Opinião
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6 de setembro de 2024
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12:45

Privatização do Parque Nacional Aparados da Serra deu errado, mas vai ficar tudo bem (por Luciano Fedozzi)

Foto: Ênio Frassetto/Prefeitura de Cambará do Sul
Foto: Ênio Frassetto/Prefeitura de Cambará do Sul

Luciano Fedozzi (*)

Quando propusemos uma alternativa viável à privatização do Cais Mauá, uma das nossas principais preocupações foi justamente com este raciocínio antissocial que agora vem à tona no caso do fracasso da concessão dos Parques Nacionais de Aparados da Serra e da Serra Geral em Cambará do Sul. Veja-se que nessa frase da matéria de Giane Guerra da ZH a questão é clara:

“A concessionária Urbia assumiu prometendo colocar atrações que garantissem a vinda aos cânions de turistas de maior poder aquisitivo, capazes de pagar os altos ingressos, reajustados recentemente para R$ 102. Só que, agora, fechou por tempo indeterminado a tirolesa, único atrativo dos prometidos”.

Ou seja, a intenção é clara quanto ao turista buscado ser aquele de “maior poder aquisitivo”, porque a concessão de bens naturais públicos ou de patrimônios históricos e culturais a empresas privadas passa a fazer parte de uma nova lógica que não é mais de caráter universal e sim orientada para a concretização do lucro máximo das empresas concessionárias. Nessa lógica, retira-se a natureza pública, ou seja, de coisa de todos/as, para colocá-la ao alcance somente dos que podem pagar para usufruí-la. Essa é a questão chave negligenciada pela RBS e pelos setores neoliberais que entendem ser o mercado o modo único de administrar, quer sejam territórios, bens naturais e lugares de valor inestimável, porque históricos. A questão da relação entre a população e seu território natural é deslocada para a discussão sobre quem pode pagar pela exploração econômica da paisagem. Nas concessões privadas o critério válido é de “viabilidade econômica” do empreendimento e não a maior capacidade de inclusão ou benefício da população.

Ou seja, se o negócio for “bem-sucedido” (com a rentabilidade dos empresários das concessões garantida conforme prevê o “equilíbrio econômico-financeiro” dos contratos), não há nenhum problema, tudo está bem, porque funciona. Só que este raciocínio não considera os efeitos sociais e culturais perversos de privatizações que excluem os de “poder aquisitivo menor”, ou seja, a maioria da população, dos direitos inalienáveis aos bens comuns, simplesmente por serem cidadãos/as portadores de direitos igualitários ao demais que constituem a nação, o estado ou a cidade. Contrariamente, no raciocínio privatizante, trata-se de ampliar ao máximo as fronteiras da acumulação, transformando os parques e patrimônios culturais em “ativos” no circuito de extração de renda e produção de riqueza.

Na matéria citada se diz que “desde o início da concessão, o movimento de turistas em Cambará do Sul caiu à metade, diz a prefeitura. Afastado pelos ingressos, o visitante anterior tinha menor poder aquisitivo, mas ainda assim consumia no comércio e se hospedava nas pousadas. Já o turista almejado – com potencial de gastar mais, como o de Gramado – não veio”. Pois é! E aí, qual é a conclusão das autoridades, dos pequenos empresários e da imprensa que caiu na cilada desse tipo de ideia de “progresso”? Não seria melhor outro tipo de projeto mais amplo e inclusivo?

Em Porto Alegre, a nossa Margareth Tatcher da Prefeitura chegou a argumentar que o Parque da Redenção não dava lucro, por isto tinha que se privatizar. Na utopia neoliberal uma praça não deve ser mais uma praça, um parque natural não pode ser mais apenas um parque, um Cais do Porto não pode ser um Cais retomado para o povo. Como disse o formidável Suassuna, nessa lógica a humanidade está se dividindo entre aqueles que vão à Disney e os que não vão à Disney, para espanto dos demais, que acham que não ir à Disney é anormal, é estar fora do mundo hoje.

O efeito perverso está no fato dessa prática aprofundar a segregação social (em geral, também racial) por critérios de renda, fortalecendo as divisões sociais por gentrificação dos territórios, bens e equipamentos. Não é preciso ser sociólogo para saber que no Brasil ou em qualquer lugar com desigualdades acentuadas, isto acarreta uma guerra surda e subterrânea entre “nós” e “eles”, centros e periferias, ricos e pobres, morros e asfaltos, manés e playboys, com muita terra e sem-terra nenhuma, com direito aos parques naturais ou sem direitos aos parques naturais, com direitos às orlas dos rios e sem direitos aos rios, e por aí vai, aprofundando-se a fragmentação da sociedade e corroendo as bases mínimas de coesão social. Em cada projetinho ou projetão de caráter elitista e excludente nas cidades e regiões se coloca um tijolo a mais nessa construção de muros visíveis e invisíveis, sempre se pensando que se trata apenas de mais um projeto, incapaz de causar mal.

A consequência a longo prazo, aonde nós chegamos agora, é que as classes médias e os estratos superiores, que podem pagar para acessar bens culturais e naturais, reclamam da insegurança e da violência que assusta a sociedade, no que são apoiados pelos órgãos da sua mídia empresarial, e afirmam que a guerra ideológica de alguns é culpada por alimentar a divisão do país ou das cidades. Em geral, grupos de cima não tardam a apoiar discursos de ódio contra os que defendem os “humanos que não são direitos”, ou apoiar entusiasticamente aqueles que propõem transformar o país num lugar que combina o acesso vip dos de cima e uma grande cadeia para os de baixo, com ajuda dos militares. O Marçal já está em El Salvador para aprender com o presidente populista penal de lá como ganhar eleições usando as técnicas das redes sociais e a revolta da população. O Brasil e o mundo estão cada vez mais perigosos porque revolta pessoal e ressentimento de massas não fazem revolução e em geral não trazem progressos com mudanças de cunho humanista e civilizatório.

O chiado agora da RBS contra o preço abusivo dos Parques em Cambará é porque ficou caro demais até para uma família de classe média, como a jornalista que denuncia o abuso e costuma frequentar a cidade da serra. Se isso for remediado, estará tudo bem e vamos seguir em frente com cada um no seu lugar de sempre.

(*) Professor Titular de Sociologia da UFRGS, pesquisador do Observatório das Metrópoles

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