
Jorge Barcellos (*)
“Se queres compreender uma questão, faça a sua história”. Louis Althusser
“A verdade está na tragédia”. Rainha das Lágrimas, episódio 16.
Vivemos em tempos da guerra, afirma Maurízio Lazzarato e Eric Alliez em Guerra e Capital (Ubu, 2021). Com a tragédia da enchente que se abateu sobre o solo gaúcho, o vocabulário militar tornou-se de uso comum. Dizemos que “estamos em guerra”, que as autoridades estão decidindo em seu “bunker” e nós, civis, já estamos raciocinando em termos militares: para onde vão os caminhões com doações, quais estradas seguir etc. Descobrimos que não existe enchente fora do conceito de guerra. Mas exatamente o que dizemos quando dizemos isso? Pensamos que o meio ambiente está em guerra conosco, já que é o responsável pela tragédia. A enchente é um acidente climático, mas há outras causas mais profundas da tragédia que apontam para os responsáveis. Como todos, acredito que primeiro temos de salvar as vítimas e reconstruir as cidades. Mas apurar as causas, o que deveria ter sido feito e não foi, não é uma discussão que possa ser deixada de lado. Tivemos uma enchente em setembro: se as autoridades tivessem tomado para si o que era alertado pelas autoridades científicas, o dano seria menor.
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Aqui o pressuposto é que a catástrofe ambiental é também produto de uma guerra econômica contra o neoliberalismo, que a agudizou, é produto da guerra da nova direita com sua imensa fábrica de fake news contra justamente quem está buscando vencer a guerra das águas, o poder público e a ciência. Os autores falam dos processos de subjetivação em jogo nas guerras, que no caso das enchentes que atingem o solo gaúcho, encontram-se no esforço para reduzir as responsabilidades da participação dos governantes na sua origem “não é hora de procurar os culpados”, dizem as autoridades. É que encontrar responsáveis não é demonizar o estado. Responsabilizar atores políticos é diferente de renunciar a um estado democrático e republicano. É assim aqui. Se defendemos o papel do Estado é por seu compromisso com políticas públicas e com os mais pobres.
Precisamos do estado porque precisamos de regulamentação. Mas com a ascensão de políticas neoliberais, iniciou-se uma era de desregulamentação da legislação de proteção ambiental e sucateamento de serviços públicos. Assim que a enchente iniciou, o jornalista André Trigueiro lembrou a desregulamentação ambiental promovida pelo governador Eduardo Leite, que tem sido árduo crítico de tais políticas assim como toda a equipe e colaboradores do Sul21. A nível local, este processo foi acompanhado por uma era de precarização da infraestrutura de água e saneamento, que iniciou no governo Marchezan com a extinção do DEP e chegou ao governo Sebastião Melo com a precarização da infraestrutura de combate às enchentes. O mote “precarizar para privatizar” era a estratégia dos governantes locais em sua adesão às políticas neoliberais. Governantes sucumbiram aos imperativos neoliberais, não hesitaram, mesmo frente aos avisos da ciência, de suas equipes, de técnicos em redefinir a proteção do território de Porto Alegre com medidas de caráter destrutivo, antiambientalista e antiproteção dos cidadãos. O neoliberal portoalegrense dream transformou-se em pesadelo.
O problema é o desequilíbrio óbvio entre os interesses de nossos governantes e a proteção social. De um lado eles se transformaram em parte da máquina de guerra do capital nos termos de Lazzarato & Alliez, e de outro, as lutas do movimento ecológico local e regional contra o este sistema-mundo nos termos de que fala Immanuel Wallerstein. É um desiquilíbrio político porque os técnicos, ambientalistas, militantes, servidores públicos não tem força política para enfrentar a agenda neoliberal. Eles precisam que a sociedade eleja governantes aliados do povo e não do capital. É como um ….déficit intelectual, um vazio em nossos governantes que é ocupado pelo desejo de facilitar a expansão do agronegócio e da especulação imobiliária. Por isso estamos em guerra. Dizem os autores “É como uma guerra”, mesma frase ouvida em todas as situações em que o capital avança sem controle e que, segundo ele, deve ser substituída por “é de fato uma guerra. A reversibilidade entre guerra e economia está no fundamento do capitalismo”. Segundo ele, na linha de Carl Schmitt, não há pacifismo no liberalismo, apenas continuidade entre economia e guerra “a economia persegue fins de guerra por outros meios (“o bloqueio do crédito, o embargo de matérias-primas, a desvalorização da moeda estrangeira”)” e acrescento a exploração e destruição da natureza, exatamente como propõe Paul Virilio: é o caos ambiental.
