Opinião
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15 de outubro de 2024
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07:15

Édouard e Monique se libertam (Coluna da APPOA)

Divulgação
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Robson de Freitas Pereira (*)

Sou uma máquina de escrever”
Armando Freitas Filho [1]

Édouard Louis que terá 32 anos no final deste mês de outubro, esteve na FLIP sábado passado, numa mesa intitulada Anatomia do Futuro. Durante um tempo intenso, numa conversa com o público, mediada pelo entrevistador Paulo Roberto Pires (que havia antecipado o título poético da palestra) compartilhou de forma eloquente e profunda suas ideias sobre a literatura, política, sociologia, transformações, amor e liberdade entre outros temas que entrelaçados na voz e na escrita do autor, cumprem esta função de nos ajudar a enfrentar a complexidade da vida e dos relacionamentos que nos sustentam no mundo. 

A mesa na Feira de Paraty recebeu um subtítulo – O poder transformador da literatura. A trajetória de Édouard Louis é uma confirmação em ato da proposta. Como escreveu Paulo Roberto Pires: “Ao escrever sobre o pai e a mãe, Édouard Louis sublinha a energia revolucionária da mobilidade social”. Porém, ao contrário do senso comum, o escritor e sua obra não se propõem como exemplo de “sucesso do individualismo acima de tudo”.  Mesmo que estejamos diante de um autor excepcional. Único de sua família a concluir o ensino médio e entrar para a universidade, publicou seu primeiro livro de ficção aos 22 anos (2014). O fim de Eddy (En finir avec Eddy Bellegueule) onde descreve sua infância e adolescência como filho de uma família operária pobre e num meio onde o racismo, a homofobia e o alcoolismo eram uma constante e violenta presença, fazendo parte da estrutura identitária daquela comunidade. Recebeu diversos prêmios literários. Antes dessa primeira autoficção, (próximo ao estilo de Annie Ernaux), organizou livros de sociologia e filosofia. O primeiro em homenagem a Pierre Bourdieu, A insubmissão como herança (L’insoumission em héritage) onde Annie Ernaux, Didier Eribon, Geoffroy de Lagasnerie e outros colaboram. O segundo, uma revisão crítica da obra de Michel Foucault, editado no mesmo ano em que iniciou sua literatura, Foucault contre lui-même, no qual Lagasnerie e Didier Eribon (biógrafo de Foucault) também estão presentes.

A partir de 2014, publicou dez livros, cinco deles sobre a família, sua complexidade e sua trajetória. Entre os publicados no Brasil destacamos         Quem matou meu pai (2018); Lutas e metamorfoses de uma mulher (2021); Mudar: Método (2021) e Monique se liberta (2024). Os dois primeiros, falam sobre o pai e a mãe. Notem que o título inicial não é uma pergunta. Édouard tem suas convicções a respeito de quem tem responsabilidade sobre “a morte” de seu pai. O jovem que largou a escola aos quatorze anos para trabalhar e sobreviver, poucos anos depois sofre um acidente na fábrica onde um guindaste esmagou suas costas, o condenando permanentemente a uma quase invalidez. Nunca mais voltou à fábrica, sendo obrigado, pelos sucessivos cortes nos benefícios sociais, a se submeter a condições que cada vez mais esmagavam seu corpo e precarizavam a sobrevivência. Édouard nomeia os responsáveis assim:

 “Agosto de 2017 — o governo de Emmanuel Macron tira 5 euros por mês dos mais necessitados, retém 5 euros por mês dos auxílios sociais que permitem aos mais pobres na França encontrar moradia e pagar aluguel. No mesmo dia, ou quase, não importa, anuncia a redução de impostos para as pessoas mais ricas da França. Considera que os pobres são ricos demais e que os ricos não são ricos o bastante. O governo Macron determina que cinco euros não é nada. Eles não sabem. Dizem estas frases criminosas porque não sabem. Emanuel Macron tira a comida da sua boca (de meu pai).”

Atenção: não somente os governos neoliberais são criticados abertamente. Todos os que editaram leis que contribuíram para o sofrimento das pessoas mais carentes são nomeados. Hollande, Chirac, Sarkozy, Macron. A história do corpo do pai acusa a história política e a política está ligada aos que tem nome e sobrenome. “Para os poderosos, na maior parte do tempo a política é uma questão estética: uma forma de pensar, uma forma de ver o mundo, de construir uma persona. Para nós (os pobres) significa viver ou morrer”. Pensamento muito atual para o momento em que vivemos. 

Édouard Louis modifica a forma de escrita nas obras seguintes. Busca uma literatura de confrontação para nosso século (XXI), onde a forma e o político se articulem. Em “Monique se liberta” ele já não acha necessário fazer os mesmos apontamentos contidos em “Quem matou meu pai”. Pode falar de outra maneira, narrar, a convite da própria mãe, a segunda tentativa dela de sair do aprisionamento em que vivia. O primeiro livro, Lutas e metamorfoses…, contava a primeira separação. Aconteceu que depois de um tempo, a situação se repetia.  Os maus tratos, as injúrias, o alcoolismo do homem que amava retornavam. Era outro homem, mas o comportamento era o mesmo, a estereotipia da miséria. Desta vez, com auxílio do filho, ela conseguiu escolher. Fugir, separar-se, abandonar um passado que a identificava como alguém: ser mãe, mulher, maltratada lhe dava uma identidade. Isso não é fácil de perder. Precisa determinação pessoal para superar o sofrimento e ajuda dos filhos e amigos para sustentar a mudança. Monique conseguiu. Finalmente pode reconstruir, desejando mudar.

Como Édouard lembrou em sua fala, a dominação tem um paradoxo: o que nos destrói também pode nos liberar. Aqueles que aparentemente escolhem, a masculinidade por exemplo, não se dão conta que fazem o exercício de uma performance. Simultaneamente, as mulheres não escolheram a submissão, ou mesmo Édouard não “escolheu” ser gay; se reconheceu assim. E foi embora de sua cidade, de sua família porque não tinha escolha; queria fugir daquilo tudo. “Freedom’s  just another word for nothin’ left to lose” (liberdade é só outra palavra quando não se tem mais nada a perder) escreveu um poeta recentemente falecido . Partiu para sobreviver, teve que perder para se transformar. Mudou de nome, modificou o corpo, mudou hábitos, aprendeu a ler, ouvir e escrever. Partir para resistir e construir uma vingança, como ele mesmo afirmou. Só assim pode escrever/ficcionalizar  sua história. Entretanto, não se tratava de uma vingança contra alguém. Eis aí a complexidade da violência e da própria concepção de vingança. A violência está no laço social e se expressa nos menores gestos cotidianos, ela circula entre nós, como um fluxo. Por isso temos que estar atentos, não ingênuos, mas advertidos que podemos ser simultaneamente agentes da violência que queremos combater. A vingança também pode ser desejar e conseguir fazer uma transformação, como uma planta que vinga, uma criança que vingou e pode ter uma trajetória pela frente. Uma memória como bússola e possibilidade parcial de reconciliação com o que deixamos. Vida tem seus mistérios.

[1]  Armando Freitas Filho, citando Clarice Lispector como epígrafe e título do livro “Poesia Reunida e Revista” ,2003, comemorativo de seus 40 anos de poetar ininterruptos.

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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