Opinião
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30 de dezembro de 2024
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10:48

Riscos e usos dos celulares no atual estágio da humanidade (por Althen Teixeira Filho)

Celular é apontado como prejudicial no ensino e no relacionamento do aluno na escola. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Celular é apontado como prejudicial no ensino e no relacionamento do aluno na escola. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Althen Teixeira Filho (*)

Conta a história que, em 1876, as primeiras palavras ditas por Alexander Graham Bell, ao testar pela primeira vez o seu invento agora chamado de “telefone”, foram para seu assistente: “Senhor Watson, venha aqui. Quero ver você“. 

Hoje, 148 anos depois, presume-se que os atuais “telefones celulares” espantariam Bell, não pelo pouco que servem para conversar, mas pela ampla diversidade que oferecem, pelas crescentes preocupações que começam a despertar, além do fato de que ainda temos uma longa jornada para aprender o seu uso correto.

Principalmente smartphones e tablets se entronaram no cotidiano das sociedades, modificando-as intensa e drasticamente. O modo de negociar; de conversar; os passatempos; o início, a manutenção e o fim de relacionamentos; a busca de informações; orientações; e até mesmo o número crescente de golpes de vigaristas; todos esses elementos assumem características próprias quando intermediadas pelo celular. Na escrita, degradam o linguajar; em convenientes figuras (emojis e GIFs), substituem o expressar de emoções; em mensagens escritas, roubam o lugar de falas; e, lamentavelmente, crianças trocam brinquedos e brincadeiras educativas, conversas e convivências socializantes por telas alienantes.

Humberto Eco definiu corretamente o que os meios eletrônicos propiciaram: “a internet deu voz a uma legião de imbecis”! E aqui incluímos vários “influencers”!

Os telefones celulares marcam a história da humanidade pela intensa, rápida e ampla comunicação planetária que experimentamos, mas, ao mesmo tempo, estudos globais avolumam-se para revelar que são elementos alienadores, afetam habilidades de comunicação, são geradores de importantes disfunções neuropsíquicas em crianças, em constatações que ainda recebem pouca ou nenhuma atenção.

A maioria das indústrias, grandes e avaras, só têm interesse de vender e lucrar, cada vez mais, com os seus produtos de rapidíssimas obsolescências. 

Notícias informam que, em 2022, cerca de cinco bilhões de celulares foram descartados no mundo, em um “lixo” que deveria ser intensa e obrigatoriamente reciclado, não só porque poluem intensamente com metais tóxicos os locais de abandono, mas porque é a forma mais inteligente de agir.

Entretanto, reciclar para quê?

A cobiça entende ser mais prático, rápido e lucrativo vender, vender e vender cada vez mais, ao invés de implementar uma política de reaproveitamento. Em 2019, o grupo Plataforma pela Aceleração da Economia Circular (PACE) calculou uma perda de US$ 62,5 bilhões por ano com tais descartes globais.

Ainda sem perceberem os impactos negativos, pais orgulham-se dos filhos que, ainda em tenra idade, “já sabem mexer no celular”. Todavia, de forma educada, mas necessária, salientamos que mesmo chimpanzés sabem fazer uso de celulares com muita facilidade e “inteligência” (https://www.youtube.com/watch?v=WfobakGTPCw – acesso em 21/12/2014). 

É lamentável, preocupante e comum observar em bares, restaurantes e outros locais públicos, crianças “brincando” com jogos eletrônicos, enquanto os mais velhos conversam, bebem, comem e esquecem dos filhos em “coleiras eletrônicas”. 

Resultados de uma pesquisa em grande escala realizada nos USA mostrou que, em crianças pequenas, o tempo de uso em tela de uma hora ou mais por dia de dispositivos móveis, está associado a uma piora significativa de desenvolvimento, tendo mais problemas para expressar habilidades de linguagem, além de maiores chances de dificuldades de compreensão linguística.

Em outro estudo, na Universidade de Peshawar (Paquistão), cientistas observaram que os estudantes não seguiam uma linguagem padrão ao escrever, prejudicando suas habilidades redacionais e de expressão. O que se poderá esperar de competência redacional em teses ou dissertações destes jovens, senão desqualificação de argumentos, redações inábeis, conclusões questionáveis e equivocadas, além de dificuldades para descrever algo inusitado? 

Em outro experimento, um grupo de pessoas realizou um teste que exigia atenção. Em um primeiro momento, responderam com seus celulares ligados; em outro, desligados; por fim, sem estarem com seus celulares. Os resultados do primeiro foram os piores, não tão ruins no segundo e no terceiro tiveram as melhores performances, exatamente porque conseguiram focar nas questões que deveriam responder e sem desviar a atenção para seus aparelhos telefônicos.

