
Ronaldo Queiroz de Morais (*)
Vivemos uma contextura societal em que a informação é taticamente guerra por outros meios. A gramática hegemônica estridentemente qualifica de “fake news”. Porém, imagino que a ideia de “informação falsa” restringe o perigo do acontecimento. Faço um desvio do olhar para registrar a existência de uma hiperguerra cotidiana que ameaça a governamentalidade moderna e a existência da democracia. Ela tem o corpo de ciberguerra, porque opera, praticamente, com as mesmas armas, isto é, conjunto de ações ofensivas e defensivas de informações e sistemas informacionais que atuam para negar, explorar, corromper ou destruir as bases deontológicas da verdade que sustentam a ordem cognitiva, epistemológica e comunicacional da sociedade e das instituições. No entanto, diferentemente da guerra cibernética, a hiperguerra é muito mais difusa, a máquina de guerra aparece sem autor claramente beligerante. É fundamentalmente dissuasiva. Conhecemos certamente os alvos e as vítimas. Todavia, do ponto de vista defensivo, pouco sabemos sobre o ator que produz e aciona a bomba informacional contra a sociedade. É militar e/ou civil? Assim, as ciberbombas de contrainformação, que intencionam agenciar a emoção pública, aparecem no bojo múltiplo das “fake news”, esvaziadas de seu propósito belicoso. As infovias das Big Techs representam teatro operacional, graças ao compartilhamento de tecnologia militar, dessa hiperguerra geral que transforma a cidadania em bloco-massa, em detrimento do progresso democrático. Fato incontornável: a sociedade na contemporaneidade tem medo e está em pânico, em decorrência da hiperguerra cotidiana, que utiliza de tecnologia informacional – da arte do simulacro – com a intenção de provocar o acidente comunicacional, ou melhor, pane cognitiva que alimenta a máquina ciberfascista e libera a espoliação neoliberal.
Não é tudo. Toda guerra é meticulosamente preparada. A história dos conflitos beligerantes tem uma importante genealogia. A contextura de preparação da hiperguerra, que agencia a emoção pública, deve ser demonstrada. Importante registrar que o sucesso militar das ciberbombas de contrainformação não decorre da completa imbecilidade ou delírio neural dos indivíduos na contemporaneidade. A adesão inconteste às informações falsas, contidas nas bombas virais, é efeito de explosão anterior das estruturas sociais e cognitivas. Em absoluto, não compõe quadro cognitivo patológico individual, pois reflete o teatro operacional elaborado antecipadamente com o propósito de operar a hiperguerra no cotidiano. Efetivamente, a compreensão da paisagem das imposturas cognitivas que circulam nas ciberbolhas demanda o desenho de uma paisagem total, na qual devemos inserir o processo neoliberal de desregulamentação sistemática e progressiva da economia local e global, a política de flexibilização das relações de trabalho e de alteração da legislação de proteção social e, principalmente, a completa descredibilização do jornalismo e da informação com o advento das plataformas digitais. Sem dúvida, o processo resultou na criação de um Estado Mínimo e de empobrecimento geral dos trabalhadores, criando as condições necessárias à ofensiva belicosa dessas bombas virais. Em síntese, é o esbatimento continuado do bem-estar social que forma o exército de soldados que replicam informações falsas de ódio e pânico, potencializando o poder destrutivo das ciberbombas de contrainformação.
