
Manuela Sampaio de Mattos (*)
Para Sada, a que ecoa.
Há quase uma década, tive a oportunidade de visitar Jeddah, segunda maior cidade na Arábia Saudita, conhecida como a porta de entrada dos peregrinos que rumavam à Meca pelo mar. Localizada no litoral do Mar Vermelho, é sede do maior porto do país e símbolo comercial em crescente abertura para o mundo ocidental. O centro histórico, chamado Al Balad, passou a constar, a partir de 2014, na lista de patrimônio Mundial da Unesco, pois é um dos únicos lugares que preserva ao longo da costa do Mar Vermelho o conjunto dos atributos dessa cultura: economia baseada no comércio, ambiente multicultural, casas isoladas voltadas para o exterior, construção em alvenaria de coral, trabalhos em madeira preciosa decorando as fachadas e dispositivos técnicos específicos para ajudar na ventilação interna.
Na companhia de minha mãe e de meu irmão, fiz um passeio neste local, e lá fomos surpreendidos com convites inesperados, quase fantásticos, para entrarmos em lugares que não poderíamos supor, olhando de fora, o quê reservavam em seu interior. Lembro de fazermos uma longa visita, regada a muito chá, a uma mansão localizada em meio aos souks e mesquitas, e do sobressalto que tive ao me deparar com um grande buraco no chão da casa, protegido por uma grade. Chegando perto da tampa de pedra que cobria a abertura e apontando para a escuridão do buraco, o homem que nos convidou a entrar na casa explicou que por ali se chegava à cidade subterrânea, ou seja, às rotas de fuga outrora muito usadas. Paradoxalmente, naquele momento me vi sem poder fugir, ao me deparar com a cidade subterrânea, silenciosa e ao mesmo tempo robusta, que me conecta à história trazida pela migração árabe ao Brasil.
É interessante pensar que não foi uma viagem ao Líbano ou à Palestina que me motivou a me ocupar cada vez mais com as raízes profundas que carrego. É o mundo que se abre quando atravessamos e nos permitirmos ser permeados pelos portais da imaginação. O que senti naquele momento e na viagem como um todo me carrega até aqui. Uma estranha proximidade, mesmo que distante, capaz de costurar distintos sentidos e pertencimento a partir das formas de olhar, falar, caminhar, rir; dos cheiros, sabores, gestos, sons, etc. Afinidades secretas sempre prontas a serem reveladas na passagem de um lugar a outro.
Em novembro de 2024, minha avó Sada faleceu aos 96 anos. Filha de mãe libanesa e pai palestino. Mãe de minha mãe e de mais 7 filhos. Avó, bisavó e tataravó de mais de 40 pessoas. É bem como dizem: apesar de o fim da vida ter sido seu descanso, quem fica nunca está preparado para o vazio que se instaura, este buraco escuro que se abre à cidade labiríntica da memória.
Para suportar o vazio, procuramos incansavelmente pelas palavras e mais diversas memórias que possam também nos dar um descanso a partir de um certo contorno a este vazio. Um lugar para nos situarmos e embarcarmos nesta que é a tarefa que nos cabe como sobreviventes: seguir construindo e transmitindo nossa história através do que herdamos daqueles que nos antecederam, consciente e inconscientemente. Tomo de empréstimo um pensamento expressado por um personagem de Milton Hatoum, em “Relato de um certo oriente”: “Na fala da mulher que permanecera diante de mim, havia uma parte da vida passada, um inferno de lembranças, um mundo paralisado à espera de movimento”.
A tarefa de olhar para esse buraco, de dar uma outra vida às memórias diante da fatalidade da morte, só pode ser travada em companhia. Tenho andado bem acompanhada de autores e artistas árabes e diaspóricos, sentido a presença dos ares das Mil e uma noites, dos mitos fundantes, dos barulhos das guerras e conflitos, dos sons e movimentos do mar da travessia, dos portos de chegadas e partidas, das misturas dos ares dos montes, dos desertos e da floresta amazônica.
Nesta época do ano em que inevitavelmente fazemos o balanço das coisas vividas até aqui, lembro das tristes perdas, de algumas conquistas, das amizades, de momentos intensos de troca e aprendizagem. Insistem imagens de minha avó que não se entregam passivas à contemplação. É uma conta que nunca fecha, sempre sobra um tanto de indignação, graça e outros excessos. Sentindo a atmosfera de encerramento do ano que se vai e o sopro do ano que chega, mimetizo sua voz e escolho suas palavras para dar boas-vindas, dizendo: “que rico ar!”
(*) Psicanalista membro da APPOA.
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