Opinião
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28 de janeiro de 2025
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09:40

O canto do quero-quero (por Flávio Fligenspan)

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Flávio Fligenspan (*)

O quero-quero é um pássaro astuto e cheio de artimanhas. Coloca seus ovos num ponto do terreno e finge que está cuidando do ninho noutros pontos, para desviar a atenção dos predadores. E uma das táticas é emitir seu famoso canto longe do verdadeiro local de depósito dos ovos. Volto ao quero-quero no final do texto.

Uma das variáveis mais em evidência no atual debate de conjuntura econômica é a relação dívida/PIB, medida em forma de percentual. Ela expressa o peso da dívida em relação a tudo que se produz num ano na economia brasileira. É um indicador que vale pelo seu nível, mas vale também – e muito importante – pela velocidade de seu crescimento. Como ela varia? Em função dos déficits públicos anuais, que devem ser financiados por emissão de novos títulos públicos (aumento da dívida), e em função da variação do próprio PIB. Se o PIB crescer muito, e mais do que a dívida, a relação dívida/PIB naturalmente cai. Seria uma forma saudável de fazer cair o indicador.

E os déficits anuais, como variam? Em função dos resultados primários – receitas e despesas do dia a dia do setor público, sem contar os juros pagos pelos títulos de dívida emitidos no passado – e em função da conta de juros da dívida. A soma dos resultados primários com os juros da dívida constitui o resultado nominal. Assim, se os déficits primários são elevados num determinado ano e/ou se os juros pagos pelo setor público são altos, o numerador da relação dívida/PIB cresce rápido, puxando o indicador para cima.

O Brasil tem atualmente uma relação dívida/PIB em torno de 77% (no conceito de dívida bruta). É mais alta do que a de outros países em estágio semelhante de desenvolvimento. Algo assustador? Não, longe disso. O que mais estimula o debate neste momento não é o nível da relação, mas a velocidade de crescimento; efetivamente, ela avançou rápido nos dois primeiros anos de Lula 3. Os três poderes gastaram mais em 2023 e 2024, e o Executivo, em especial, lançou mão de recursos adicionais para tocar seus programas. Mas, cuidado, por mais que o déficit público primário tenha aumentado, ele é muito pequeno diante da conta de juros. Nos doze meses encerrados em novembro de 2024, o déficit primário era de R$ 192 bilhões, e ainda inchado pelos precatórios pagos em dezembro de 2023. E a conta de juros nos mesmos doze meses era de R$ 918 bilhões.

Esta conta de juros elevada é fruto de uma dívida que se acumula há décadas e da taxa de juros que o governo paga para “rolar” esta dívida. Nesta conta há juros de curto e de longo prazo, os de curto prazo vinculados à taxa básica determinada pelo Banco Central, de acordo com nossa política de controle da inflação (metas de inflação). Os juros de longo prazo também têm ligação com os de curto prazo, mas são definidos mais pelo que os credores exigem para continuar financiando a dívida, isto é, pelo grau de risco que os credores avaliam correr ao “rolar” a dívida pública.

A taxa de curto prazo, conhecida popularmente como taxa básica ou SELIC, é a referência para toda estrutura de taxas de juros da economia, desde o financiamento da dívida pública até os juros incidentes sobre operações privadas, como as do cartão de crédito. E ela é definida pelo Banco Central, com o objetivo de conter ou estimular a economia, sempre buscando controlar o nível de preços, para fazer com que se cumpram os limites de inflação estipulados previamente pelo Conselho Monetário Nacional.

Assim que a meta de inflação é uma variável muito importante, porque ela influencia diretamente a taxa básica e, indiretamente, as taxas longas. Ou seja, ela fornece os parâmetros para se chegar ao resultado final de quanto de juros o governo paga para financiar sua dívida. Indo além, ela ajuda a determinar a evolução da relação dívida/PIB, esta variável observada tão atentamente pelo sistema financeiro e pelos economistas.

Ocorre que a meta de inflação brasileira tem sido fixada em patamares muito baixos para uma economia ainda bastante indexada e com problemas estruturais não resolvidos. Na ânsia de se igualar a outros países em desenvolvimento, fixaram-se metas descoladas da realidade brasileira, atualmente em 3%, o que, de acordo com o modelo de metas adotado, exige juros básicos muito elevados. Observe-se que nos 26 anos em que vigora o modelo no Brasil (1999-2024), a média do IPCA, índice de referência para verificar o cumprimento da meta, foi pouco superior a 6%, o dobro da meta atual. Nos mesmos 26 anos, somente em seis se cumpriu rigorosamente o centro da meta e em sete a inflação foi maior que o limite superior “permitido” do intervalo. E nós estamos acreditando que é possível alcançar 3% ao ano sem sacrificar outras coisas importantes. Será mesmo?

Ou seja, enquanto se discute a relação dívida/PIB, gastos públicos, etc., o verdadeiro problema – metas altas – está noutro ponto, disfarçado, como ocorre com o canto do quero-quero. O problema não está na relação dívida/PIB, mas, sim, na meta inatingível que acaba por elevar a taxa de juros, jogar a conta anual de juros nas alturas e prejudicar o crescimento. Se crescêssemos mais, a relação dívida/PIB cairia. E se os juros fossem menores, a dívida cresceria menos, também fazendo cair a relação dívida/PIB.

É claro que é importante discutir como o governo gasta, quais os resultados de seus programas sociais, e como focalizar cada vez mais o gasto. Mas o encadeamento entre metas de inflação, taxa de juros e conta de juros gera uma desproporção absurda entre a conta anual de juros e os resultados primários “exigidos” pelo mercado financeiro.

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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