
Márcio Pereira Cabral (*)
Por que nos fascinam tanto as vilãs? O que há de tão cativante em personagens como Odete Roitman e Maria de Fátima, da novela Vale Tudo, que, mesmo décadas após sua exibição original, continuam viralizando nas redes sociais, sendo replicadas em memes, camisetas e reels de humor? Mais do que nostalgia ou admiração estética, esse fenômeno revela um traço inquietante do nosso tempo: a identificação com figuras perversas que já não chocam, mas fazem rir. Quando o preconceito vira comédia, o que está em jogo não é só uma distorção moral — é um sintoma profundo do mal-estar contemporâneo, que a psicanálise pode ajudar a escutar.
O gozo da transgressão
Na narrativa clássica da telenovela, o vilão sempre ocupou um lugar ambíguo. É ele quem movimenta a trama, desestabiliza as relações e coloca em cena o que a norma social tenta reprimir: o desejo de poder, o impulso egoísta, o gozo da transgressão. Odete Roitman não é apenas uma mulher rica, cruel e preconceituosa; ela é a encarnação do cinismo de classe, do racismo cordial e da violência simbólica que estrutura a sociedade brasileira. Maria de Fátima, por sua vez, é a filha ambiciosa que troca a própria mãe por status, e que envergonha menos por seus atos do que por revelar o quanto esses atos fazem sentido dentro da lógica neoliberal do “vencer a qualquer custo”.
Lacan nos ensina que o sujeito se constitui na falta, no desejo do Outro, e que o gozo — essa satisfação que escapa ao prazer — está sempre em jogo quando nos confrontamos com figuras que transgridem a ordem simbólica. O vilão, então, torna-se objeto de um fascínio que revela mais sobre quem o observa do que sobre ele próprio. O que há de tão atraente em Odete é que ela diz sem pudor aquilo que muitos pensam, mas não ousam admitir. Ela goza onde a maioria silencia. E é precisamente isso que a torna tão contemporânea.
Hannah Arendt nos alertou sobre a banalidade do mal: a capacidade de agentes comuns, inseridos em sistemas autoritários, cometerem atrocidades sem remorso, apenas se adequando às regras do jogo. Em Vale Tudo, Odete Roitman nunca precisou sujar as mãos. Bastava-lhe exercer sua posição de poder com frieza, desdém e um humor cortante. Seu preconceito se vestia de elegância. Hoje, num país atravessado pela ascensão da extrema-direita, discursos que antes seriam escandalosos — como o desprezo pelos pobres, a naturalização da desigualdade e a glorificação da violência — se tornaram comuns. E é isso que nos faz rir de Odete: não por causa dela, mas porque já nos acostumamos com o mundo que ela representa.
A comédia é uma forma de economia psíquica. Rimos para aliviar a tensão, para não enlouquecer diante do insuportável. No texto O Chiste e sua Relação com o Inconsciente, Freud mostra como o humor permite ao sujeito tocar conteúdos recalcados sem o peso da censura moral. Quando rimos de Odete Roitman, talvez estejamos tentando domesticar o horror do reconhecimento: somos parte de uma sociedade que premia o cinismo, que transforma em meme aquilo que deveria ser denúncia.
O vilão como ideal do eu?
A identificação com personagens cruéis não se dá apenas por oposição (o “gostar de odiar”), mas frequentemente por admiração. Na falta de heróis éticos, os vilões assumem o lugar de sujeitos potentes, livres, capazes de agir sem culpa. No mundo real, onde a honestidade parece sempre perder, Odete e Maria de Fátima aparecem como versões caricatas, mas desejadas, de um “eu possível” — aquele que vence, mesmo que ao custo do outro.
O ideal do eu é a imagem que o sujeito constrói como modelo de identificação. Se esse ideal passa a ser ocupado por figuras como Odete e Maria de Fátima, é sinal de que há um esvaziamento simbólico da ética coletiva. Quando a honestidade se torna ridícula e o oportunismo é exaltado, o supereu se transforma num tirano que não diz “não gozarás”, mas sim: “goza, mesmo que seja à custa do outro”. É o que Lacan chamou de supereu obsceno, que incita ao gozo sem limites, sem lei, sem Outro.