São guerras sangrentas, com um elevado número de mortos, uma violência fria não apenas por ser uma cidade invadida pelas águas, mas por se tornar um campo de batalha que diminui à medida que elas avançam. Falamos de guerra contra as águas como se fosse um ato isolado, mas é um ato contínuo entre guerra, economia, política ambiental e acidente climático. Desde os primórdios, o liberalismo é uma filosofia da guerra total. O Papa, que chamou a atenção do mundo para a tragédia e fez doação, definiu muito bem a situação “quando falo em guerra, falo de uma guerra de fato, não de guerra religiosa, mas de uma guerra mundial fragmentada em mil partes. […] É a guerra pelo lucro, pelo dinheiro, pelos recursos naturais, pela dominação dos povos”. Gaúchos e porto-alegrenses tornaram-se refugiados como acontece no Oriente Médio com sua população que foge e “inunda” a Europa; agora, a inundação é dos refúgios, abrigos construídos, espécie de guerra neocolonial ambiental, que deixa os pobres entregues a sua própria sorte. Até quando durarão as doações que garantem seu abastecimento?
A “dita governança” de proteção social não atinge o capital. Neste momento, está parada a tentativa no Senado de ampliar a desregulamentação ambiental e empresários buscam por flexibilização dos direitos trabalhistas. O estado de emergência climático reduz os direitos do trabalho, não os amplia. O único ator a ampliar e conceder benesses é o mesmo que, até pouco tempo, os capitalistas queriam varrido para baixo do tapete: o Estado. Na tragédia, sem o Estado, o capital jamais poderia funcionar.
Às expressões “guerra justa”, “guerra infinita”, “guerra contra o terror”, surge mais uma, a “guerra ambiental”. Diz Lazzarato & Alliez: “as guerras, e não a guerra: eis a nossa segunda tese. As “guerras” como fundamento das ordens interna e externa, como princípio de organização da sociedade; as guerras, não somente de classe, mas também militares, civis, de sexo, de raça, a tal ponto integrantes da definição do Capital que, para dar conta da dinâmica delas em seu funcionamento real, seria preciso reescrever o livro de Marx do começo ao fim.” O jornalista Rodrigo Lopes, que visitou inúmeros cenários de guerra no mundo, navega pelo centro da capital e sente-se comovido: a guerra está em seu próprio lugar. Dizem os autores: “Nas reviravoltas mais importantes do capitalismo, encontra-se não tanto a “destruição criadora” de Schumpeter, promovida pela inovação empresarial, mas o empreendedorismo das guerras civis”. A cada fase do desenvolvimento do capitalismo, ele inventa seu próprio modo de criar a guerra, como afirma Giovanni Arrighi.
O esforço com que nossos governantes têm em dissociar o seu apoio explícito ao desenvolvimento do capital da sua omissão na proteção da cidadania origina-se no fato de que, desde o século XVI, XVII e XVIII, o capitalismo deixou de passar apenas pelas cidades, mas pelo Estado, entidade que teve condições de realizar de fato a expropriação, transformando-se ele próprio em uma máquina de guerra do capital. Imaginar que o governador tenha flexibilizado mais de 450 itens de nossa legislação de proteção ambiental diz muito do modo como é usada a força pública, que não se dá pelo uso do exército, mas pela competência de legislar em defesa do capital. Lembrar que o prefeito não realizou concurso para o DMAE após inúmeros avisos é outra forma de revelar sua ênfase na privatização. A defesa do papel dos voluntários pelo governo, que é real, chega a esconder o lugar de participação dos próprios servidores públicos de todos os níveis e esferas, o que foi criticado como parte desse discurso neoliberal que diminui o papel do estado “veja, são cidadãos salvando cidadãos!”.
