
Luiz Antonio Timm Grassi (*)
“Voto por anular o Leilão nº 01/2022 e a contratação derivada”
(Parecer da Conselheira Substituta Ana Cristina Moraes aprovado pela Primeira Câmara do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul)
Este foi o voto constante do parecer que foi apresentado à Primeira Câmara do TCE, cerca de um ano atrás. Estava configurada maioria, mas um conselheiro pediu vistas. A assinatura do contrato entre Estado e a vencedora do leilão, Aegea, deveria ser suspensa até a votação definitiva na mesma Câmara. Surpreendentemente, o Presidente do TCE sem levar a decisão ao Pleno do Tribunal, contrariou-o e considerou-se com autoridade para autorizar a assinatura. Poucas horas depois foi efetivada a entrega da mais antiga companhia pública de saneamento do Brasil ao controle privado. Poucos meses depois, a Câmara retomou a votação e ratificou o posicionamento pela nulidade do leilão vencido pela Aegea (única concorrente…). A essas alturas, a primeira companhia estadual de saneamento do Brasil, com 57 anos de atuação, passou a ser controlada privadamente, assim como os serviços de abastecimento de água de 327 cidades gaúchas além de um número menos por esgotamento sanitário
Fato consumado. Um ano depois, águas passadas… e não se fala mais nisso?
São muitas as perguntas incômodas não respondidas.
O relatório aprovado, nas suas 378 páginas, é riquíssimo em detalhes sobre as ambigüidades, incorreções e inconveniências do processo. Basta ver apenas as Considerações Finais da relatora e as determinações e impedimentos daí provenientes para se concluir que as águas passadas são muito turvas.
As águas não passaram nem passarão antes que muitas perguntas sejam respondidas.
– O Parecer aprovado determina a anulação do leilão “em virtude da frustração do caráter competitivo por causa da incorporação demasiada de riscos desnecessários, devido a erros de gestão de projetos e a não correção das nulidades constantes nos Termos Aditivos de Rerratificação”. A anulação impediria a assinatura do contrato. Como o contrato foi assinado se o leilão deveria ter sido anulado?
– A mesma nulidade viria, “também, devido à subavaliação decorrente de distorções na projeção da atividade operacional da Corsan” contrariando disposições legais. Como o contrato foi assinado com essas importantes “distorções”?
– Ainda foi determinado que o contrato não fosse assinado sem antes de “incluir cláusula de correção monetária para a oferta do arrematante enquanto ela não se efetivar”; também não antes de “corrigir as nulidades indicadas pela Resolução Normativa nº 647/2022 da AGERGS” e igualmente sem “corrigir a distorção da projeção da atividade operacional da Corsan no valuation”. Essas exigências do Parecer aprovado não foram obedecidas?
– A relatora faz uma excelente advertência ao Governo, determinando que o mesmo destine especial atenção acerca da “entrega das outorgas hídricas à empresa privada”. Ao outorgar o direito de utilizar um manancial para o abastecimento público ou para descarga de esgotos sanitários (tratados ou não), o Estado também coloca no ente responsável pelos serviços a responsabilidade (ativa!) de cuidar, ao lado dos demais usuários da bacia hidrográfica da proteção e conservação do manancial. Como uma empresa privada, que tem no lucro sua meta primária, vai dar atenção a esse dever oneroso e que implica uma especial dedicação como se observa na atuação de empresas públicas?
– No mesmo item, é feita referência à necessária “colaboração dos Comitês das Bacias Hidrográficas” para atingir eficientemente a meta e o dever anterior. Muito bem observada essa referência que, reconhece aos Comitês o direito e o dever de manifestar-se sobre as propostas de privatização. Como realizar isso, se o Governo do Estado não tem reconhecido devidamente essas instâncias legais de gestão das águas? E como seguir o processo de privatização adiante sem atender a esse “alerta”.
