
Nota da rede de coletivos do Morro Santana: Preserve Morro Santana (programa de extensão da UFRGS), Coletivo Mães da Periferia, Resistência Popular Comunitária, A Voz do Morro, Retomada Gãh Ré, Coletivo pela Educação Popular (COLEP), Erês Aiyê Juventude, Centro Espírita de Umbanda São Miguel Arcanjo, Caminho dos Morros de Porto Alegre
No dia 03/07, uma queimada de grandes proporções atingiu a face norte do Morro Santana. O fogo iniciou por volta do meio-dia em uma área de campo nativo pertencente a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e foi se alastrando ao longo do dia. Um dos satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) conseguiu captar o foco às 17h22, quando atingia a magnitude de 6.1 FRP (Potência Radiativa do Fogo). Moradores relatam que passaram o dia tentando acionar o corpo de bombeiros, mas que este só conseguiu acessar o local por volta das 19h30, quando o fogo já havia se espalhado por uma grande área e corria o risco de atingir moradias.
É possível que essa tenha sido a maior queimada que já presenciamos desde o surgimento do Preserve Morro Santana, superando inclusive a de março de 2020. As imagens circularam rapidamente pelas redes sociais provocando uma grande comoção por parte da população. No entanto, gostaríamos de alertar a todos que se solidarizaram que este não é um evento isolado. Para nós, é exaustivo escrever sobre um problema que se repete ano após ano, sem que soluções sejam apresentadas pelo poder público.
Uma pesquisa realizada por um integrante do Preserve Morro Santana identificou que houve pelo menos 25 incêndios com proporções significativas na vegetação dos morros de Porto Alegre entre 2015 e 2020, sendo 9 destes no Morro Santana. Outro levantamento mais recente, baseado nas ocorrências registradas no twitter do Corpo de Bombeiros, aponta 5 ocorrências de queimadas em vegetação no Morro Santana entre abril de 2023 e fevereiro de 2024. A tendência é que esses números sejam subestimados, já que nem todos os incêndios são noticiados pela mídia, e nem todas as ocorrências do Corpo de Bombeiros são relatadas no twitter.
Para compreender esse problema de forma estrutural, gostaríamos de chamar atenção para alguns elementos que costumam se repetir a cada evento:
1. A negligência por parte do Corpo de Bombeiros:
Os relatos de ontem, não pela primeira vez, são de uma comunidade que passou horas tentando acionar o Corpo de Bombeiros e que não teve sua demanda atendida. As primeiras ligações ocorreram por volta do meio-dia, quando o foco ainda estava concentrado numa pequena área do topo do morro. Uma guarnição foi enviada por volta das 16h30, mas acabou atolando na estrada e foi embora. Os bombeiros só conseguiram acessar, de fato, o local por volta das 19h30 quando o fogo já havia se espalhado completamente. São inúmeros relatos de moradores que tentaram ligar para o 193 e ou não foram atendidos ou o telefone estava fora de área. Alguns relataram que o atendente desligou na cara das pessoas. Era noite quando três caminhões de bombeiros se distribuíram por diferentes regiões do morro para tentar conter as chamas. Porém, mais uma vez, os equipamentos da corporação pareciam insuficientes e as chamas só foram contidas com auxílio dos moradores que precisaram emprestar abafadores para os bombeiros.
No caso de queimadas em áreas rurais é comum que a população tenha treinamento e equipamentos como abafadores, além da prática das queimas controladas para evitar o acúmulo de biomassa no solo. Por que os governos municipal e estadual, em conjunto com o Corpo de Bombeiros, não tem um planejamento para lidar com essas queimadas em área urbana? Como já levantamos, esse é um problema crônico: o Corpo de Bombeiros está informado de que todos os anos ocorrem dezenas de queimadas nos morros, é obrigação deles ter treinamento e infraestrutura para lidar com isso.
2. A dificuldade em apurar a origem do fogo:
Outra questão recorrente em todos esses eventos é a dificuldade de apurar a origem das queimadas. Como o fogo começou? Como distinguir um incêndio criminoso de um acidental ou de uma combustão espontânea? Algumas justificativas são apresentadas pelo Corpo de Bombeiros como condições climáticas (umidade relativa do ar, vento, calor…) e possíveis ações humanas (criminosas ou não) que podem ter originado a combustão.
