Opinião
|
11 de julho de 2024
|
14:16

Escrever é um ato de resistência (por Jorge Barcellos)

Imagem: PIxabay
Imagem: PIxabay

Jorge Barcellos (*)

Este texto tem o objetivo de incentivar professores das redes de ensino a organizarem-se em coletivo para publicarem suas experiências. Sua origem está no fato de que me reuni com professores de uma escola no dia primeiro de julho para realização de uma curadoria editorial. Não a nomino aqui para evitar problemas para os professores – que história é essa de contar o que se passa aqui? – dirão os administradores de plantão. Me aposentei e, depois da experiência de fazer 21 livros, da pesquisa à editoração, entendi que posso ajudar outros professores a publicar. É que, você sabe, não está fácil para ninguém. Como afirmei em minha apresentação “Não é editoria. É curadoria. É cuidado. A palavra curador vem do latim curare, que significa algo como aquele que cuida. Entendo que o curador editorial tem essa função de cuidar de um livro ou de uma coleção de artigos ou ensaios, mas o mais importante, a meu ver, é a capacidade de realmente entender e apreender o que há de mais relevante num determinado conjunto de escritos num determinado momento, e de articular isso sob a forma de livro que possa ser visto como obra de arte”.

Conheci a escola por intermédio de uma professora com quem realizei uma parceria no passado. O vínculo que fiz foi responsável pelo convite para ser curador da obra que seus professores desejam escrever relatando suas experiências. Eu os incentivava a escrever sobre o tema por ser a escola uma instituição importante da educação na cidade; eu sabia que seus professores tinham experiências inovadoras de ensino para contar e que isso merecia estar em um livro. Sabia que estavam vivendo as angústias da implantação do projeto neoliberal na educação da cidade, que resistiam a ele. A ideia foi amadurecendo e a equipe conseguiu recursos para a sua publicação. Veio a enchente, o trabalho na escola foi interrompido, mas retornou agora. A escola quer deixar de ser discreta: quer lançar-se para o mundo. Quer resistir, mostrar que está viva. É para isso que serve escrever um livro.

Decidimos iniciar uma caminhada juntos. Mas o que é uma caminhada? Adriana Labbucci diz em Caminhar, uma revolução (Martins Fontes, 2013), que caminhar é nosso gesto mais humano porque nos liga ao tempo, nos restitui ao essencial “permite olhar para dentro e para fora de nós” (LABBUCCI, p.75). Para ela tudo isso pode ser resumido a uma palavra: liberdade. Para os antigos gregos, o caminhar estava na origem do pensamento e também na origem da escrita: escrevemos para caminhar segundo nossa própria vontade, ato que está diretamente ligado à nossa liberdade de ser.  Como uma caminhada, escrever importa riscos fora de nós pois expomos nosso pensamento ao escrutínio público, ou dentro de nós, quando os medos de se expressar nos impedem de caminhar. Labbucci lembra a afirmação de Hannah Arendt de que “só era livre quem estava pronto para arriscar a vida” (LABBUCCI, p. 76).

Falei aos professores sobre a liberdade de escrever como prerrogativa da vida. Escrever deveria ser tão comum como escovar os dentes. Ela não está circunscrita a esfera econômica, e em nosso país, raros são os autores que vivem da escrita. Contudo, escrevemos porque vivemos uma democracia: vivemos com o sentimento do dever do partilhar o comum, escrevemos porque somos cidadãos e porque os problemas da cidade nos afetam. A sociedade cabe organizar a forma como educa seus cidadãos e ela precisa da sua manifestação, principalmente dos que são responsáveis por ela:  precisam que os professores expressem suas ideias, suas divergências, suas críticas. Precisam conhecer sua visão de mundo.

Este é o primeiro texto que escrevi para os professores como sua curadoria específica, mas que é claro, o modifico aqui porque acredito que pode ser útil para outros professores de outras escolas que também desejem se organizar em coletivo para escrever seus livros contando suas experiências. Existem inúmeros profissionais no mercado oferecendo seus serviços, mas se por acaso acharem que posso ajuda-los, podem me encontrar nas redes sociais ou em meu site jorgebarcellos.pro.br (plin-plin!). A singularidade aqui é que não são apenas os professores que estão escrevendo um livro; eu também estou com eles nesta experiência. Escrevo para incentiva-los a escrever. É que eles me fazem a provocação:  como professores podem resgatar suas histórias? Falta um manual sobre o assunto. Mas eu fui professor e vivi seu universo. Eu sei o quanto é difícil sair da rotina, estabelecer um ritmo de produção, e as demais fases do processo de produzir um livro, tudo é difícil para quem está no meio da máquina de ensino.  Ninguém me ensinou, tive que aprender do meu jeito e é isso que transmito a eles. Eu passei por isso e posso afirmar por experiência que tudo tem um começo, não é mesmo?

