
Ricardo Luisi (*)
Bell Hooks, escritora e professora estadunidense, nos diz que no nosso cotidiano existem diversas situações que exigem de nós uma análise para além do que é superficial. Situações que exigem uma análise para que consigamos enxergar a estrutura profunda da nossa sociedade.
A situação climática que está assolando o estado do Rio Grande do Sul se coloca como uma destas situações que nos provoca a pensar mais profundamente.
Não é novidade alguma que o planeta está ficando mais quente devido ao tipo de economia predatória baseada na extração e queima de recursos naturais, que visa o crescimento econômico infinito pautado em recursos finitos. Podemos apelar para os dados numéricos ou para a nossa percepção para constatarmos essa mudança (inverno fraco, “calorão” em junho, etc.).
Ciclones extratropicais são eventos comuns que acontecem associados a baixas pressões atmosféricas que favorecem a subida da umidade e formam nuvens gigantes (Cumulonimbus) “carregadas” que causam tempestades, em associação com sistemas frontais (encontro de massas de ar quentes e massas de ar frias).
Não é novidade que na nossa região ocorram ciclones extratropicais, por estarmos próximos a latitude 30°S onde também comumente ocorrem os encontros de massas quentes tropicas e massas frias polares – a diferença de temperatura destas massas de ar geram grandes tempestades, e quanto maior a diferença de temperatura maior é a intensidade das chuvas e ventos.
Já sabemos pelo menos desde o mês de junho que teríamos o fenômeno El Niño atuante. O El Niño é, resumidamente, o aquecimento anormal das águas do Pacífico causados pelo enfraquecimento dos ventos alísios. Esse aquecimento anômalo causa alterações nas dinâmicas atmosféricas. No Brasil este fenômeno causa secas severas no Norte e Nordestes e grande volume de chuvas na região Sul.
Está ficando fácil de observar? Região propensa a eventos climáticos… Aquecimento da atmosfera e dos oceanos… Maior diferença de temperaturas nos sistemas frontais… Maiores áreas de baixas pressão que dão origem aos ciclones extratropicais… El Niño atuante, que traz mais umidade para a Região Sul…
Mais contraste de temperatura, mais umidade, mais chuva e mais eventos intensos que provocam destruição!
Como uma “gestão” não age sobre o que estava previsto?
Poderíamos apenas apontar que a temática das mudanças climáticas, ou mesmo a pauta ambiental, só foi tratada no plano do governo Leite como sendo uma estratégia econômica com objetivo de “neutralizar” o carbono e colorir de verde velhos hábitos e discursos de uma economia predatória do meio ambiente. Também poderíamos apontar como uma “gestão” tecnocrata não pensa muito para além dos números e indicadores econômicos. Mas vamos um pouco além.
A professora e escritora Marilena Chauí em uma de suas aulas sobre a história da democracia tece considerações sobre o discurso neoliberal totalitário. Ela nos diz que no neoliberalismo ocorre uma inversão da lógica de funcionamento das instituições sociais – como o Estado, pelas organizações – como as empresas.
As instituições sociais são pautadas pelo reconhecimento interno e externo de suas práticas, o que confere um caráter público as atribuições das instituições. As organizações por sua vez diferem de instituições pela sua prática social fundada não no público, mas num objetivo particular, privado.
As organizações são regidas pela lógica que o neoliberalismo tenta emplacar (e vem emplacando) de que tudo é administrável. Considera todas as realidades sociais iguais, homogêneas, e por isso todas as dimensões da vida social podem ser administradas de forma equivalente. Assim as práticas neoliberais se referenciam em operações embasadas na ideia de eficácia, sucesso, gestão, planejamento, previsão, controle e êxito para alcançar o objetivo particular que a organização define.
Politicamente, a passagem de instituição para organização significa que o estado deixa de ser considerado uma instituição pública, regido pelos princípios e valores da legalidade e legitimidade republicana, e passa a ser considerada uma empresa. Isso explica porque a política neoliberal se define pela eliminação dos direitos sociais, econômicos e políticos que são garantidos pelo poder público e passa a prioridade para interesses e os objetivos privados.
Quando invertemos a lógica e chamamos um governo de estado (instituição) por “gestão” (organização) estamos acionando um dos dispositivos ideológicos do discurso neoliberal para assumir que não somos governados, afinal, quem governa uma empresa? uma empresa é gerenciada – mas chamar de gerente apequena o ego – então chamamos de “gestor”.
Essa prática discursiva possui um caráter totalmente denotativo, uma vez que não produz sentido ou significado, mas indica algo, perceba: O neoliberalismo se embasa na crença de que todas as dimensões da vida social podem ser “administradas” e por isso tenta emplacar que tudo é uma empresa. Mas quando precisa mobilizar as operações que o embasam (eficácia, planejamento, previsão, controle e sucesso) para antever problemas de um fenômeno que já possuía um alerta, numa situação climática já prevista, num cenário em que sabia-se que as chuvas seriam mais intensas, a gestão não geriu.
Não previu. Não controlou. Não teve êxito em lidar com a realidade, talvez por pautar sua ação em outros cenários onde esse evento não ocorre. Talvez não fosse um dos objetivos, da organização que está no controle do estado, zelar pelos direitos das pessoas vitimadas pelo evento já que isso não dá dinheiro, pelo contrário custa – e deus o livre “gastar” onde não há retorno.
Uma empresa tem a finalidade de lucrar. Um estado tem a finalidade de garantir os direitos de todos. Tratar o estado como empresa é obscurecer qual será o plano de negócios futuros, uma vez que esses planos deixam de ser públicos e tornam-se privados. O agravante é saber que geralmente esse plano será financiado com os direitos alheios. E pior, as vezes, com a vida alheia.
A tragédia foi “natural” e, sobretudo, política.
(*) Professor de Geografia
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