De acordo com ecologistas, uma das características dos campos nativos é o acúmulo de biomassa no solo, que sem o devido manejo pode facilitar a propagação do fogo. Em resumo, a vegetação campestre é adaptada ao fogo e está apta a regenerar-se rapidamente. O que gostaríamos de chamar atenção é para o fato de que por ser considerado um processo “natural”, muitas vezes acaba-se minimizando o aspecto “social” da questão (utilizamos aspas porque sabemos o quanto essa separação entre natureza-sociedade é limitante).
Observamos no discurso do Corpo de Bombeiros uma recorrente normalização desses eventos como justificativa para sua negligência: “o local é de difícil acesso”, “o fogo atingiu somente vegetação”, “não há risco para as residências”, são algumas das desculpas apresentadas para minimizar o problema. Porém a realidade é outra. Trata-se de uma vegetação campestre inserida (e pressionada) pela malha urbana, em um morro onde vivem dezenas de milhares de pessoas, incluindo os indígenas da aldeia Kaingang Retomada Gãh Ré.
3. Racismo ambiental
Ontem o fogo chegou a poucos metros de muitas casas da região do Borel e da Rua Gildo de Freitas e o que se via era desespero. A cada incêndio, pessoas precisam sair correndo de suas casas e passam mal devido a inalação de fumaça (por vezes chegando a desmaiar). Nos dias seguintes, muitas pessoas relatam seguir com dificuldades respiratórias, isso para além do fator psicológico, já que eventos como esse são profundamente traumáticos para quem os vivencia. Outro agravante é que animais nativos tentam se refugiar do fogo buscando abrigo em casas da comunidade e algumas vezes chegam a ser atropelados.
E não é nenhuma novidade que quem mais sofre com os eventos climáticos extremos são os mais pobres, que devido a falta de políticas de habitação popular são pressionados a morar em locais de risco. É por isso que vemos cada vez mais moradias na encosta do morro, onde a água não chega, mas o fogo queima. Os riscos ambientais provenientes do acesso precário à infraestrutura urbana (deslizamentos, alagamentos, queimadas…) estão concentrados nas “áreas de risco”, onde se concentra majoritariamente a população negra e indígena, lógica que reflete o racismo ambiental em nossas cidades. Em muitos casos, são essas mesmas populações (periféricas, negras, indígenas, quilombolas) que atuam no sentido da preservação dos seus territórios, com pouco ou nenhum apoio do poder público. No Morro Santana, o povo Kaingang é um dos grandes protetores dos campos, matas e nascentes e luta há décadas pela demarcação da Terra Indígena.
Conhecemos a realidade do Morro Santana e sabemos que existem fatores específicos que podem contribuir para a propagação do fogo, como o acúmulo de lixo nas trilhas, a prática de motocross e a disseminação da espécie exótica Pinus elliotti. No entanto, para compreender melhor a complexidade, algumas perguntas precisam ser respondidas: como esses fatores locais interagem com os fatores ambientais mais amplos, como as mudanças climáticas, ampliando pequenos focos de incêndio para queimadas de grande escala? O aumento na frequência e intensidade das queimadas está diretamente ligado à urbanização intensiva de Porto Alegre? A flexibilização das políticas de conservação ambiental em favor de uma cidade orientada pelo mercado influencia o fenômeno das queimadas? É imprescindível que sejam feitos estudos e investigações aprofundadas buscando compreender os fatores que tornam este fenômeno mais suscetível a ocorrer, não apenas para o desenvolvimento de medidas de prevenção e mitigação, mas também para diferenciá-lo de possíveis incêndios criminosos.
(*) Coletivos do Morro Santana: Preserve Morro Santana (programa de extensão da UFRGS), Coletivo Mães da Periferia, Resistência Popular Comunitária, A Voz do Morro, Retomada Gãh Ré, Coletivo pela Educação Popular (COLEP), Erês Aiyê Juventude, Centro Espírita de Umbanda São Miguel Arcanjo, Caminho dos Morros de Porto Alegre.