Opinião
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12 de maio de 2024
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07:30

Tragédia climática do RS impõe necessidade de repensar formas de planejamento das cidades (por Sandro Ari A. de Miranda)

Projeto do sistema de proteção no rio Jacuí, na cidade de Eldorado do Sul, é o que está em estágio mais avançado. Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini
Projeto do sistema de proteção no rio Jacuí, na cidade de Eldorado do Sul, é o que está em estágio mais avançado. Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini

Sandro Ari Andrade de Miranda (*) ,

Quando este artigo foi escrito, os números da tragédia climática que afetou o Rio Grande do Sul, no mês de maio de 2024, são assustadores: 136 mortes, 125 desaparecidos, 806 feridos, quase 537,3 mil desalojados, 81 mil pessoas em abrigos, 446 de 497 municípios do Estado afetados e, conforme levantamento do DENIT, cerca de R$ 19 bilhões de danos apenas na infraestrutura das estradas federais. São números de uma guerra de grandes proporções, referentes a um desastre ambiental sem registros históricos no país.

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Infelizmente, a tragédia que hoje assola o Estado poderia ter sido mitigada pelas autoridades, na medida em que o Instituto Nacional de Meteorologia – INMET alertou sobre os riscos ainda em abril. Entretanto, a maioria dos gestores públicos locais, incluindo Prefeitos e o Governador, apesar dos ciclones e enchentes quem em 2023 deixaram marcas graves na região, ou não agiram para reduzir os danos, ou menosprezaram a intensidade do alerta, ou atuaram de forma lenta e desidiosa. O resultado está nos números e na escala de destruição.

No momento, o compromisso coletivo é salvar vidas e reduzir o sofrimento das milhares de famílias que perderam tudo com a chuva. Apesar disto, já se discute o que será feito depois da passagem da crise e uma palavra surge como solução fundamental para todos os problemas: planejamento. Não são raras as vezes que a imprensa e as autoridades locais falam sobre a necessidade repensar cidades, realocar populações e na construção de cidades resilientes às mudanças climáticas como soluções mágicas para resolver todas as crises vindouras. Mas será esta a efetiva solução? Vamos pensar um pouco.

Grande parte das autoridades que hoje apelam para o replanejamento das cidades, o que inclui o atual Governador do Rio Grande do Sul, são em parte responsáveis políticas pela tragédia na medida em que fomentaram a flexibilização de normas ambientais e o desmantelamento das estruturas públicas de controle. Ora, como replanejar a realidade, quando se implementa uma política de desconstrução e extinção dos sistemas de planejamento?

Um pouco antes da posse de Leite (PSDB), o antigo Governador, José Ivo Sartori (MDB), extinguiu parte das estruturas que compunham a inteligência de planejamento do Estado, notadamente a Fundação de Ciência e Tecnologia (Cientec), a Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan), a Fundação Zoobotânica (FZB) e a Fundação de Economia e Estatística (FEE). Embora alguns funcionários tenham sido remanejados, o Estado perdeu muito da sua base de informação e, principalmente, organização administrativa, além de ver extintos setores responsáveis pela produção de dados que hoje fazem muita falta para a sociedade.

Além disto, embora os Estados possuam atribuição constitucional para apresentar diretrizes ao planejamento urbano e sejam responsáveis pelo planejamento metropolitano, não se verifica nenhuma política estadual concreta neste sentido. Contudo, o problema do Governo do Estado não é isolado, muitos municípios necessitam de estruturas permanentes, sólidas e multidisciplinares voltadas ao planejamento. Mas a predominância, especialmente nas regiões mais afetadas pelas cheias, de administrações dominadas pela ideologia que defende o corte de despesas públicas e a redução do quadro de servidores, tende a não solucionar esta questão. Prova disto, é que não faz muito tempo, por força do Estatuto das Cidades (Lei 12.257/2001), a maioria dos municípios brasileiros passou por um processo de construção ou revisão dos seus planos diretores, inclusive diversas das cidades gaúchas que foram destruídas pelo desastre ambiental recente. Todavia, como se verifica, tais instrumentos normativos não responderam às necessidades do ambiente local, especialmente em contexto de mudanças climáticas.

O problema principal foi a adoção da lógica do planejamento proforma, com a contratação de consultores privados que desenharam cidades, produziram mapas, definiram índices, muitas vezes sem debate público com a população, e depois foram embora. Ficou a lei, mas faltou a estrutura de acompanhamento e a garantia da carreira e de autonomia funcional para negar, por exemplo, a construção de grandes empreendimentos comerciais ou industriais em áreas de preservação permanente em margens de rios. Portanto, a primeira necessidade fundamental, é considerar que o planejamento é uma função pública e que o interesse público (que não se confunde com o interesse do Governo) não pode ser delegado para terceiros.

Um segundo aspecto fundamental consiste na compreensão de que planejar e uma ação transdisciplinar, não pode ser restringido às rígidas fronteiras do pensamento disciplinar da modernidade. Isto significa que desenhar cidades não é mais apenas atribuição de um engenheiro ou de um arquiteto, ou de uma lei escrita por um advogado, às vezes únicos profissionais da administração municipal. É necessário considerar elementos bióticos e geológicos e, em muitos casos, o conhecimento ancestral das comunidades tradicionais que possuem relação com a terra antes do empresariamento da agricultura. Uma cidade não é um mapa lançado no papel, mas um organismo vivo, que dialoga com a natureza onde está inserida. Quando este diálogo é malfeito, inexiste ou é autoritário, temos as tragédias ambientais.

O terceiro problema é a mudança da escala de planejamento. Diferente do que se pensava nas décadas passadas, não é mais possível pensar as cidades dentro do horizonte estreito dos planos diretores. Todas as cidades estão inseridas dentro de estruturas ambientais e, especialmente, dentro de bacias hidrográficas. Isto significa que antes das próprias cidades produzirem as suas propostas de administração do espaço, cabe aos Comitês gerenciadores das bacias hidrográficas definirem regras gerais de controle.

E aqui mora mais um problema. Para que os Comitês de Bacia comecem a interferir no planejamento, é necessário construir ferramentas que ampliem a intervenção do Estado, ação que vai em sentido oposto ao das pretensões de Eduardo Leite (PSDB) que, desde a sua posse, em 2019, vem desconstruindo a legislação ambiental estadual. O último exemplo neste sentido foi a Lei Estadual nº 16.111/2024, que autorizou a construção de barragens e açudes em APPs. Tal norma, além de flagrantemente inconstitucional, facilita exatamente aquilo que contribuiu para a tragédia no RS, que foi a destruição das áreas de contenção natural de cheias em recursos hídricos.

Portanto, como se observa, a solução dos problemas ambientais do Rio Grande do Sul e para que estes não retornem ou se agravem, não se resume ao planejamento formal, mas exige uma grande virada política que coloque a vida e o meio ambiente em primeiro lugar. Isto significa que até planos de enfrentamento às mudanças do clima podem parar nas gavetas caso não exista diálogo e comprometimento político e social, pois planejar é muito mais do que escrever textos. Exige discussão, participação, monitoramento e controle e, para isto, também é necessária presença de um Estado sólido, com sistemas e estruturas próprias de gestão, e comprometido com toda a sociedade.

(*) Advogado, doutor em sociologia

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