Há um motivo a mais para a importância desse gesto neste momento. Acabamos de assistir a aprovação da reforma do ensino médio. Ela sofreu duras críticas dos educadores, especialmente pela redução do espaço das disciplinas optativas e a rejeição do espanhol como disciplina obrigatória. No Rio Grande do Sul e Porto Alegre, está em andamento o modelo neoliberal de educação e o governador Eduardo Leite está propondo a administração de parcela das escolas estaduais por parcerias público-privadas, o que é recusado pelos professores por colocar as escolas públicas na lógica privatista da educação. O registro em forma de livro das experiências das escolas públicas é um ato político. Ele representa a resistência de professores, a prova da singularidade do exercício do magistério de profissionais das escolas públicas dedicados ao ensino. Incentivar que grupos organizados de professores registrem sua experiência, comprovem seu valor, é um ato revolucionário. É criar argumentos críticos à escola privada, à lógica neoliberal em educação, a partir do argumento que diz que servidores públicos engajados e fora dos limites dados pelo capital, pela ideologia hegemônica, criam cidadãos autônomos e livres. 

Professores escrevem porque são pessoas indóceis. Tem opiniões diferentes da hegemônica. Enquanto o pensamento hegemônico neoliberal acredita que a escola é uma fábrica de cidadãos dóceis para o mercado, os professores acreditam que ela é formadora de cidadãos autônomos e ativos. É que os professores não são espectadores da vida, ao contrário, querem que saibam o que fazem, como fazem e porque fazem. Não são indiferentes às políticas que visam formar cidadãos acríticos, ao contrário, têm suas reivindicações aos detentores de poder a partir de suas experiências. Eles não ficam imóveis frente as suas dificuldades, mas se movem nelas, numa palavra, caminham “quem caminha exprime curiosidade, comprometimento, sente-se e quer sentir-se livre para se movimentar” (LABBUCCI, p. 80).  

Professores escrevem porque querem se libertar de suas prisões. Somos todos dominados por valores contra os quais nos rebelamos, seja o american way life, o estilo de vida americano caracterizado pelo consumismo, pela padronização social e pela crença nos valores do liberalismo, ou agora pelo bolsonarismo way life, sua perversão à extrema direita, caracterizado pela indiferença radical em relação ao outro e a natureza. Ambos se manifestam nas escolas, nos valores que os alunos trazem de casa e que os professores precisam enfrentar, nos programas de reformas educacionais neoliberais que governantes tentam implementar nas redes de ensino e que afetam sua visão de mundo. Em todos os lugares é sempre o esforço de se libertar da prisão do individualismo extremado e do exercício do poder: o mundo onde vigora a lei do mais forte não interessa a quem vive de educar. 

Escrever é difícil para todo mundo. Eu contei para os professores minha própria história em relação a escrita. Espero que ela inspire outros professores a registrar suas experiências. Na reunião de apresentação do projeto, disse a eles que comecei a escrever quando perdi o medo. Eu me lembro da cena de minha infância, o aprendizado das minhas primeiras redações. Era a Escola Estadual Rio de Janeiro, então localizada onde hoje é o Senac da Avenida Coronel Genuíno, em Porto Alegre. A cidade vivia então os conturbados anos 70, no contexto da ditadura militar. Por isso minha mãe dizia para nunca deixar de ir para escola sem documentos, mas eu não sabia bem o porquê. Eu ia para aquela imensa casa antiga, com seu grande pátio onde vivia feliz o recreio com os colegas. No interior, as salas de aula tinham pé direito alto. Na aula de português eu via pela primeira vez a proposta de escrever algo a partir de uma imagem. Era aquela cena onde a professora abre uma imagem em um suporte de uma coleção das que ali ficavam. 

