Opinião
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15 de dezembro de 2024
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10:49

A distribuição fraterna e perspectiva fantásticas que enlaçam a atmosfera no desterro de dezembro: Delulu, corpo e emoções não são antagônicos

Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal
Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal

Por Janaina Collar e João Beccon de Almeida Neto (*)

Seus sintomas?
Um calor gélido e ansiado na boca do estomago
a sensação de… ? O que é mesmo que se passa?
Um certo estado de humilhação conformado parece bem vindo e quisto.
É mais fácil aturar a tristeza generalizada que romper
com as correntes de preguiça e mal dizer
Silenciam-se no holocausto da subserviência,
O organismo não se anima mais.
E assim, animais ou menos assim…
Descompromissados com o próprio rumo,
desprovidos de caráter e coragem
desatentos ao próprio tesouro…
Caem.
Desacordam todos os dias
não mensuram suas perdas e imposturas!
Não almejam.
Não alma.
Já não mais amor.
Assim são:
Os insetos interiores
(ANITELLI, Fernando. A Metamorfose ou Os Insetos Interiores ou O Processo. Interprete: OTeatro Mágico. In: O Teatro Mágico.Segundo Ato. [S.l.]: Compact Disc, p[2008]. 1 CD. FAIXA16)

Ajudar, doar, prática e ato de transferir movimento, ato cheio de boa intenção! Mas atenção, ajuda é ato de escolha e movimento de um sujeito para com o outro, você não acha? Então, algumas considerações importantes sobre o processo em cena com o outro: ser convocado, solicitado em alguma situação ou escolha e neste contexto, levar em conta qual seria a expectativa do sujeito ao solicitar ajuda.

Muitas vezes só o ato de fala e escuta já tem potencialidades importantes, sendo que muitas vezes o que menos tem prioridade nesta equação é a opinião de quem escuta e tem interesse em ajudar. Afinal de contas, não raramente o solicitante deseja um salvo conduto ou validação de suas escolhas. Isso não quer dizer que não devemos ser sinceros ou verdadeiros.

Muitas vezes no seu próprio ato de fala, muitas resoluções mentais acontecem. Porque qualquer fala antes disso é dar sua opinião sobre a vida e realidade do outro. E sabemos que distribuir opiniões sobre a vida do outro é uma prática recorrente em nossas relações, pois é sempre mais fácil resolver os problemas alheios, do que os nossos. Mas a humanidade é especialista em criar silenciadores, em negar os problemas e imperfeições, um subterfúgio para amortizar algo que vai ganhando espessura, armadura e resistência.

Em diversos momentos do desenvolvimento da humanidade, ensaiamos aplicar uma série de comportamentos, valores e ranquear condutas adequadas e esperadas dentro do sujeito de bem. Independente da época, flertamos entre o amplo e total controle dos corpos (físico e mental) ao completo oposto da liberdade plena e absoluta, que ganha escopo e responsabilidade pela completa miserabilidade do momento corrente. É uma movimentação corriqueira, mesmo que nos pareça inofensiva e vexatória, é assim que se orquestram e introjetam mecanismos de controle. E tal tentativa é limitada pela complexidade do não chegarmos à conclusão nenhuma, sobre o que nos constitui e seja capaz de classificar nossa complexidade. Criamos categorias como corpo, pessoa, ser humano, homo sapiens, para nos autodescrevermos. Mas paremos para pensarmos um pouco: será que estas categorias constituem, juntas, uma forma geométrica, como se fossem, cada uma, um lado do mesmo, ou são definições inconciliáveis e que não dizem respeito ao que poderíamos, quem sabe, usar para nos autodefinirmos?

O ser humano é um ser inacabado em busca de sua inalcançável perfeição: nasce e morre roto. Simbolicamente, podemos representar o ser humano como uma pedra eivada de arestas e sulcos, que, apesar de trabalhada constantemente, nunca atingirá a polidez. A ideia do imperfeito frente ao desejo de perfectibilidade nos conota a visão ingênua da onipotência que muitas vezes não percebe esta relação paradoxal.

Dentro deste contexto, podemos ressaltar o importante papel desempenhado pelo corpo humano como o maior símbolo da limitação humana. Nele se resume a finitude do homem. Não há como se falar em uma pessoa saudável sem um corpo são. O corpo é a parte representativa da pessoa, seu continente. A imagem de uma pessoa está associada ao seu corpo. Diga-se mais ainda, que esta representatividade determina o destino de seu representado. A história da humanidade está repleta de fatos onde se vê exploração do homem pelo homem, pelo simples fato de um grupo de indivíduos, entendendo-se como superiores, submeterem outro grupo pelo fato de serem diferentes.

Assim, como no caso do Mercador de Veneza (clássica obra de W. Shakespeare), agimos como se o corpo fosse um objeto. Procuramos moldá-lo ao nosso bel prazer a fim de nos identificarmos ao mesmo – como se o corpo fosse literalmente uma argila onde dou a forma e imagem da pessoa que “realmente” sou. Manipulando-o conforme as nossas necessidades a partir do uso de fármacos, por exemplo, chegando ao ponto, em determinados casos, em lhe negá-lo a nós mesmos, como se ele não nos servisse como forma de existência em sociedade – vivendo-se a partir de um ambiente virtual, livre de uma forma biológica que me limita como pessoa, podendo ser quem realmente sinto ser e cuja imagem meu corpo não passa.

O Delulu, vida imaginária. É uma versão atualizada da tentativa do sujeito de cocriar uma realidade que se vale dos mais amplos fenômenos da perfeição. Neste processo de edição e reedição várias cenas nada inéditas se apresentam, mas o desfecho é semelhante a muitos finais nada felizes para sempre. A dieta restritiva, que nada cura, compulsões variadas que limitam ainda mais o senso de coletivo do sujeito e desembocando nas reatividades e restrições emocionais que levam a óbito qualquer tentativa de partilha. Essa realidade amplia a agrava os casos de doenças físicas e metais.

Em alguns discursos, parece mais eficiente, assertivo, e economicamente mais rápido tomar um remédio ou uma aplicação subcutânea de emagrecedor, que focar nos possíveis fatores que originam o desencadear deste enredo. O poder do pensamento nem sempre vinga, talvez pareça vingar, para um editado perfil. E nesta toada, a negação da sua inteireza te distrai e a figuração mágica perfeita da realidade do outro te catapulta para uma realidade inexistente.

Então, esta performance vexatória te dá amplo poder na patrulha da rota do outro, pois o problema do outro passa a ser discurso coletivo. Há situações onde o corpo é tratado como obsoleto, o qual cabe moldar e modificar, esta limitação imposta pelo corpo, em face das novas tecnologias angariadas pelas mais variadas ciências do conhecimento, trata o sujeito invariavelmente como um equipamento ou roupa velha prestes a ser
substituído no renovar do calendário. O que, podemos perceber, não tem funcionado ao longo do tempo. Cada performance é parte do arcabouço do sujeito, que constitui cada um de nós, não há uma fórmula replicável em larga escala, sua cadeia de significantes é digital.

(*) Janaina Collar é psicanalista e mestre em Saúde Coletiva; João Beccon de Almeida Neto é advogado professor da Unipampa. 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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