Opinião
|
14 de fevereiro de 2025
|
10:28

A esquerda sequestrada (por Alexandre Lobo)

Lira (esq.), Lula e Pacheco (dir.) | Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
Lira (esq.), Lula e Pacheco (dir.) | Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Alexandre Lobo (*) 

As eleições de 2022 no Brasil colocaram no governo o presidente Lula frente a um grande grupo de diversas matrizes políticas, tendo em comum a ambígua denominação “campo democrático”. No Congresso, vence o Centrão. O risco que vinha junto com a possível vitória de Jair Bolsonaro seria a guinada do que entendemos como direita ao fascismo. A tensão entre o grupo de esquerda, ou progressista, e o grupo conservador da extrema-direita tem se manifestado desde 2016, quando houve as primeiras manifestações contrárias ao governo de Dilma Rousseff. A democracia burguesa está ameaçada, fragilizada. Que a extrema-direita avançou muito, tanto internacional quanto nacionalmente, é claro.

O governo é de coalizão, e, segundo os mais à esquerda desse governo, só dessa forma se poderia ganhar as eleições de 2022, evitando o fortalecimento dos conservadores neofascistas. O contexto não é favorável ao campo de esquerda. A tentativa de golpe do dia 8 de janeiro de 2023 contribui para a sensação de insegurança. E fica a pergunta: o que poderia ter acontecido na vitória dos neofascistas? Este que vos escreve agora ainda estaria vivo?

Por outro lado, é muito problemático pensar que a salvação se reduza à figura do presidente Lula. Diante deste contexto temeroso, não se pode criticar seu governo sob pena de se fortalecer o outro lado, dar munição aos protofascistas. É como se qualquer crítica fosse um fogo amigo que derrotaria o já frágil governo Lula. Qualquer sopro pode derrubar o único pilar da democracia e abrir caminho para as forças do mal. Não se pode criticar o arcabouço fiscal que atinge em cheio políticas sociais, não se pode criticar a Reforma do Ensino que transforma jovens em matéria-prima de um mercado de trabalho precarizado. Não se pode denunciar que as medidas de austeridade fiscal e a política de juros altos, em verdade, só contribuem para o enriquecimento de quem já está no topo dos mais ricos, que é o setor financeiro. Não se pode dizer que o problema não são os gastos sociais com o funcionalismo público, e, sim, o pagamento da dívida interna e o agronegócio que substitui produtos de alimentos para a população por commodities que rendem dólares. É preciso não acordar o monstro chamado mercado; atiçá-lo vai fazer com que ele cuspa fogo. Em nome da democracia burguesa, em nome de um governo que ameniza o processo de precarização e proletarização da classe média, sacrifica-se o pensamento crítico.

É necessário repensar se tal sacrifício vale a pena. O texto de Vladimir Safatle que fala que a esquerda morreu desagradou muita gente, principalmente desse grupo governista. Mas, antes de mais nada, é necessário munir-se com o pensamento dialético, pensar o movimento, não apenas o momento. É necessário pensar nos mecanismos do movimento que nos levaram ao momento de avanço da direita neofascista. Como disse Safatle, e muitos outros, a esquerda não tem sido esquerda, não tem se mostrado enquanto tal. Na vontade de chegar ao poder por vias democrático-burguesas, faz e se adequa ao jogo burguês. E o preço disso é o esvaziamento de seu caráter antissistema. Fica a pergunta: essa estratégia, a longo prazo, tem dado certo? Se não, então, por que, mesmo que em nome do momento, continuar com ela? Se é justamente essa estratégia que tem deixado que a extrema-direita cresça, qual o sentido de permanecer nela?

Vejamos, em sua origem, a esquerda foi antissistema. Hoje, paradoxalmente, pelo menos em discurso, é a extrema-direita que se apresenta como antissistema.

E por que ser antissistema? Porque o sistema capitalista só dá certo para quem é realmente capitalista, ou seja, para o dono do capital, e dá mais certo na proporção direta ao tamanho do capital. Para o dono da força de trabalho, é o “benefício” da jornada 6×1. Benefício porque, mais de perto, é pior; o caso Zaffari é apenas o que nos aparece. Para quem tem apenas a força de trabalho, é o cotidiano da violência urbana, dos preços disparando, do empréstimo e da prestação vencendo, o aluguel subindo ano a ano mais que os rendimentos (vejam, estou falando em rendimento, não em salário, que é cada vez mais para “privilegiados”), do transporte público atrasado e lotado. É a extrema-direita fascista que canaliza o sentimento de insatisfação, de ser contra “tudo isso”. A direita está fazendo, da sua forma, claro, o papel da esquerda. O problema é que a solução “antissistema” da direita é o combate a um “espantalho” chamado Estado, que impede a livre iniciativa, impede, com sua burocracia, que o cidadão da fila do ônibus abra sua indústria de bolinho, prospere e torne-se dono de uma multinacional. Ao jogar o jogo do sistema, a esquerda governista abriu mão de seu papel de esclarecimento, de mostrar que a base do sistema é o próprio sistema econômico, e que o Estado malvadão é um dos diversos mecanismos de disputa. A esquerda foge desse debate, por isso morreu, por isso passou pela UTI e não saiu.

