Opinião
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16 de julho de 2024
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07:15

Uma divertida fábula sobre a adolescência (Coluna da APPOA)

Foto: Divulgação/Pixar
Foto: Divulgação/Pixar

Gerson Smiech Pinho (*)

As crianças pequenas dispõem de formas bastante particulares para compreender e interpretar o universo ao seu redor, muito distintas do que se observa poucos anos depois. Aos dois ou três anos, por exemplo, costumam não diferenciar entre eventos subjetivos e a realidade exterior. Inclinam-se a falar das coisas abstratas que têm origem na mente – tal qual os sonhos, os sentimentos ou os nomes das coisas – como se possuíssem realidade concreta, não as considerando enquanto produtos da própria subjetividade.

Esse traço de pensamento não se restringe necessariamente à infância. Os deuses do Olimpo, por exemplo, personificavam não somente fenômenos da natureza, mas também sentimentos e valores presentes na cultura e sociedade dos antigos gregos. Assim, o amor, a beleza, a justiça, a sabedoria e a violência eram encarnados por divindades específicas, relativas àquele contexto social.

Divertidamente 2, da Disney e Pixar, é uma produção cinematográfica que se associa a essas formas de conceber o mundo, já que dá existência material a eventos subjetivos,  como os sentimentos e a memória. O segundo filme da série, recém chegado aos cinemas, retrata aquilo que se passa na mente de Riley, a protagonista que acaba de completar treze anos e se tornar uma adolescente. Ao lado dos sentimentos que dominavam a infância – alegria, tristeza, raiva, nojo e medo – vêm agregar-se alguns novos – como ansiedade, vergonha, inveja e tédio. Ainda que as crianças não sejam imunes a esses afetos, o filme coloca em relevo o quanto, na adolescência, eles ganham uma primazia que não desfrutavam anteriormente, com especial destaque para a ansiedade. Esta última comanda o fio da narrativa do filme.

Em Divertidamente 2, a chegada da puberdade faz com que a imagem infantil que Riley mantinha até então se perca. A partir daí, produz-se uma espécie de curto-circuito que leva ao domínio da ansiedade – afeto que costuma surgir como sinal, quando nos encontramos frente a uma situação de desamparo. Na adolescência, ela se associa tanto às novas demandas que chegam desde o campo social, quanto à crescente excitação que provém de um corpo que não cessa de se transformar, dominado por impulsos que ainda não se consegue assimilar. Ao mesmo tempo que Riley sofre com a perda da representação infantil de si e com o incremento da ansiedade, é exposta a uma avalanche de “memórias ruins”. Uma espécie de onda gigantesca de recordações é liberada, trazendo de volta lembranças e sentimentos que estavam até então adormecidos, guardados em um território muito distante da consciência.

Se o filme retrata a ansiedade como o afeto que impera com a chegada da puberdade, não deixa de chamar a atenção a presença do tédio. É uma figura curiosa, mais discreta, que interage pouco e se mantém numa postura de distanciamento crítico em relação aos outros sentimentos. Em geral, o tédio experimentado pelos jovens costuma parecer estranho aos adultos que com eles convivem. Afinal de contas, qual seria o fundamento para tamanho aborrecimento em um universo repleto de estímulos, atrações e divertimentos, todos eles à disposição e ao alcance das mãos?

O estilo de vida capitalista coloca os objetos de consumo num plano de equivalência, no qual podem se substituir uns aos outros, como se não houvesse qualquer diferença entre eles. Se a ansiedade emerge como manifestação de desamparo frente ao excesso, o tédio e a apatia são sua contrapartida – aparecem como expressões do esvaziamento de valor, como se tanto fizesse uma escolha ou outra. 

A alegre fábula proposta em Divertidamente 2 retrata muito bem o lugar da ansiedade e do tédio na experiência dos jovens. Tomando certa distância da ficção, podemos pensar o quanto esses afetos refletem o vazio e o desamparo a que todos somos expostos pelo discurso social.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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