Eu me lembro de ficar paralisado. Em slow motion, como numa cena de cinema, com a janela aberta e as cortinas mexendo-se pelo vento, uma menina na minha frente vira-se para mim e, com a luz do sol ao fundo, me ajuda a escrever a primeira frase. Deve ser por isso, que de alguma forma, às vezes me sinto como um impostor: sempre necessito uma inspiração para escrever, a leitura de uma análise qualquer, uma imagem de cinema para então começar a escrita. Quando isso acontece, voilá, estamos diante da imitação de que nos fala Aristóteles, nossa faculdade de criar que nasce a partir da imitação. Mas no fundo isso também quer dizer que só escrevemos quando a realidade está ali na nossa frente para o gatilho ser acionado. E isso foi algo positivo para mim pois depois nunca mais parei de escrever. E devo isso aos professores que tive e me inspiraram depois muitos professores. Aprendi com Voltaire Schilling e Luís Roberto Lopes a jamais entrar em uma sala de aula sem ela estar escrita no papel; com Sandra Pesavento, as vantagens da argumentação lógica; com meus professores de graduação, não apenas o fazer do método científico, mas também o do fazer poético; com a filosofia francesa contemporânea, que o mundo está aí para ser enfrentado pela palavra. De cada um veio um fragmento que compõe o que sou, o que é minha escrita. Esse é um movimento de liberdade: cada professor tem sua própria trajetória e o importante é estar consciente dela. Parafraseando Michel Foucault, trata-se da “vontade de escrever”.

Com a universidade e as regras do método científico, novos medos se impuseram. Você abandona o mundo em que escrever uma redação é tudo o que lhe pedem e passa para um universo onde há regras para serem seguidas. É que na universidade, a escrita não é apenas a forma como estabelecemos o conhecimento, expomos nossa visão de mundo: é também a forma de estabelecer poder e delimitar zonas profissionais. É lá, no lugar da nossa fala escrita, no lugar que explicitamos nosso pensamento, que aprendemos as maneiras como se diferencia cada campo de saber um do outro, as zonas entre os chamados “amadores” e “profissionais”. Nas lutas entre as disciplinas pela definição de seus objetos é onde adquirimos poder porque aprendemos a dominar uma linguagem, os chamados “termos técnicos”.

Aprendemos na universidade a usar o jargão. Ele também nos dá medo de escrever. Aprendemos a sobreviver no universo intelectual, mas nada é estável nesse meio. O contato interdisciplinar é saudável. Os conhecimentos mudam.  É que não sabíamos, mas estávamos sendo introduzidos no contexto das guerras culturais, o mundo das controvérsias fundamentais da vida universitária. Historiadores disputam lugar com jornalistas para fazerem relatos; sociólogos disputam lugar com geógrafos para falar do caos climático. A universidade era também, de certa forma, uma linha de montagem intelectual e eu não estava totalmente certo de que concordava com suas regras, e por isso, fugia pelas margens. Lia o que me interessava. Mas chega um dia que vamos para a prática de sala de aula e tenham certeza, é esta experiência cotidiana que nos ensina o nosso fazer em seus acertos e erros e faz os seus ajustes em nossa prática dia a dia. Viramos profissionais. Marjorie Garber, em Instintos Acadêmicos (UERJ, 2003) cita o caso do professor de sociologia da Universidade de Massachusssets que em um artigo intitulado “Redação ruim na Academia” acusou seus colegas pelo seu “palavrório presunçoso”. Numa palavra, que escreviam mal. Textos podem ser de leitura difícil, mas compensadora; outros podem usar a fala cotidiana e serem tão dignos quanto os artigos difíceis ou textos acadêmicos. Que estilo escolher? Você não sabe até começar a escrever qual é o seu estilo. O que não se pode é ter medo de escrever um artigo ou texto por se pensar que vão considerar ruim.

Como evitar o texto ruim? Pela clareza. Ela é consequência da liberdade do pensar. Explicar o que se quer, como se quer e fazer. Eu estava diante de professores experientes, mas eu via nos olhos que alguns tinham medo de escrever. Eu precisava mostrar que o medo é um sentimento universal e ele se apresenta para o professor que é autor no momento da escrita. Não escrevemos por ter medo de como será visto nosso pensamento escrito, mas se recusamos a escrever, morremos de uma certa maneira. Ao contrário, escrevemos e fazemos um livro porque ele é motivo de alegria. Não se trata de publicar por publicar, o que hoje, inclusive, já está sendo feita pela inteligência artificial, segunda etapa de escrita após os blogs da internet. Escrevemos porque entendemos que o que vivemos, vimos e sentimos precisa ser dito. Escrevemos porque nossa experiência nos parece digna de ser mostrada. Mas somos professores e, exceto por nossos alunos, somos anônimos. Não temos a sorte de ter uma grande editora que nos procure para tratar de nossa experiência de ensino. Isso é consequência de algo que está além de nosso controle: o mercado editorial. Nesse mundo, há regras de acesso, modos de funcionamento. O sistema editorial é cruel.  Não importa o conteúdo, importa se fisga o consumidor. Numa palavra, vende. Mas nesse mundo cheio de regras e exclusões, ainda temos o direito de escrever.

