Opinião
|
10 de dezembro de 2024
|
16:24

Jammerthal – O Vale da Lamentação: A minha guerra Mucker (Coluna da APPOA)

Jammerthal – O Vale da Lamentação: A minha guerra Mucker (Coluna da APPOA)
Jammerthal – O Vale da Lamentação: A minha guerra Mucker (Coluna da APPOA)

Lucia Serrano Pereira (*)

Quero destacar um acontecimento recente na cidade, pela intensidade e qualidade do trabalho que se movimentou. Veio a Porto Alegre o amigo, escritor, antropólogo João Biehl com o lançamento do Jammerthal. João é professor na Universidade de Princeton, e gaúcho da Picada Café. Já há muitos anos acompanhamos seu trabalho e praticamente desde os primeiros anos da Appoa partilhamos o andamento de sua pesquisa sobre a Guerra Mucker. Década de 90, início da Associação, nos encontrávamos interrogados  pelas questões que envolviam as imigrações.  Poderíamos produzir um trabalho que pusesse em questão essa história de certa forma presente nas falas de nossos pacientes, umas poucas gerações, levando em conta toda sua dificuldade? Não era possível pensar ou praticar uma clínica sem levarmos em conta a história dos grupos a que cada um pertencia, e de que forma essa pertença operava seus laços; assim, naquele momento se desdobrou um forte trabalho em torno das imigrações. Tomamos iniciativas, as jornadas sobre colonização, imigrações, fundações.

A chamada Guerra Mucker foi um dos episódios mais violentos na história de nossa história colona; foi noticiada em sua época  como uma irrupção messiânica que encontrou seu desfecho com o extermínio da comunidade chamada Mucker, em 1874, Sapiranga, Morro do Ferrabrás. 

João já trabalhava sobre o Jammerthal, o Vale da Lamentação, quando nos conhecemos. Tinha concluído o mestrado onde fez o primeiro texto, 1991. No diálogo com ele me aproximei do trabalho em torno dos Mucker, onde as perguntas norteavam o trabalho.  Como se havia empurrado Jacobina, suas orações, seu lugar na comunidade, para um lugar insuportável no social, a “Sra Crista”, a louca com suas leituras da Bíblia, a que nomeava apóstolos  em meio a seus transes?

Como uma organização de comunidade (que foi se formando por inúmeros fatores, entre eles o profundo desamparo dos colonos imigrantes) foi sendo levada ao extermínio, tendo atravessado uma guerra fratricida? 

Perguntas em que estavam presentes o diálogo com os campos da História, da Filosofia, da Teologia, e também em sua interlocução conosco, da psicanálise, uma riqueza para pensar o que também nos preocupava. 

Passados uns trinta anos, nos nossos encontros mais recente, João nos dizia que queria escrever esse texto, do Jammerthal, que estava pensando este projeto. E agora, 2024, o lançamento, sua volta aos Mucker, em um novo tempo.  A primeira revolta messiânica do Brasil moderno, ele situa, que devastou a comunidade imigrante de origem alemã, e que deixa seus vestígios no imaginário coletivo da região até hoje. A quem interessou essa guerra e tirou proveito dela – a barbárie da história, e o enigma de como essa história perdura. 

Lembro que por ocasião dos primeiros diálogos que partilhamos, li uma matéria que saiu na Zero Hora em julho de 1993, que tinha como manchete: “Violência ressurge na terra dos Mucker”. Isso me chamou muito a atenção, o termo do ressurgimento. A foto que acompanhava a matéria era a da mesa do delegado repleta de armas, o relato de crimes inexplicáveis que estavam acontecendo como o corpo de uma mulher encontrado decapitado na estrada. O texto que dizia que a violência adormecida desde o século anterior, quando o morro do Ferrabrás havia sido palco da sangrenta Guerra dos Mucker começava a ressurgir com força.

Mergulhei também nesta história, estudando e escrevendo. Tomei contato com o Videiras de Cristal, Antonio Assis Brasil;  li o roteiro e fui ao set de filmagem do filme de Fábio Barreto Jacobina.  O que Mucker veiculava no tecido da imigração no sul do Brasil? Como quando os laços simbólicos estão enfraquecidos, fragilizados, um grupo pode se ver mais exposto a uma promessa, a um certo delírio de redenção e salvação ( que se tomavam das leituras do apocalipse) que acabe se tornando um imperativo? A pequena comunidade que se reunia em torno do wunderdoctor, João Jorge Maurer, marido de Jacobina recebia dele as medicações que se produziam ali, com a medicina caseira possivel, forma de ter algum recurso frente as doenças e à morte. Jacobina passa a cuidar das almas, com as orações caseiras, as orientações. Era isso que havia de início. O enigma da construção do messianismo é o que se desdobra em Jammerthal.

No livro, o elemento que faz  a diferença.  Jammerthal, o Vale da Lamentação: a minha Guerra Mucker. 

A minha Guerra Mucker.; minha abre o lugar desde onde essa história é posicionada. Claro, vai ser desdobrada com toda a riqueza que compõe o tecido com a qualidade de seus fios, de campos, de ideias, de referências e relações que  João vai movimentando, por sua trajetória de experiência intelectual vida afora, sempre em contato com o outro, em diálogo, com uma vibração e um interesse que fazem essa espécie de efervescência em sua volta, em sua conversa.

Mas o minha tem uma forma de privilegiar o por onde tudo se movimentou para ele, como mistério. Era o que ouvia em casa. João pertence à quinta geração na linha da imigração alemã aqui no sul. Já entendia, criança, que não se falava dos Mucker, em torno dos Mucker tinha um segredo. As histórias que os mais velhos contavam. Os Mucker podiam invadir as casas dos colonos de noite. Era melhor dormir com os rifles do lado da cama. “É preciso cuidar de si mesmo”.   Ecos e efeitos de uma história violenta.

A quem servia a guerra fratricida? Vamos acompanhando como o pano de fundo teve a ver com um expansionismo neocolonial, diz João “refletindo também a dinâmica de racialização e a necropolítica das classes dominantes”.

Jammerthal, a “minha” guerra mucker se escreve “por dentro e por fora”. Desde a lembrança dos diálogos com a vó  Minda, na visita ao cemitério ( estamos em um contexto onde, as conversas que envolvem os túmulos e as mortes são cruciais), até a relação desde o social, seus determinantes, os sintomas de seus laços.  

 Vale da lamentação, Jammerthal,  é o nome da mais remota das antigas colônias alemãs, e nos transporta a esse significante da dor colona, de seus enfrentamentos, lutos e fantasmas que atravessam gerações e que abrem interrogantes extremamente atuais.  Frente aos movimentos migratórios e ao destino dos refugiados – migrações por situações catastróficas – pela mão do humano principalmente.

Jammerthal conta com o excepcional trabalho de fotógrafo dinamarquês  Torben Eskerod, que acompanhou João em incursão nas imagens e viagens (no sentido forte e e extenso da palavra ); e pela companhia na interlocução, diálogos, nas leituras e revisões do trabalho generoso e sensível de Claudia Laitano, de Luiz Augusto Fischer e de Miquéias Mugge. Grupo que o acompanhou e o “re-ligou” a  Jammerthal no novo transporte. Agora livro.  

Forte, tocante trabalho a partir da comunidade desse “povo-emoção”. Nas palavras de João  – “Outro espaço-tempo, que, até hoje, continuam a desfazer o esquecimento.”

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também