Opinião
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9 de julho de 2024
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07:13

A realidade dos reality shows (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Luciano Mattuella (*)

Foi-se o tempo – ou já deveria ter ido – em que os intelectuais e pensadores da sociedade ignoram os fenômenos de massa. Evitar pensar os produtos culturais populares, além de uma forma de elitismo, é também um déficit do ponto de vista reflexivo: afinal, onde mais podemos buscar elementos para interpretar o tecido social se não naquilo que é mais difundido, falado e comentado?

Claro que os clássicos da chamada alta cultura são relevantes, especialmente no que se refere a uma leitura transversal daquilo que nos afeta a todos, estruturalmente, do que é constitutivo do humano independente de sua inscrição em um época específica. Entretanto, somos todos filhos de nossos tempos e, por isso mesmo, também somos interpretados pelas séries, filmes, livros e manifestações artísticas do momento histórico do qual fazemos parte. 

Apesar da aspiração erudita das classes mais privilegiadas, todos partilhamos anseios e vontades que são muito bem explicitadas pela cultura pop, ainda que tenhamos receio de admitir. Afinal, algo que Freud já nos ensinou há mais de um século é que, apesar de nos querermos tão elevados, o que há de mais fundamental em nós responde a desejos infantis perversos que não estão nem aí para os altos valores culturais. 

A nossa realidade mais íntima é muitas vezes irreconciliável com o discurso dos bem estudados, e tivemos razoável sucesso por muito tempo ignorando esta dimensão abjeta que nos é tão estranhamente familiar. Uso a palavra “realidade” com total consciência aqui, uma vez que, ainda que tenhamos certo receio de admitir, é esta realidade inconsciente que efetivamente organiza os nossos desejos, nossos laços e nosso interesses.

Temos acesso a estes bastidores que nos constituem de várias formas. Uma delas, claro, é através de uma análise, um ambiente seguro em que o véu da decência pode ser levantado para que possamos escutar-nos falar sobre coisas que não admitiríamos em outros lugares. Mas existe outra forma de chegarmos aos subterrâneos do social: basta atentarmos para aqueles produtos culturais que têm mais gerado audiência nas serviços de streaming e, consequentemente, engajamento na internet.

Neste sentido, é inegável que os reality shows se tornaram um analisador privilegiado do discurso corrente. Afinal, ainda que existam há já algum tempo, foi nos últimos anos, com a consolidação das redes sociais como ágora contemporânea, que eles passaram também a ser comentados e repercutidos de forma ainda mais ampla. E, nesta gama de programas, acabam merecendo ainda mais atenção os dedicados ao encontros amorosos, sendo que o principal, como sabemos, é o Casamento às Cegas, versão brasileira do estadunidense Love is Blind.

Nesta atração da Netflix, presenciamos um grupo de solteiros (ou que se dizem solteiros, pelo menos) em busca de seu par perfeito. Em uma primeira etapa, o elenco participa de encontros rápidos mediados por uma parede que impede que os participantes se vejam – daí a premissa do programa: “O amor é mesmo cego?”. Em certa altura, são realizados os pedidos de casamento e, a partir daí, os pretendentes finalmente se conhecem, fingem que acham o outro lindo, e vão para uma lua-de-mel em grupo em alguma região cinematográfica do Brasil. Por fim, eles conhecem os familiares e amigos da sua cara-metade e vivem “uma verdadeira vida de casal”. Nos últimos episódios do programa acontece o chamado “casamento”, cerimônia em que os espectador finalmente ficará sabendo quais casais dirão “sim”. Algum meses e vários seguidores a menos depois, o casal se separa, claro.

Afinal, a suposta realidade dos reality shows não reside na naturalidade do comportamento dos participantes. Muito pelo contrário, se há algo de real nestes programas é o tanto que eles explicitam a lógica subjacente ao tecido social de nossa época: o fato de que todos nós, em maior ou menor medida, performamos uma versão que julgamos ser a mais agradável aos olhos dos outros, inclusive daqueles que não vemos.

Os reality shows tornam evidente que supor haver alguém nos olhando e desejando é condição necessária para a nossa constituição enquanto humanos. O olhar do outro é uma dimensão incontornável na construção da nossa imagem, e por isso mesmo supomos que ele está por todos os lugares. Nos realities, ele efetivamente está. No “Casamento às Cegas”, por exemplo, a única interdição do olhar é com relação a quem está do outro lado da cabine. 

Mas o mais curioso é que, mesmo quando os pretendentes finalmente podem se ver, ainda assim o outro está ali como uma mercadoria a ser consumida, e não tanto como um parceiro com quem começar uma história. O outro segue não sendo olhado em sua singularidade.

O que está em jogo, a bem dizer, não é tanto encontrar alguém, mas fazer um melhor uso de si e do outro como produtos a serem consumidos por um público que sabe que tudo ali é uma performance por engajamento, mas que mesmo assim reage fielmente ao programa como se aquelas pessoas realmente vivessem e agissem daquela forma na vida do dia-a-dia. 

Neste sentido, fica estabelecida entre o público e o programa uma forma de relação típica dos nossos tempos, algo que pode ser resumido à frase: “me engana que eu gosto”. Por um bom tanto de diversão, pactuamos com a lógica cínica e tiramos proveito dela. Nós também acabamos nos cegando e fingindo que acreditamos na performance a que assistimos.

Neste sentido, a artificialidade dos reality shows, paradoxalmente, aponta para o núcleo duro da realidade, deixando claro que a nosso tecido social depende da manutenção de uma lógica cínica em que nós sabemos que performamos uma vida para o olhar do outro, mas também sabemos que ele sabe disso. E vice-versa. Fingir cegueira com relação a este acordo dá liga para a realidade em que vivemos. 

Sendo assim, faz muito sentido o apelo dos reality shows, uma vez que eles desdobram algo que nos é tão próprio. Nos encontramos tanto na empatia pelos dramas de alguns participantes quanto também no prazer sádico de ridiculizar os excessos e desvarios de outros. Entre a identificação à nossa complexidade com relação ao amor e à autoindulgência com a perversidade que nos constitui, vamos sendo sugados por mais um e mais outro episódio, à espera do julgamento final do tão aguardado capítulo final.

Mas, sinceramente, tudo bem. Até porque não dá pra aguentar um mundo real demais o tempo todo.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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