Opinião
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5 de agosto de 2024
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08:05

Real 30 anos: a herança da indexação e sua influência sobre as metas de inflação (por Flavio Fligenspan)

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil/Arquivo
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil/Arquivo

Flavio Fligenspan (*)

Atualmente, se estima que cerca de 25% do IPCA ainda sofre do mal da indexação, o item mais importante do diagnóstico da inflação à época do lançamento do Plano Real. O IPCA é o índice produzido pelo IBGE que serve de base para o acompanhamento do sistema de metas de inflação, ou seja, o índice de referência para decidir a taxa de juros no Brasil. Pois bem, um quarto deste índice é contaminado por preços do passado através de meios formais – contratos que reajustam preços de acordo com a inflação passada, como os aluguéis, por exemplo – e informais.

Trata-se de um peso grande e que abala a medida de sucesso do Real 30 anos depois do seu início. Vamos lembrar que quando se estudava a inflação brasileira nos anos 1980 e 1990 havia esta característica especial, a indexação, que a distinguia da inflação dos demais países, e que fazia com que políticas monetárias apertadas não funcionassem, a despeito do que dizia a teoria convencional. O Plano tinha a intenção manifesta de controlar a inflação por meio do combate à indexação, e justamente este é ponto que é lembrado quando se enaltece a “genialidade” da URV.

Ora, se um quarto do IPCA ainda é contaminado pela indexação, reproduzindo no presente uma inflação que já ocorreu, duas conclusões daí derivam. A primeira é que o Plano não teve tanto sucesso quanto se apregoa; e a segunda é que a meta de inflação fica “suja”, forçando a taxa de juros para cima. Por que “suja”? Porque se perseguimos a meta atual de 3% no intervalo de 12 meses, já sabemos, de antemão, que aproximadamente 0,75 ponto percentual da meta vai ocorrer de qualquer maneira, independentemente de pressões de oferta ou demanda. É como se tivéssemos que pagar um pedágio para atingir um objetivo, tornando-o mais difícil.

Assim, a meta de 3% se transforma em 2,25% (3% – 0,75%), exigindo, de acordo com o sistema de metas utilizado no Brasil, uma taxa de juros mais alta do que seria sem o problema da indexação. Ocorre que a economia brasileira, por todas suas características estruturais, sua institucionalidade, e sua necessidade de crescer para incorporar trabalhadores ao mercado e tentar reduzir a desigualdade, não consegue manter uma inflação média abaixo de 4% a 5%. Em um ou outro ano isto é possível, mas não constantemente, em especial porque estamos expostos a pressões de preços internacionais sem que tenhamos controle sobre este fenômeno. Só para se ter uma ideia, desde 1999, quando se implantou o sistema de metas, a inflação anual média brasileira foi de 6,3%.

Visto por outro ângulo, o intervalo de variação aceito atualmente pelo sistema de metas é de 1,5 ponto percentual em relação ao centro da meta. Ou seja, se o centro é de 3%, se aceita que atingimos o objetivo com uma variação do IPCA no intervalo de 12 meses entre 1,5% e 4,5%, os chamados limites inferior e superior da meta. Se atendo ao limite superior (4,5%), já sabemos que ele é menor do que a média histórica desde 1999, mas, além disso, o modelo diz que o intervalo de variação (1,5 ponto) deve ser suficiente para absorver pressões de oferta, como por exemplo, um aumento dos preços internacionais do petróleo. Dependendo da magnitude do aumento e dos acontecimentos da política internacional, esta margem é claramente insuficiente; veja-se o caso da invasão da Ucrânia pela Rússia e as elevações de diversos preços internacionais daí decorrentes.

Ocorre que, se cerca de 25% do IPCA está comprometido com indexação, numa inflação anual de 4,5%, estamos dizendo que aproximadamente 1,125% (um quarto de 4,5%) já estão “encomendados” previamente, boa parte da margem que se tem para absorver choques de oferta. Ou seja, o modelo logo exigirá um aumento dos juros.

Muito se fala sobre o quanto o Governo Lula, através do Ministro Haddad, tem negociado e cedido ao sistema financeiro, em especial no caso da política fiscal. Mas o estabelecimento de uma meta de inflação irrealista (3%), no arcabouço de um sistema de metas pouco flexível e que funciona apenas com um único instrumento – a taxa de juros –, é tão ou mais grave. Principalmente se levarmos em conta que a indexação ainda pesa muito no índice de referência da meta. 

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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