Opinião
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12 de novembro de 2024
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17:11

Quais os novos caminhos para a Esquerda? (por Sandro Ari Andrade de Miranda)

Imagem: PIxabay
Imagem: PIxabay

Sandro Ari Andrade de Miranda (*)

Não é novidade que a ausência de resultados expressivos nas eleições municipais, ainda que permeados de algumas vitórias pontuais, recoloquem na agenda a necessidade de rediscussão dos caminhos dos partidos de esquerda. Todavia, é necessário conter alguns exageros e catastrofismos, ainda mais quando o mundo é abalroado pela verdadeira tragédia para a democracia e o meio ambiente que representa a eleição de Donald Trump nos EUA.

Não são poucos os que culpam as lutas identitários pelo afastamento de setores mais conservadores e religiosos da classe trabalhadora da base social da esquerda. Outros alegam a necessidade de caminhar ainda mais para o centro político, visado abrir diálogo com a direita democrática e abocanhar uma parcela social que aderiu à lógica do livre mercado e do empreendedorismo. Com a devida vênia, ambos os posicionamentos reduzem o debate a político à arena eleitoral e desconsideram a complexidade dos conflitos existentes na sociedade.

Há pelo menos meio século o debate em torno de questões identitárias faz parte da agenda política da esquerda e isto não impediu o seu crescimento, rompendo com barreiras de ódio e de preconceito. Ao contrário do esperado no Manifesto do Partido Comunista de 1848, o proletariado industrial não se tornou homogêneo, ao contrário, e aos poucos vem perdendo força como motor da história. Cada vez mais a luta social transformadora exige a mobilização de diferentes segmentos sociais que não são representados por um padrão uniforme e essencializador da classe trabalhadora. Logo, as lutas identitárias, mais do que presentes dentro de uma nova agenda da esquerda, são necessárias.

Da mesma forma, o caminhar para o centro, como defendem os pragmáticos, ao contrário de abrir uma agenda de aproximação entre diferentes, pode representar a perda de identidade política dos movimentos e partidos de esquerda e um afastamento ainda maior dos seguimentos que pleiteiam por maior igualdade social e econômica e maior participação. A construção de pontes de diálogos decorre muito mais da urgência A projetar agendas comuns, que unifiquem a sociedade e ampliem a democracia dando a esta um caráter substancial.

Portanto, a verdadeira necessidade presente da esquerda é a de unificação em torno de pautas gerais, contemporâneas, que dialoguem com o anseio daqueles que se veem alijado das ações de governo e que não conseguem distinguir esquerda e direita, dado o crescente consenso em torno de exigências do mercado financeiro e da ideologia neoliberal. 

Tomando como ponto de partida a eleição estadunidense, o que fica evidenciado desde já é o fracasso da gestão do estado com base em conceitos do receituário neoliberal. Ainda que Biden tenha conseguido bons indicadores gerais da economia, a perda acumulada de renda, a flexibilização das relações laborais, de um trabalho estável e a ausência de políticas públicas em setores estratégicos, como saúde, por exemplo, abriram espaço para o crescimento de movimentos sectários e xenofóbicos, facilitando o avanço da extrema direita. 

A caminhada schumpeteriana da esquerda para o centro, com a aceitação de argumentos do mercado, nublou a sua identidade, o que permitiu a confusão entre o extremismo da direita e uma suposta radicalidade, aproximando esta de uma parcela dos trabalhadores. Afinal, é muito mais fácil incutir na mente de uma pessoa que disputa um trabalho instável, com renda baixa e, sem nenhuma contrapartida social, que são os estrangeiros que roubam seus postos de trabalho e não a agenda econômica neoliberal que é tratada como um consenso incontestável. 

É esse consensualismo em torno do livre mercado, da jurocracia, da contenção do gasto público e do compromisso com superávits fiscais que criam as bases para o preconceito contra lutas identitárias, aumentando a guerra de todos contra todos diante de uma estrutura econômica precarizada e de um risco crescente de perdas futuras impulsionadas pela degradação ambiental e mudanças do clima. 

