco é o aspecto anedótico da manifestação: se as mulheres, ao chegarem ao parlamento por cotas de cadeiras, não representariam com qualidade a sociedade brasileira, o senador está afirmando que o atual Congresso Nacional representa com qualidade a sociedade brasileira. Meu texto podia terminar aqui, dizendo que a afirmação prova que Alcolumbre está, na melhor das hipóteses, completamente equivocado.

Mas vou adiante. Sem medo de errar, considerando as legislaturas pós-1950, excluindo os arremedos de parlamento durante a ditadura militar, afirmo que a atual legislatura do Congresso Nacional é a de pior qualidade entre todas que a sucederam. E isto não acontece porque o parlamento brasileiro tenha primado, ao longo dos anos, por uma qualidade surpreendente. 

A leitora e o leitor poderão argumentar, como alguns jornalistas teimam em querer ensinar, que os 513 deputados e deputadas e os 81 senadores e senadoras estão lá porque foram eleitos e representam a vontade do conjunto dos eleitores.  Isto é, no máximo, uma meia verdade. Sim, parlamentares são eleitos pelos votos dos eleitores e ponto final. Tudo o mais é pura fantasia.

Os 594 parlamentares que formam o Congresso Nacional são, em sua grande maioria, homens brancos, de classe média alta ou muito ricos, com instrução de nível superior. O povo brasileiro tem 51,5% de mulheres, 55,5% de negros e pardos, 18,4% com nível superior de ensino. Dados do IBGE de 2023 apontam que 60% dos brasileiros vivem com até um salário mínimo por mês. 

Para começar, é preciso admitir que as perspectivas a partir das quais os interesses são formados diferem de maneira radical entre os 594 parlamentares e o conjunto da população do país. E isto não é um detalhe. 

Então, por que eles receberam votos?  Conforme o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, nas eleições de 2022, apenas 28 dos 513 deputados se elegeram sem a dependência dos votos do partido.  Portanto, mesmo havendo uma cláusula de barreira que impede que alguém chegue a ser deputado federal com 3 ou 4 votos, o que já aconteceu no passado, os grandes puxadores de votos trazem para dentro do parlamento pessoas que não foram escolhidas pelos eleitores e que, muitas vezes, nem sabem por que estão lá.

Quando os arautos da imbecilidade dizem que o povo brasileiro não é politizado porque não lembra em que deputado votou na última eleição, não consideram o fato de que a maioria que responde assim votou em alguém que apareceu durante as eleições e logo desapareceu do cenário político como perdedor. Duvido que os eleitores de Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli, Luiza Erundina, Lindbergh Farias, Erika Hilton ou Pastor Henrique Vieira não lembrem que votaram neles. 

Pessoalmente defendo o voto em listas partidárias, organizadas a partir da votação de filiados em cada partido, obedecendo a alternância de gênero e raça. Isto posto, a questão não é “eu ter meu deputado”, mas como os candidatos chegam às listas abertas dos partidos.  

Nesse momento, outra falácia se coloca. Ninguém pode ser representado por um deputado ou deputada por um conjunto de razões, mas duas delas são centrais. A primeira e mais óbvia é que a grande maioria de nós votamos em candidatos que não se elegem, esta é uma questão matemática.  A segunda é porque o interesse público não é igual à soma dos interesses de cada um dos eleitores. Na maioria das vezes, os interesses privados são a negação do interesse público. Por exemplo: o interesse privado é pagar menos impostos, mas o interesse público indica que saneamento básico, saúde, escola e segurança adequadas decorrem do pagamento de impostos.

Voltemos, pois, à atual legislatura, cuja qualidade é balizada pelo presidente do Congresso Nacional. Afora honrosas exceções, o conjunto dos deputados e senadores da República estão fazendo de seus mandatos espaços para defender interesses  de sua parentela estendida ou, os mais articulados ou espertos, interesses de classe, na grande maioria coincidentes com os interesses da burguesia, principalmente do agronegócio. Por isso, a mais importante questão é assegurar emendas parlamentares que só não podem ser chamadas de um ato de sequestro do orçamento público porque foram entregues ao legislativo de bom grado pelo ex-presidente. Na melhor das hipóteses, quando não são usadas para fins pouco republicanos, as emendas transformam os deputados federais em uma espécie de vereadores federais, preocupados com as cidades onde se encontram seus eleitores, quando não seus pais, mães, avós ou filhos como prefeitos.

É assustador não haver nenhum projeto de importância para o país, em qualquer área, a ocupar as discussões parlamentares. O que vemos é uma grande maioria, formada por deputados e partidos de direita ou extrema-direita, a vender muito caro qualquer aprovação de projeto que interesse minimamente ao conjunto da população. No passado, havia um grupo de deputados chamados de baixo-clero, formado por aqueles que não apresentavam projetos, não eram escolhidos para as principais comissões, não exerciam liderança de qualquer espécie. O melhor exemplar deste grupo foi Bolsonaro, que passou 28 anos no Congresso e não apresentou nem um projeto.  Atualmente ninguém mais fala no baixo clero, não porque essas pessoas tenham desaparecido, mas porque tomaram conta da Câmara dos Deputados. Para continuar com a linguagem eclesiástica, diria que foi o alto-clero que desapareceu, com raras e honrosas exceções.

Frente a este descalabro, chego a sentir saudades do tempo em que os golpistas de ocasião planejavam que, ao chegar ao poder,  fechariam  o Congresso imediatamente. Os golpistas de 2022/23, com o projeto Punhal Verde Amarelo, não se ocuparam com o legislativo, planejaram assassinar o chefe do Executivo e seu vice e alguns membros da suprema corte do país.  Concluindo, então, dá para entender o que Davi Alcolumbre quer dizer quando fala em representação com qualidade.

(*) Cientista política, Professora Emérita da UFRGS.

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