Não é por acaso que o bordão de Odete — “o Brasil não é para amadores” — tenha voltado com força total em tempos de crise política e moral. Trata-se de um mantra cruel que justifica a injustiça como parte da regra do jogo. E quanto mais se compartilha esse cinismo como sabedoria popular, mais se consolida uma cultura do desalento, onde “vale tudo” mesmo — menos acreditar na possibilidade de transformação.
Quando tudo vale, nada tem valor
Vale Tudo foi escrita para ser uma crítica social, mas virou um espelho. Ao perguntar “vale a pena ser honesto?”, a novela captou o impasse ético de um país onde a corrupção, a desigualdade e a impunidade se tornaram estruturais. No entanto, o que era para ser denúncia se converteu, com o tempo, em celebração do “jeitinho”, da malandragem e do sucesso individualista.
A psicanálise ensina que o sujeito é atravessado por contradições. Desejamos o bem, mas também somos seduzidos pelo mal. O que define a ética de uma época é o modo como essas tensões são elaboradas simbolicamente. Quando a cultura abandona a mediação simbólica e entrega tudo ao espetáculo do gozo imediato — seja em novelas, redes sociais ou na política —, o sujeito se vê desamparado, entregue à lógica do mais forte, do mais cruel, do mais visível.
A transformação de Odete Roitman em ícone pop é um sintoma. Ela virou meme não porque a rejeitamos, mas porque a assimilamos. E, ao fazer isso, deixamos de nos escandalizar com o que ela representa: a elite brasileira racista, misógina, autoritária, que zomba da classe trabalhadora e trata a democracia como um incômodo.
O riso como defesa e como pacto
Por que rimos da Odete? Porque dói. Porque se levássemos a sério o que ela diz, teríamos que confrontar a violência simbólica que sustenta nosso cotidiano. Rir é, então, uma forma de defesa — mas também pode ser uma forma de cumplicidade. Quando o humor vira muleta para não pensar, para não se implicar, ele deixa de ser libertador e passa a ser instrumento de anestesia coletiva.
É nesse ponto que a psicanálise faz sua aposta ética: não se trata de abolir o riso, mas de escutar o que ele esconde. O que está recalcado ali? Que gozo é esse que nos arranca gargalhadas diante do ódio de uma mulher rica que despreza tudo o que é popular, nordestino, feminino, pobre? O que há de tão atraente nessa crueldade que a transforma em “diva”?
Freud dizia que os sintomas falam. A forma como consumimos o mal na cultura diz muito sobre o que não estamos querendo escutar. A identificação com a vilã revela que, em tempos de incerteza e desesperança, o sujeito prefere se colar ao gozo perverso do Outro do que sustentar seu próprio desejo ético. Porque desejar com ética dói. E, hoje, quase ninguém quer sofrer — só gozar.
Vale Tudo permanece viva porque continua perguntando: em que tipo de sociedade vivemos, se é mais fácil amar a vilã do que acreditar na honestidade da heroína? A novela termina com Raquel, a mulher simples e ética, vencendo. Mas no imaginário coletivo, quem venceu foi Odete — justamente porque ela representa o pacto silencioso de uma elite que sobrevive às custas do povo e ainda faz piada disso.
A psicanálise não condena o desejo, mas convida a interrogá-lo. Se nos identificamos com a vilã, não é porque somos maus — é porque estamos desamparados, cínicos, seduzidos pela falsa promessa de que, se tudo vale, seremos finalmente livres. Mas liberdade sem ética é só outro nome para dominação.
Rir da Odete não nos salva. Entender por que rimos, talvez, seja o primeiro passo para reverter esse pacto com a barbárie.
(*) Psicanalista, professor, mestre pela UFRGS e diretor do Instituto SIG – Psicanálise & Política
§§§
As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.