Em decorrência disto, um segundo ponto que deve ser alocado numa agenda unificadora, é a necessidade de retomada da regulação do trabalho e da construção de mecanismos que protejam trabalhadores e trabalhadoras da economia de plataforma, como a redução da jornada e a criação de instrumentos de proteção social. O avanço tecnológico ajudou na construção de mecanismos mais agressivos de controle do trabalho, sem trazer nenhum benefício concreto aos trabalhadores e trabalhadoras. As relações de trabalho e o custo de funcionamento das empresas foram “domesticalizados”, da mesma forma que a economia de plataforma ampliou o processo de extração de mais-valia em torno da falsa ideia de empreendedorismo.

Se nos tempos de Marx o domínio dos meios de produção garantia ao capitalista se apropriar do produto da força de trabalho, hoje a situação é ainda mais grave, pois a contrapartida do trabalhador para garantir a sua renda também é fornecer e pagar pelos meios de produção. A uberização da economia nada mais é do que um processo avançado de ganho de capital sem a necessidade de manter o domínio e o custo dos meios de produção. Da mesma forma, o trabalhador não vai mais para a fábrica, para a loja ou o escritório, mas realiza as suas ações dentro de casa, vendendo, também, a sua intimidade. Esse modelo de produção permitiu ganhos em escala às novas empresas capitalista, ao mesmo tempo que fomentou o crescimento dos problemas de saúde mental e psicossomáticos de trabalhadores e trabalhadoras. 

Por esta razão, a esquerda precisa levantam novamente as bandeiras da regulação do trabalho, da redução da jornada e do aumento da proteção social contra a instabilidade. Da mesma forma, precisa estimular, em oposição ao empreendedorismo individualista, modos alternativos de organização do trabalho que permitam a ação coletiva, como a economia solidária.

A terceira pauta que deve compor a unidade da esquerda é o combate à degradação ambiental e a adaptação às mudanças climáticas. Esta agenda reforça a necessidade de crítica ao consenso neoliberal, na medida em que exige mais investimento, mais planejamento e mais presença efetiva do Estado. Com exceção de alguns projetos isolados, não existe solução ambiental definitiva dentro do mercado desregulado. Na verdade, dentro da lógica de mercado, a natureza é um insumo, um instrumento para chegar ao lucro que, em última instância, deve ser descaracterizado como natureza concreta para gerar valor.

Entretanto, as questões ambientais batem à porta da sociedade todos os dias e exigem respostas urgentes de adaptação. É necessário que o Estado passe a realocar recursos e direcioná-los para questões que realmente interessam para a sociedade, mediante planejamento, o que pode, inclusive, resultar numa reconfiguração dos mercados econômicos com o privilégio para a economia de baixo consumo de carbono ou verdadeira e ambientalmente inovadora.

Além do mais, desastres ambientais como os observados neste ano no Rio Grande do Sul, na Espanha e nos incêndios que afetaram todo o centro-norte do Brasil, demonstram a importância de primeiro decretar emergência climática e depois de construir um plano de investimentos de adaptação ambiental que inclua, dentre outras coisas, uma reforma urbana radical, retirando populações pobres de áreas de risco.

A quarta pauta geral que exige unidade é da democracia. Esta pauta, no entanto, não exige descaracterização, mas a construção de novos consensos, a reconstrução e a reconfiguração da esfera pública de forma a permitir deliberações coletivos em torno de questões como, por exemplo, a alocação dos investimentos de adaptação às mudanças do clima. Portanto, a nova democracia deve ser muito mais participativa do que a atual, visando resgatar o valor da democracia como um processo político.

É necessária a criação de espaços de deliberação nos quais as pessoas possam confrontar a sua realidade com a dos seus vizinhos, superando a visão fragmentária do mundo e o individualismo. Politizar a democracia por meio da participação, também cria um importante remédio para a onda de disseminação de fake news, modificando a condição das pessoas de indivíduo-objeto para a de cidadão-agente, que não recebe informações, mas as constrói no cotidiano. Por esta razão, a defesa da democracia participativa deve estar no centro de uma nova agenda da esquerda.

Evidentemente, este texto, apesar de um pouco longo, é apenas um ensaio inicial sobre medidas que podem contribuir para uma nova agenda política da esquerda, na qual seja possível unidade conceitual e na ação. Alguns, inclusive, podem argumentar o seu caráter utopista diante de um cenário de grande individualismo e extremismo político. Mas como diria Eduardo Galeano, são as utopias que nos fazem caminhar.

(*) Advogado, doutor em sociologia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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