– Observe-se que a relatora, ao chamar a atenção sobre o repasse da outorga e os cuidados e providências correspondentes, menciona o motivo principal dessa determinação: que deve ser “de forma a preservar, para as presentes e futuras gerações, o bem precioso que é a água”! Aqui está o reconhecimento de que a água é um bem essencial como diz resolução da ONU de 1992. Como bem essencial é indispensável à sobrevivência humana e cabe ao Poder Público prover sua disponibilização em condições adequadas de disponibilidade e não como mercadoria. É assim que procede uma empresa privada? Os serviços de abastecimento de água potável podem ter como finalidade principal o lucro e os interesses de uma empresa privada? As centenas de exemplos de reestatizações desses serviços, em muitos países, mostram que a resposta é negativa.
– Em outro item, a autora refere-se à obrigação constitucional do Estado de manter órgão técnico normativo e de execução dos serviços de saneamento básico, exatamente o papel exercido pela Corsan. Ao ser privatizada, o Estado descumpre a Constituição Estadual a não ser que crie outro órgão com as mesmas funções executivas da companhia vendida… O Parecer aprovado diz claramente ao alertar o Estado para que ”crie o órgão de execução do saneamento, previsto no art. 22, § 3º, da CERS/89, devendo exercer as competências constitucionais e legais” Por que criar essa “nova Corsan”, se esse “órgão de execução” já existia. É de conhecimento geral que isso não foi nem será providenciado. Como e quando será cumprida a Constituição?
– Em outro item, o Parecer recomenda diversas providências a serem tomadas pelos municípios para que sejam respeitados seus direitos de titularidade dos serviços de saneamento básico antes de ser lançado um novo edital. Esta recomendação foi atendida pelos municípios que já eram atendidos pela Corsan?
– Na finalização, o Parecer determina diversas ações da Direção de Controle e Fiscalização do TCE, envolvendo auditoria da Controladoria e Auditoria-Geral do Estado, instauração de Processo de Contas Especiais “para examinar os impactos da desestatização na Parceria Público-Privada na modalidade de concessão administrativa da Região Metropolitana” (sistema de esgotamento sanitário). E ainda determina que a DFC do TCE “cientifique o Ministério Público Estadual e a Polícia Civil (1ª DECOR/DCCOR) para que exerçam, querendo, as suas competências no que diz respeito ao disposto na alínea “a” desta parte dispositiva” (“anular o Leilão nº 01/2022 e a contratação derivada”). Isso foi cumprido?
– E afinal, foram efetivadas todas as determinações constantes na decisão referentes ao valor patrimonial da Corsan que foram adotadas pelo contrato em face de importantes diferenças apontadas pela Relatora?
– Sem o atendimento a essas recomendações transformadas em decisões, como pode ser assinado o contrato de entrega de uma companhia pública a uma empresa privada?
– E o recurso interposto pelo Procurador-Geral do Ministério Público de Contas Geraldo Costa Da Camino junto ao Presidente do TCE que suspendeu a decisão da Primeira Câmara, permitindo ao Governo do Estado e a Aegea assinarem o contrato sem o aval do Pleno do TCE não foi considerado?
Todos esses questionamentos vêm à tona ao se conhecer o parecer da Relatora que foi aprovado pela Primeira Câmara do Tribunal de Contas e o recurso do Procurador-Geral de Contas.
Outras perguntas podem ter ficado, ao longo do processo, também sem respostas, mas mesmo somente estas aqui trazidas, todas baseadas no Parecer aprovado, servem para mostrar essas águas, consideradas passadas, ainda bastante turvas. Haveria, ainda, um ”sistema de tratamento” para que essas águas voltassem a sua limpidez legal?
Não é preciso lembrar mais a importância da água potável distribuída por rede pública e do serviço de afastamento e tratamento do esgoto sanitário para a saúde e para o meio ambiente. O fato é que, a partir de então, o Rio Grande do Sul está com seu saneamento básico entregue ao predomínio dos interesses privados e do lucro.
A sensação que fica é a de que as águas turvas levaram de roldão a legalidade, o poder de decisão legal de um importante órgão de fiscalização que realizou um trabalho primoroso. O Estado está a serviço das causas do povo, amparado pelo tecido legal ou submetido a interesses do capital e do mercado?
(*) Engenheiro, ex-presidente do Comitesinos e do Comitê do Lago Guaíba
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