
Manuela Sampaio de Mattos (*)
“A escrita também faz parte da formação psicanalítica”, disse o colega Robson Pereira em sua fala na Jornada de abertura da APPOA em 2023. Esta frase vem reverberando em mim desde aquela ocasião, quando, coincidentemente, fui convidada a integrar o grupo de colegas que escreve para a Coluna da APPOA no Sul21. A cada vez que enfrento a folha em branco para diferentes escritas, retorno à frase. Penso nos efeitos formativos ao longo dos anos e em como o inconsciente vai se atualizando em fricção com os acontecimentos que nos circundam, levando também em conta a máxima lacaniana de que um analista, para estar à altura de seu tempo, deve colocar em seu horizonte a subjetividade de sua época.
Assim, para mim, vai se tornando cada vez mais viva a complexidade da formação analítica à medida em que a escrita se torna imperativa, como integrante do tripé no que toca à formação teórica. Isso não me parecia evidente, mesmo que tenha entendido desde muito cedo que a existência da psicanálise está atrelada a um dever de reinvenção. Este é seu ponto de subversão dirigida a ela mesma enquanto prática e teoria, seu ponto cristal. Portanto, podemos entender que a psicanálise é, também, uma escrita. Escrita em permanente construção e necessariamente sintonizada com aquilo que interroga a pretensa coesão de um saber. Sem interrogação, não há reinvenção possível. Não há psicanálise possível.
Há que se ter coragem de tomar posição diante daquilo que a realidade nos impõe como o que ata e desata os fios do laço social. E não se toma posição sem colocar o corpo em cena. Nesse sentido, permito-me agora uma associação que leva às interrogações que ando escutando em tempos de carnaval. Tempos de divã purpurinado, conforme fala nossa colega Carolina Mousquer Lima. Tempos de festas e trocas com os amigos.
Nesta época do ano, o corpo retoma sua potência vital, criativa, sua porosidade à alteridade e à coletividade. Reflexões interessantíssimas são feitas a partir deste rito que (re)inventa o Brasil, conforme defende Luiz Antônio Simas. Perguntas sobre o formato dos relacionamentos, monogamia, fantasias, planos a serem realizados antes ou depois do carnaval, viagens, perdas, ganhos, inibições, lamentos, revolta com os imperativos de felicidade, flertes com imperativos de gozo, etc. Fato é que, dificilmente, alguém fica alheio de se posicionar com a chegada deste momento “fundante” do Brasil. Mesmo quem está em outros lugares do mundo acaba trazendo, de alguma forma, aquilo que o carnaval causa em si.
Quando se aproxima a saída do Bloco da Laje em Porto Alegre, que ocorre no último domingo do mês de janeiro há 12 anos, a cidade vai se transformando, vivendo uma experiência única de coletividade. Os ensaios colorem as vestimentas daqueles que vão para prestigiar e participar da construção coletiva da saída do bloco. Mesmo os mais noturnos acordam mais cedo para ajudar a compor, a cada ensaio, este que é um dos eventos mais deslumbrantes e vivos de nossa cidade. As lojas vão se equipando com acessórios nas cores do bloco. Os vendedores ambulantes e pessoas em situação de rua compõem a festa. Os assuntos nas rodas de conversa são atravessados pela pergunta a respeito de quem vai ou não vai no bloco. E por aí vai. Tudo isso acontece e, também, o seu contrário. O reacionarismo aparece nas mais diferentes formas, expondo as contradições mais profundas de quem se considera liberal na política, mas não nos costumes. Algo que se aproxima inevitavelmente da intolerância e do exercício do ódio dirigido contra quem sustenta o querer ser livre para desejar, empatizar, etc.
Simas nos ajuda a pensar essas tensões quando sustenta que o carnaval é um sintoma de nossa sociedade, na medida em que expõe, com pujança, as contradições e os conflitos atinentes à nossa história e ao tempo presente. Carnaval é conflito, disputa. Simas nos elucida que as escolas de samba “recriam no campo simbólico as coletividades que nas experiências cotidianas são aniquiladas”. Nesse sentido, entende que o carnaval não é somente um modo de resistência, ou seja, um modo de resposta às pautas impostas desde fora, mas também uma forma de invenção e instauração de novos modos de vida. Justamente de modos de vida que devolvem o senso comunitário às experiências aniquiladas pela diáspora. Assim, a cultura de diáspora reinventa o que foi aniquilado, tornando as ruas terreiro, um espaço radical de interrogação do mundo e de reencantamento do ser.
Escrevendo bem no meio do feriado de carnaval, logo após o filme ‘Ainda Estou Aqui’ ter ganhado o Oscar como melhor filme estrangeiro, sintonizo com esses atos que encontram as frestas, os espaços necessários de reinvenção da vida e dos nossos fazeres. A indicação ao Oscar e o prêmio conquistado foram incorporados no carnaval. A imagem de Fernanda Torres pairou no céu de Salvador como portadora da esperança, quiçá nada fugaz, de que as condenações dos algozes da ditadura militar se tornem realidade. Momento histórico único, de encontro e fusão entre as artes, capaz de instaurar algo novo, de desejar a reinvenção da escrita do Brasil.
(*) Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)
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