Ora, isto é apenas mais uma face de um estado que, nos termos de Paul Virilio, transforma o civil em militar. Não é verdade. Temos um estado neoliberal obrigado a fazer sua obrigação, salvar vidas. Lembram-se de Zigmung Bauman, em sua obra Vidas Desperdiçadas? É interessante para o capital que parcela da população que não encontra lugar na produção simplesmente desapareça. Esta talvez tenha sido o diagnóstico sociológico mais cruel do capital. Não temos dúvida de que na origem de nossa tragédia, na origem das enchentes, está a transformação da paisagem e da regulação de proteção ambiental promovida por governos que não apenas aliaram-se o neoliberalismo, mas foram por ele apropriados. O capital financeiro, o capital imobiliário, o capital rentista se apropriaram diretamente do Estado, transformou-o em sua mais nova máquina de guerra, no sentido dado por Lazzarato & Alliez. Por isso nossos governos cederam de sua função de proteçãoi modificada pelo capital.
A enchente é uma guerra ecológica que tem por trás uma guerra econômica. O emprego da população através do voluntariado, a participação de empresas através de doações, o esforço de afirmar que não é hora de “apontar culpados” tudo faz parte do processo de salvamento sim, mas também são partes de um processo de subjetivação (F. Guattari) em massa por meio de técnicas de comunicação, construção da opinião, fake news como um todo. A produção da destruição foi acompanhada de um processo de subjetivação em massa por meio da gestão de técnicas de comunicação e fabricação de opinião. Jornais do interior do Rio Grande do Sul fazem circular mensagens que denunciam o exército, o governo, sua forma de afirmar na tragédia o princípio de redução do papel do Estado. A jornalista Angela Carrato denunciou o Jornal Nacional de sexta-feira passada (10/05) por sua cobertura mentirosa contra o governo Lula como se “o governo não está fazendo nada e que todo o socorro vem da parte de voluntários e militantes”. Para Carrato, a Globo age para proteger os responsáveis desta situação de caos, sejam autoridades de governo, a bancada bolsonarista e o agronegócio. Para o Prefeito, a queda da ponte do viaduto da Conceição é uma tentativa de resgate da circulação, mas é também seu equivalente da queda do Muro de Berlim, é seu desespero de produzir uma imagem que coloque a pá de cal em seu fracasso como gestor – como assim não recuperou a barreira de proteção contra as cheias? Como assim não investiu em prevenção? É também sua forma de transformar o conceito de “guerra no seio da população” em “guerra no centro da cidade”. Lá estava ele, transmitindo em tempo real, com o apoio da mídia local, as imagens de dezenas de caminhões mobilizados para o aterramento. Esperamos que o repique da enchente previsto para a semana que inicia em 12/5 não torne inútil a obra.
Trata-se de uma forma de guerra neocolonial porque transformada numa guerra civil às avessas: salvadores de cidadãos de um lado, salvadores de animais de outro; grupos de gerenciadores de abrigos por um lado e fornecedores de outro, militares de um lado, defesa civil de outro. Tudo isso mistura nossos afetos, nossas expectativas, nossos desejos. A ambiguidade e que estamos morrendo pelo capital, mas queremos ser salvos por ele. Diz Lazzarato & Alliez “A matriz comum a elas é a guerra colonial, que nunca foi uma guerra interestatal, mas uma guerra em meio à população e contra ela, na qual nunca foram vigentes distinções entre paz e guerra, entre combatentes e não combatentes, entre o econômico, o político e o militar. A guerra colonial em meio à população e contra ela é o modelo da guerra desencadeada pelo Capital financeiro a partir dos anos 1970 em nome de um neoliberalismo militante. Ela é, ao mesmo tempo, fractal e transversal: fractal pois produz uma invariância indefinida mediante a mudança constante de escala (sua “irregularidade” e as “feridas” que ela produz se dão em diversos planos de realidade); e transversal pois se desenrola simultaneamente no nível macropolítico (desfrutando de todas as grandes oposições dualísticas: classes sociais, brancos e não brancos, homens e mulheres). Sua principal característica é ser não tanto uma guerra indiferenciada, mas uma guerra irregular”.