Para o linguista francês Patrick Charaudeau, a ciência da linguagem revela o vigor e o perigo da palavra. É por meio das palavras que manifestamos a rejeição e o amor do outro, também a violência e a pacificação em relação a outrem. Assim sendo, discorro aqui sobre a palavra triste. A palavra que contamina o amor e a paz social. É a bomba viral, aparato bélico da linguagem, que provoca o acidente informacional, o desastre da comunicação pública. É, essencialmente, a palavra-bomba que mobiliza minha escrita. A palavra contaminada pelo ódio e a contraverdade. A palavra em seu contexto neoliberal. Com efeito, o horror do mundo econômico neoliberal demanda a constante destruição da realidade, melhor dizendo, das bases deontológicas da verdade no comum. Absolutamente, não corresponde à criação de outro mundo a partir de linguagem nova, mas à destruição das palavras que inspiram a ordem e a política de um mundo melhor. É a bomba de contrainformação que objetiva destruir a verdade factual. Afinal, as informações econômicas e ambientais não são agradáveis à maioria da população humana. Consequentemente, é imperativo aplicar à informação, ora o veneno para seu perecimento imediato, ora o cosmético para torná-la bem-apessoada, com a intenção estratégica de afastar os espectadores da ação política. É por isso que os baluartes da resistência à completa regulação das infovias são os mesmos que lucram com a lúgubre economia neoliberal e fazem uso da desinformação como máquina de guerra, que forja a ideologia dominante e aumenta consideravelmente o lucro capitalista.
Digo objetivamente, as promessas de ampliação da democracia, das informações e do conhecimento decorrentes do ciberprogresso das máquinas informacionais malograram completamente. O acidente original é obsceno. As Big Techs são parte interessada da hiperguerra cotidiana. O ciberfascismo avança sobre as bases deontológicas da verdade moderna, protegidos pelos barões do Vale do Silício. A contrainformação é a substância da hiperprodução informacional, que impõe o cercamento dos campos de dados, ou seja, a expropriação total da informação individual e coletiva com a finalidade de lucrar infinitamente. Ela é o outro do capitalismo informacional, o acidente que corrompe a informação comum para transformar sujeitos concretos em massas virtuais. A palavra mágica e operacional desse capitalismo – uma espécie de olho de Deus – é o algoritmo. Ele atua nas redes sociais como “mão invisível” do hipermercado, que esconde o segredo do lucro das Big Techs e, fundamentalmente, sua forma de dominação por meio do controle e agenciamento da emoção pública.
Digo novamente, a corrosão das bases deontológicas da verdade tem uma história. Ela decorre de quatro décadas de política neoliberal, quando a sociedade foi orientada massivamente a aceitar a flexibilização da legislação de proteção social e a austeridade econômica como remédio amargo, mas necessário. Por consequência, o Estado foi completamente precarizado nas áreas fundamentais de materialização da cidadania. As instituições de proteção da cidadania no Estado Neoliberal passaram a ser hostis ao bem-estar social. De forma que os laços comunitários e públicos se romperam consideravelmente. O neoliberalismo forjou subjetividade atomizada e empobrecida, na qual os indivíduos perderam significativamente a estrutura cognitiva comum que centraliza informações e saberes, que salvaguardam o ordenamento societal. É o que explica o malogro dos efeitos pedagógicos da informação institucional sobre a consciência dos indivíduos, isto significa, a crise da comunicação pública. Verdadeiramente, é o Estado Moderno que constrói, por meio das instituições, sujeitos públicos. Ele cria sentimento de pertença coletiva e pensamento social alicerçado em uma cultura comum. Entretanto, o Estado Neoliberal – máquina burocrática onde a cidadania se apresenta como mera abstração – alterou substancialmente a relação de confiança da população nas autoridades públicas, após a fragilização das condições materiais de existência social. Nesse sentido, o colapso da informação pública decorre de destruição política, por dentro do próprio aparato estatal, das instituições de bem-estar social. Enfim, o “negacionismo” dos conhecimentos que consta no bojo das informações públicas de hoje resulta dessa política irresponsável. Ela enxugou e enfraqueceu obscenamente as políticas de direitos à cidadania. Assim sendo, a informação pública perde, amiudadamente, potência em face da inexistência de campo cognitivo comum e de sujeitos dotados de cidadania consistente, visto que são facilmente refutadas sob o crivo da explosão de bombas de contrainformação.