Além disso, outra grande questão é a criação de um movimento de massas. O aliado da esquerda governista é o Centrão, é ele que mantém o Lula no governo (é possível falar em poder?). Esse mesmo Centrão, faminto por poder, que aparentemente não tem lado, está do lado de quem manda, não tem vergonha de migrar de um governo a outro, o novo da velha política. O União Brasil, que foi do juiz que armou o golpe da prisão do Lula, está na base do atual governo. O MDB da base e do ministeriado é o mesmo de Melo, prefeito de Porto Alegre, que nas eleições de 2020 se mostrava próximo de Bolsonaro. Mesmo entendendo que esses grupos não são blocos homogêneos, estão a anos-luz de questionar a estrutura do capital…

Não se pode fazer greve. Como fazer greve contra um governo de esquerda? Ora, se o governo é de esquerda, o que o sustenta é a desmobilização para não desagradar o monstro cuspidor de fogo? A greve é uma forma de mobilização, uma forma de ação; ela organiza, sistematiza um interesse de uma categoria. Pode ser um mecanismo limitado, se for uma forma pontual, mas, sendo uma ação sindical, é também uma forma de conscientização de classe, de mobilização, organização, não só de forma pontual, mas se significar uma permanente mobilização. Os sindicatos, ao promoverem greve por questões pontuais, devem também mostrar para a categoria a que vem e desenvolver uma cultura de politização e organização; é seu papel “de base”. A atitude passiva frente a um governo, ao contrário, desmobiliza, desmotiva. E, como consequência, não prepara para uma reação às tentativas de golpe e ao avanço da extrema-direita.

Outro problema grave é o foco na figura do Lula. O sequestro da esquerda, refém da extrema direita e do Centrão, o transformou em Dom Sebastião, o líder mágico único capaz de nos salvar do fascismo. A redução da esperança a uma única figura é a expressão da fragilidade. Sem essa figura, estaremos vulneráveis; sem ela, não há o que fazer.

É, ao contrário, a organização, e, como consequência, a despersonificação do campo, das categorias de trabalhadores, de uma classe, que será capaz de conter o avanço do neofascismo. Na ausência dessa figura, o bolo se desmorona. É um paradoxo: apenas a mobilização em prol do governo o manterá no poder. Mas o governo não pode fazer nada para mantê-la; ao contrário, tudo que fizer vai desagradar os verdadeiros donos do poder e será derrubado. Resta somente ficar desmobilizados, como um voyeur, e assistir o governo negociar migalhas para a população, um governo refém de grandes interesses e de si mesmo.

A personificação da salvação na figura do Lula é tudo que é contra a mobilização, a compreensão dialética de que os processos sócio-históricos são resultado da luta de classes. Nesse sentido, da mobilização de uma classe em luta, e não de um personagem mítico e mitificado, de um herói.

A eleição de uma personagem é uma “solução” conjuntural, mas não estrutural. Era necessário evitar a reeleição do negacionista neofascista. Se isso acontecesse, os resultados poderiam ser bem trágicos. Se tramaram um golpe, que felizmente foi um fracasso, o que poderiam fazer se tivessem ganho as eleições? Por outro lado, a vitória, por si só, do Lula, não muda as condições que colocam a extrema-direita em foco. É preciso uma organização das massas para evitar futuras catástrofes. Mas organização em nome de quê? Das mesmas regras que o sistema proporciona? De pequenos benefícios, da manutenção da ordem? Não, é necessário mais. Vale ter como exemplo a vitoriosa greve dos professores federais em 2024. Os governistas afirmavam que a greve não deveria ocorrer, que seria fragilizar ainda mais um governo de coalizão com cheiro de esquerda. Uma crítica ao governo é fornecer alimentos para os golpistas de 8 de janeiro de 2023. Mas, não só em termos de conquistas salariais, reajustes em 2025, de 9%, e em 2026, de 3,5%, sendo que a proposta inicial do governo era de 4,5% em 2025 e 4,5% em 2026, como também a abolição de portarias do governo anterior que aumentavam a carga horária em sala de aula mínima dos professores, dificultando a execução de projetos de pesquisa, ensino e extensão. Se não fosse a mobilização, essas ações não ocorreriam. Como mobilizar para manter sempre o mesmo? É necessário convencer as massas da necessidade de mobilização, mas mobilização para mudanças, para transformações. Gramsci já falava que um dos papéis do partido de esquerda é ser uma espécie de grande “escola das massas”, de esclarecimento contra-hegemônico. É justamente o contrário que essa esquerda governista tem feito. É necessário organização em nome da derrubada do sistema — o que é, paradoxalmente, o que a extrema direita tem feito. De tanto medo da reação do inimigo, a qual interesse se está, de fato, defendendo?

(*) Professor Sociologia – IFRS Campus Osório

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também