Alguma coisa está errada quando bons professores, sentindo-se libertos de todas as amarras intelectuais, vivendo sua experiência de ensino com desafios e angústias, não encontram uma forma de publicar suas ideias, suas experiências. Eles querem compartilhar seu mundo, mostrar seus avanços na educação e a frustração advém do fato de que eles produzem conhecimento, mas encontram um sistema hostil de publicação. Qual professor pode pagar os valores que editoras intermediárias cobram para seu lançamento? São valores entre 5 a 10 mil reais. Com valores assim, teme ficar sem orçamento doméstico. Qual professor tem paciência para esperar os prazos que as editoras líderes de mercado pedem para publicar seus originais? Isso leva até um ano. Com prazos assim, temem que seu original perca seu sentido. Isso afeta a liberdade de criação do professor. Ele pode escrever, mas conseguirá publicar? O medo volta mais uma vez.

O medo de escrever surge de uma incerteza. Quanto mais caminhamos no universo da escrita, mais temos medo de não conseguir publicar. De ser lido. Mas se temos a certeza de que somos livres para escrever, o medo diminui. A internet, nesse sentido, vem a favor dos professores que querem escrever. Você pode publicar em várias plataformas. Como Byung Chul Han já demostrou, isso gera outro problema, o do seu excesso. Posso imaginar que quando eu morrer, o mundo continuará sem mim, mas enquanto estou aqui, pelo meu escrito, eu o afeto de alguma forma. Não tenho tanta certeza que algo publicado na internet sobreviva a minha morte na plataforma em que reside. Eu já tive essa experiência. Escrevi para uma plataforma que simplesmente desapareceu. Mas um livro não desaparece. Ele estará sempre ali. Onde? Numa biblioteca. Mesmo se um dia ele vá para um sebo, eu sei que, como se fosse um trabalho de arqueologia, alguém o encontrará.  É por isso o ditado que diz que na vida devemos ter filhos, plantar árvores e escrever…livros! Essa sabedoria popular diz isso porque está preocupada com nossa necessidade de transcender a morte. É sua mensagem de que a permanência pode ser alcançada pela herança de nossos genes, por nossas ações ou pensamentos. Estes últimos ficam em livros.

Aqui a conclusão é que quando falamos que a escrita é uma caminhada falamos de liberdade; falamos do que acreditamos em nossa vida, damos nosso testemunho extraordinário do que é ensinar nas condições que ensinamos, frente as pressões que suportamos. Essa é uma visão idealista? Com certeza. Mas por isso também somos humanos: porque lutamos por nossas ideias. A primeira atitude de quem quer escrever é não ter medo. Escrever nos torna autônomos porque nos torna inquietos, exige de nós mais do que estamos acostumados a dar. Saio do meu lugar comum, do meu cotidiano e reflito sobre ele: encontro nessa caminhada que se faz sob a forma de texto a minha verdade, e por isso o livro é tão precioso. Escrito, ele é a forma de registro de minha história. Como disse certa vez a cantora Nina Simone “liberdade é não ter medo”. A segunda atitude é começar a escrever. Não precisamos ter medo de escrever; não devemos deixar de escrever pelo medo do que vão achar de nossos escritos. Se houver críticas, sempre haverá um momento para reescrever. Sempre haverá um detalhe a corrigir. Comigo é assim. Erro muito ainda e reescrevo. Somos humanos. Precisamos nos permitir escrever nossos pensamentos, nossos sentimentos. Ensinar é um ato de prazer, mas também de muita dor. A de expressar sua verdade, sem falar da própria produção do texto em si.  Mas a vida já é difícil se não nos autorizamos nem ao menos a nos expressar. Por isso é revolucionário. Mostra que você e livre: a escrita nos ajuda a ser feliz. 

(*) Doutor em Educação/UFRGS. Mantém o site jorgebarcellos.pro.br

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


Leia também