Conforme Paul Virilio, abandonar todo o pudor, toda a reserva, não é uma atitude imoral, é uma atitude perigosa. É obsceno, do latim obscenus, isto é, mau agouro, anúncio de futuro temível. E é exatamente o quadro societal perigoso em que nos encontramos. A dissolução da realidade do mundo é, igualmente, a da obscena irresponsabilidade política e ambiental. Basta lembrar que concatenada a cada bomba viral há um discurso irresponsável e perigoso à existência do comum. O problema da explosão de contrainformação nas infovias não é, simplesmente, a presença de mensagem falsa, mas seu perigoso conteúdo obsceno, porque desagregador da ordem social. É por isso que a questão deve ser laborada cuidadosamente, como de defesa do Estado Democrático de Direito e da sociedade civil. Com efeito, configura erro persistir na política de regulação da “opinião”, posto que as bombas virais são de outra substância. É preciso demonstrar que a coisa implica outro nome. Instrutivamente, elas registram a mensagem obscena: sem pudor e sem reserva moral, a fim de derrubar a realidade do mundo a partir da destruição da informação pública. A ciberbomba viral atua no agenciamento da emoção pública, massificando o poder de dissuasão da mensagem-pânico. É parte da hiperguerra que opera no cotidiano. Porquanto, exige resposta de mesma ordem, quer dizer, de defesa da sociedade civil. Vale esclarecer que a opinião é solidária ao senso comum, desenvolve premissa que pode ser verdadeira ou falsa. Ela é de campo oposto à episteme, ainda assim jamais impõe perigo ao comum. Não apresenta discurso-pânico que transforma a sociedade em massa desesperada. Dito sinteticamente, é o obsceno das ciberbombas virais de contrainformação que deve ser objeto de preocupação política, pois contém o perigo do acidente original que progride nas redes informacionais e ameaça a dissolução da realidade do mundo e impede a perspectiva de outro mundo possível.
Por fim, a internet – infovia militar amplamente compartilhada com os novos Barões do Capital – carrega a potência de desintegrar a ordem das nações a partir da capacidade interativa e imediata de cativar a emoção pública. No mundo moderno de materialismo intenso, da mercadoria e do capital, certamente, a questão está, também, imbricada ao sólido interesse econômico. Se a informação verdadeira carrega interesse comercial, o mesmo vale para a falsa. A hiperinflação das mensagens falsas circulando livremente na internet é parte significativa de uma guerra econômica mascarada, com a dissimulação da premissa de “liberdade de opinião”. A internet é o mundo sem lei e sem ordem, mas, igualmente, cibermundo de vigilância total, onde a riqueza se multiplica infinitamente. De forma que o primeiro trilionário da história do capitalismo brotará, em pouco tempo, dessa hiper-realidade infernal, da terra de todos os males, em que reina soberanamente os Barões das Big Techs. Concisamente, o ciberfascismo que criminosamente domina as redes sociais arrasta consigo forte afinidade eletiva com o Capitalismo Tardio. São tripulantes ardilosos das redes informacionais. Longa manus da política de terror neoliberal dos super-ricos. É fascismo neoliberal, totalmente alinhado à governança dos super-ricos. As ciberbombas virais agenciam a emoção pública com o propósito de liberar as vias necessárias de acumulação capitalista. O pânico produz riqueza, pois libera subjetividade docilizante ao capital. A cada segundo, a violência opaca de uma nova explosão de bomba viral, mensagem-pânico que agrupa desesperadamente os internautas no bloco-massa. Não estamos diante da “falsa consciência” de uma ideologia dominante – tão bem anunciada por Karl Marx –, mas o inverso, diante de uma “consciência falsa”, porque está isolada na emoção da instantaneidade de mensagem obscena. É descarga de violência simbólica embrulhada em comunicação. Assim, o cenário político-representativo tem sofrido sensível alteração, os super-ricos estão ativamente transferindo seus interesses aos partidos políticos tradicionais. O segundo governo Trump é emblemático, há onze bilionários no gabinete presidencial, com riqueza superior ao produto interno bruto de 154 países. Sem muito esforço, é possível visualizar a inflexão política. Trata-se de obsceno governo dos super-ricos aos super-ricos. É obsceno, porque anuncia mau agouro à existência da civilização democrática.
(*) Doutor em História Social na Universidade de São Paulo – USP.
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