Opinião
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22 de dezembro de 2024
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16:24

O Legislativo em frangalhos (por Céli Pinto)

Foto: Vinicius Loures/Câmara dos Deputados
Foto: Vinicius Loures/Câmara dos Deputados

Céli Pinto (*)

Observando o comportamento do Congresso Nacional, principalmente da Câmara de Deputado no Brasil atual, exceto meia dúzia de grandes e respeitáveis parlamentares, não se consegue localizar um espaço para ele atuar como instituição no campo político. Presidentes, parlamentares detentores de cargos em comissões se comportam como chefes do crime organizado especializado em sequestros. A falta de pudor chegou a tal ponto que não se preocupam nem em justificar a ganância, ou a agir com o mínimo de decência. Defendem em alto e bom som o direito de usar o dinheiro público da forma que desejarem, sem pelo menos indicar onde o utilizarão. Defendem o direito de fazer do dinheiro público o seu dinheiro secreto. Nas comissões, até na mais importante, como a CCJ, a presidenta pauta PECs e PLs ao deus-dará, com temas pseudossérios para tentar distrair os incautos.

O velho Ulisses Guimarães dizia, no período da Constituinte, quando o Congresso Nacional era criticado, que reclamavam porque não sabiam o que viria depois. Com certeza, mesmo sendo uma velha raposa da política, Dr. Ulisses não poderia sequer imaginar o descalabro a que chegaria o legislativo brasileiro.

Mas nem sempre foi assim. Muitos dos meus alunos haverão de lembrar da minha ferrenha defesa do Legislativo em aula, sempre afirmando que o Legislativo era tão importante que todos os golpes de estado militares, na América Latina e alhures, agiram rápido para fechar as casas parlamentares. Foi assim no Brasil em 1968 e 1977, no Uruguai e no Chile em 1973, na Argentina em 1976.

No Brasil, durante a ditadura militar, o abre e fecha veio acompanhado da cassação de mandatos de deputados a rodo e do fim dos partidos políticos, com a criação de agremiações quase recreativas, proibidas de usarem a palavra partido. Agora temos novos tempos: o Congresso Nacional, e principalmente os deputados federais, votam em troca de dinheiro, simples assim. Pagou, levou. Se há algum interesse público, algumas políticas públicas que o Executivo queira levar a efeito são imediatamente sequestradas pelo Parlamento e, sem nenhuma diferença de qualquer sequestrador, fazem a ameaça de matá-las, se não ganharem o que pedem.

A mais contundente prova da grave deterioração do Poder Legislativo é sua ausência no plano do golpe de Estado liderado por generais do Exército para manter o ex-tenente como seu Comandante em Chefe. Os planos têm explosivos, kids pretos, planejamento de assassinatos de ministro do STF, do presidente e do vice-presidente então eleitos, estado de sítio, estado de emergência, GLO, junta composta por generais; demissão de ministros do STF e nomeação de novos. E mais uma série de medidas em planos detalhados que, numa crise à la Brancaleone, foram digitadas e impressas.

No meio de toda esta esbórnia, não foi encontrada uma linha sobre fechar o Poder Legislativo, porque ele não incomodaria. Talvez fosse necessário afastar um grupo mais aguerrido de esquerda, principalmente as mulheres, que mais se expõem, fazem barulho e enfrentam o reacionarismo com coragem todo o tempo (alguns homens também, mas só depois de medirem o que cada palavra representará para seus futuro político). Provavelmente cassariam o mandato de Sâmia Bonfim e Maria do Rosário, ambas com a mania de defenderem Direitos Humanos e direitos das mulheres, ou Luiza Erundina, afinal é uma petulância que uma mulher velha, de 90 anos, defenda a democracia com a veemência e astúcia que costuma ter, ou ainda Erika Hilton, que tem a desfaçatez de, sendo uma mulher trans, trazer pra a Câmara dos Deputados a causa dos trabalhadores de forma tão descarada, o que não se via no reduto legislativo há muitos anos. Talvez por isto alguns senhores, fantasiados de democratas, tenham tanto medo do que chamam, ridiculamente, de identitarismo.

Mas a grande massa, bem mais do que os 300 que certa vez o Lula identificou, dançariam a valsa do golpe sem problemas, já que teriam suas prebendas garantidas. E os interesses do País, ora os interesses do País…

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Não quero concluir este pequeno artigo deixando a impressão, à leitora e ao leitor, de que penso que o Legislativo não tem mais importância. Ao contrário, estou completamente convencida, no que não sou original, de que não há democracia sem um Legislativo forte e representativo. No Brasil, a deterioração do Legislativo é efeito de um conjunto robusto de causas que se avolumaram até chegar onde estamos. Houve até tentativa de melhorar as condições de seu funcionamento, com leis que gradativamente limitam o número de partidos, o estabelecimento de um mínimo de votos para um candidato aproveitado como deputado em função do número de deputados alcançados por cada partido pelo quociente partidário; com o fim do financiamento privado; com cotas nas listas partidárias para mulheres e negros, com garantia de recursos para estes dois grupos. Tudo isto adiantou muito pouco. O que poderia ser a semente de um circulo virtuoso, foi interrompido com o governo de Bolsonaro. Para poder se manter no poder, comandando e comprando seus antigos comandantes, entregou o orçamento da União ao Congresso Nacional e transformou um potencial círculo virtuoso em um desestruturante círculo vicioso.

Precisamos de um Legislativo representativo. Para isto, há urgência de reformas que tirem das mãos de pavões de diferentes plumagens que sobrevivem dentro dos partidos o eterno poder de decisão, ou porque são velhas famílias políticas, ou velhos líderes com lutas importantes no currículo. Se o poder dentro dos partidos políticos não for democratizado, com primárias para compor listas de candidatos; se não forem estabelecidas regras claras de representatividade nas listas partidárias, com paridade, pelo menos de gênero e raça; se não for garantido não apenas lugar nas listas, mas paridade nas cadeiras no parlamento a estes grupos, dificilmente teremos casas legislativas comprometidas com as soluções dos graves problemas sociais do País e capazes de devolverem parte significativa do orçamento da União ao Poder Executivo, a quem de direito compete governar. Dificilmente obteremos garantias de um parlamento capaz de assustar golpistas de ocasião.

(*) Cientista política, Professora Emérita da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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