Com base em nossa experiência educacional de 50 anos, podemos afirmar que o ambiente universitário enfrenta situação preocupante, com alunos presenciais sob o aspecto corpóreo, mas distantes sob o prisma intelectual. De forma acintosa, distraída e crescente (tanto em tempo, quanto em número), os acadêmicos não mais mostram preocupações ou recato para mexerem em celulares. Inconscientemente eles devaneiam, alheios às suas próprias e árduas formações profissionais e projetos de vida que estão buscando no ambiente universitário. Mostram expressões faciais de sorrisos inadequados e tolos que surgem das telas, mas que em nada se conectam ao tema abordado em aula.

Até a famosa “cola”, antes em papeizinhos, agora é eletrônica.

Não raro, universitários perguntam sobre significado de palavras (adverso, translúcido e outros), fato também verificado nos EUA, onde foi constatada a diminuição de um terço do vocabulário entre os jovens. Erros gramaticais, de pontuação e frases confusas repetem-se, poluindo intensamente as provas!

A possibilidade de expressão como a fala e, mais recentemente, a escrita na história da humanidade é um fator altamente positivo na nossa evolução, mas a precisão do que se deseja dizer é fundamental. A riqueza de detalhes é um grande tesouro da qualificação linguística, possibilitando a aproximação entre povos ou até mesmo a redução de atritos entre nações.

As capacidades linguísticas nas crianças inserem-nas social e academicamente, e as habilidades de comunicação são processos vitais no desenvolvimento infantil. Quando há distúrbios nessa comunicação, associam-se comportamentos problemáticos e um pior aproveitamento no desenvolvimento escolar e universitário. 

Importa saber que, neste contato com o celular, é o nosso cérebro que lida, aprende, se acostuma ou inclusive fica prejudicado com todos estes problemas!

Então analisemos, mesmo que muito rapidamente, o cérebro humano!

Para desempenhar suas funções, vitais à adaptação, subsistência e qualificação da nossa vida, o sistema nervoso é muito exigente. Consome 20% de toda a energia diária que ingerimos e, encerrado dentro de uma “caixa óssea” chamada crânio, o cérebro de cada pessoa tem que observar, analisar, reagir e interagir de acordo com a interpretação que faz de todos os acontecimentos que o cercam. Estas reações resultam, sem que percebamos, em adaptações que nos permitem sobreviver frente às realidades e dificuldades enfrentadas. 

O nosso cérebro nasce “inacabado”, já que suas células, chamadas de neurônios, ainda apresentam poucas conexões funcionais entre elas (estas conexões são chamadas de “sinapses”).

Ao nascimento, muitos neurônios estão “desconectados”, mas, nos dois primeiros anos de vida, essas sinapses começam a ocorrer com extrema velocidade, sendo importante e positiva, para que estas conexões ocorram, a quantidade de estímulos e informações sensoriais que a criança recebe.

Assim sendo, crianças precisam de experiências positivas com os familiares mediante falas, cantos, conversas, brincadeiras, convivência em geral, fatores sensoriais que estimulam a formação de 2 milhões de novas sinapses a cada segundo e, aos dois anos, essa criança terá mais de 100 trilhões de sinapses. 

Entretanto, à medida que amadurece, o sistema nervoso também vai “desbastando” essas conexões, ou seja, cerca de 50% destas conexões são “cortadas”. 

Então surge uma pergunta importantíssima: quais as sinapses que permanecem e quais são as eliminadas?

As que são utilizadas em circuitos neurais permanecem e são fortalecidas: as que não são empregadas enfraquecem e são então descartadas!

Nesse tipo de desenvolvimento, é fácil entender que devemos oferecer situações e motivos para que uma criança possa se aprimorar, visando a aprendizados e sucessos em vários sentidos na sua vida. De outra forma, sem novas experiências, ela pouco aprende, ou não aprende, e fica prejudicada! 

Esse “desaprendizado” ocorre quando uma criança fica “brincando” com um celular!

No momento do nascimento, alguns circuitos neurais têm relativa atividade, como a olfação, visão e audição (escutamos até na vida intrauterina). Para a fala, embora já tenhamos centros neurais específicos e as sinapses necessárias, precisamos desenvolver habilidades mediante práticas de raciocínio, entendimento, atenção, além do controle motor dos músculos responsáveis pela vocalização. Esse longo processo exige aprimoramento pela prática constante.

Mesmo durante o sono, o cérebro “trabalha” intensamente, analisando o dia vivido, acumulando e potencializando aprendizados diários mediante trocas de informações neurais entre diferentes centros, oferecendo-nos condições de enfrentar e superar obstáculos no novo dia que surge. Assim, nosso funcionamento cerebral se aprimora naquilo em que trabalha constantemente, desenvolvendo e qualificando a nossa cognição. 