Para as autoridades se trata de salvamento ou redução de danos? Nos termos dos autores, é transversal pela natureza dos atores (civis, militares, servidores públicos); envolve as mais diversas classes sociais. Agora enquanto escrevo, moradores da elite do bairro Independência vivenciam o abastecimento em bicas de água, algo que só viam à distância junto aos moradores de classes populares. Sua irregularidade fica por conta não apenas pelo regime das chuvas, que ora aumentam ou diminuem o fluxo em direção ao Guaíba, como também pela capacidade de reação das autoridades, pelos bairros e cidades que são afetados. Nessa máquina de guerra, o emprego de drones é apenas o último estágio de registro da sua imagem.
Como guerra, a enchente é espaço dos novos fascismos. Eles são vistos no emprego de fake news, na continuidade das tentativas de reduzir a participação do poder público em todos os níveis e desresponsabilização dos atores envolvidos. Quando dizemos que estamos diante dos efeitos do capital, ou ao menos, como apontam estudos, da agudização da tragédia feita por ele, significa que economia, política, tecnologia, estado e meio ambiente são determinados por suas relações estratégica. Nos termos de Lazzarato & Alliez “o capital não é estrutura nem sistema, é “máquina”, e máquina de guerra”. Que a ciência tenha sido negligenciada em proveito de práticas neoliberais é apenas a repercussão necessária do capital como modo de destruição.
Há um debate nas ciências humanas e sociais que se questiona se hoje vivemos no Antropoceno, como seria denominada a era geológica mais recente, onde a enchente é uma das mudanças rápidas que o caracteriza, ou Capiloceno, termo que insere a noção de Era do Capital, que enfatiza a mudança do planeta promovida pela destruição capitalista. Quer dizer, neste última as enchentes são um efeito da organização da natureza pelo capital. O caos climático é a característica que dá um passo além na definição, pois representa a possibilidade de aniquilação dos cidadãos e a complexidade da recuperação, do resgate das vítimas.
Nessa cavalgada do capital em direção aos extremos, ele sempre saiu ileso. Através de lobbies políticos recusa os argumentos científicos de preservação das florestas; com domínio das mídias, constrói a visão que corrói a defesa do estado, e, portanto, enfraquece o ideal democrático e republicano. O resultado foi que conseguimos chegar ao extremo climático. Que herança deixaremos para nossos filhos? A do fracasso em enfrentar as consequências de um modelo de desenvolvimento neoliberal? A incapacidade de visualizar os protagonistas e atores políticos e econômicos envolvidos nesta destruição ambiental? A incapacidade de exigir, de nossos governantes, um projeto de governo amplo e que socialmente defenda os mais fracos e não apenas os detentores do capital?
O social precisa pensar as razões de sua derrota, não porque não estejam nas ruas auxiliando as vítimas, mas porque foram derrotados no modelo de desenvolvimento adotado por nossos governantes, uma das razões pela qual enfrentamos uma guerra climática. Não se trata de sairmos mais unidos após a tragédia porque fomos solidários, e realmente estamos dando demonstrações de que todos, exatamente todos, estamos. Mas trata de sairmos mais resistentes, capazes de resistir ao canto de sereia dos políticos neoliberais de plantão, que retornarão nas próximas eleições. Frente a enchente, só nos resta construir movimentos de resistência às políticas neoliberais e aos seus atores.
(*) Doutor em Educação, autor de “O êxtase neoliberal” (Clube dos Autores)
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