Essa cognição, que significa o ato de “conhecer”, é uma ação inteligente que aperfeiçoamos através da atenção, memória, raciocínio, imaginação, orientação espacial, entre outros. 

Por exemplo, quando saímos de casa para ir a determinado endereço que não conhecemos, e nos deixamos conduzir por um programa que nos indica o caminho, descartamos nossas habilidades cognitivas próprias, que o cérebro acumulou (pensar qual o melhor caminho, lembrar de sinaleiras, saber de vias perigosas ou onde há mais buracos, irritantes lombadas etc.). Assim, se formos “conduzidos” por um programa eletrônico, desconsideramos nossas sinapses cerebrais, não usamos o cérebro e jogamos fora nosso “mapa mental cognitivo próprio”. 

Outro exemplo mais simples ocorre quando não mais guardamos na memória (por preguiça ou incapacidade) números de telefones. Antigamente, todos tínhamos nossa memória ativada e potencializada por essa necessidade.

Para além, e muito interessante, quando tiramos rápidas e várias fotografias (em viagens são dezenas, quando não centenas), nosso sistema nervoso também fica “ressentido”. Em síntese, olhamos o todo rapidamente, várias fotos são feitas, mas perdemos a oportunidade de observar mais demoradamente, buscando perceber detalhes e observar minúcias tridimensionalmente. Mesmo que a intenção seja “olhar depois”, a habilidade observacional e o aprendizado tridimensional que o cérebro poderia desenvolver e aproveitar no sentido de formar ou reforçar sinapses foram jogados fora!

Uma das estratégias da indústria para gerar vício são os filmes extremamente curtos, com poucos segundos, gerando em crianças, em jovens e até em adultos, uma curiosidade intensa para saber “o que vem logo em seguida?”. Na realidade, a cada filmezinho o cérebro tem uma “satisfação” e ocorre a liberação de dopamina, o chamado “hormônio do prazer”. Esse neurotransmissor gera sensações de contentamento e felicidade, fazendo com que, inconscientemente, resolvamos ver mais um filmezinho, depois mais um, depois mais dopamina, depois o tempo passa sem que percebamos e, em pouco tempo, não conseguimos mais parar. Essas situações provocam um vício inconsciente, graves prejuízos sobre a nossa capacidade de atenção, também prejudicando o funcionamento mnemônico. 

O termo mnemônico, em grego, significa “uso correto da memória”. Consiste numa técnica em que associamos o que se precisa lembrar com elementos ou situações que facilitem a memorização. Por exemplo, a frase “Minha Vó Tem Muitas Joias. Só Usa No Pescoço” relaciona cada letra inicial com um planeta do Sistema Solar – Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão, permitindo-nos recordar corretamente a ordem destes no sistema.

Outro problema gravíssimo é que as consequências não surgem de um dia para o outro. Passam-se vários meses, ou até anos, mas, quando percebemos, o problema já ocorreu e pode ser tarde demais! 

Ainda existem vários outros temas de abordagem sobre celulares, como a posição inadequada da região cervical, o que pode render até hérnias e dores de cabeça intensas, mas fica aqui a certeza de que ainda precisamos aprender muito sobre como usar os celulares. 

É importantíssimo recolocar as crianças em uma trilha segura de desenvolvimento do sistema nervoso, sabendo que o nosso grande aliado é o próprio cérebro. O antídoto ele mesmo oferece através da chamada “neuroplasticidade”, ou seja, a sua própria capacidade de recuperação e adaptação. Embora seja relativamente demorado, se cercarmos as crianças (e também os adultos) com atividades sensoriais positivas como a leitura, conversas, jogos inteligentes e de memória, palavras cruzadas, sudoku, a realização de desenhos, atividades em grupos, entre outros que exijam atenção, o próprio cérebro poderá restabelecer sinapses que farão bem às crianças (e também aos adultos) e à própria humanidade. 

Comparativamente, tais atividades significariam “levar o cérebro para praticar em uma academia”!

As atitudes verificadas para proibir celulares nas escolas ainda são pálidas e precisam ser incrementadas. 

As universidades, escolas públicas e particulares têm que ter consciência e responsabilidade para proibirem os celulares nas salas de aulas, sempre através de debates elucidativos e conscientização com suas comunidades.

Concluindo: os meios eletrônicos são ferramentas poderosíssimas e de grande valia, mas, da forma como os vivenciamos, causamos danos ainda não totalmente mensurados, que já atingem e degradam as atuais gerações, além das futuras. 

(*) Professor Titular / Instituto de Biologia / Universidade Federal de Pelotas (UFPEL)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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