
Flavio Fligenspan (*)
A taxa de juros é uma das variáveis mais importantes de uma economia. Junto com a taxa de câmbio, os salários e a inflação, compõe a estrutura de análise macroeconômica de um país ou região num intrincado quadro de interrelações que ajudam a explicar o funcionamento e os problemas de qualquer economia em constante modificação. Não há como estudar a economia de um país sem levar em conta estas variáveis macro; não se pensa em uma economia com juros permanentemente zerados, assim como não pensa em taxa de câmbio zerada, ou preços e salários que não se movem constantemente.
Historicamente, muito antes de se constituir como uma variável econômica, a taxa de juros foi considerada uma questão filosófico-religiosa, na verdade um problema sério a ser resolvido. Isto porque, se uma pessoa empresta dinheiro a outra por um determinado tempo e recebe de volta a mesma quantia acrescida de um valor a mais, esta diferença se deve ao fato de que a primeira pessoa (emprestador) abriu mão de desfrutar das vantagens do seu dinheiro naquele intervalo de tempo e recebeu uma remuneração por este “sacrifício” – excluo neste momento outra variável, o risco de não receber de volta o recurso emprestado, para simplificar. Esta remuneração, portanto, corresponde ao pagamento do “aluguel” daquele dinheiro pelo período de tempo em que seu proprietário original abriu mão da liquidez.
O problema religioso nasce aí, especialmente na Idade Média, quando a Igreja Católica era muito mais poderosa do que hoje e arbitrava uma infinidade de regras sobre a vida das pessoas e a vida em comum. Ora, se o recurso a mais devolvido pelo tomador do empréstimo é entendido como uma remuneração pelo tempo em que seu proprietário original abriu mão de fazer o que quisesse com seu dinheiro, está implícito que este recurso a mais corresponde ao tempo. Tanto é assim que, se o tomador do empréstimo ficar mais tempo com o recurso, pagará mais por isto. Logo, o valor a mais está diretamente ligado ao tempo, ele é a remuneração do tempo. Mas, e aí está o problema, os homens não poderiam cobrar pelo tempo, já que o tempo não lhes pertence; o tempo pertence a Deus. Portanto, cobrar juros constituía pecado, o pecado da usura.
De lá para cá, não só a Igreja Católica, como outras, deram um jeito de resolver o problema, e o mundo inteiro cobra juros e considera os juros uma variável macro importante. Assim, não é possível eliminar a taxa de juros da vida e da análise econômica. Logo, toda vez que estivermos diante de um anúncio de uma operação econômica – compra ou venda, empréstimo, financiamento – “sem juros”, estamos diante de uma falácia. É impossível abolir a taxa de juros numa economia mercantil capitalista. No Brasil, então, em que as taxas de juros em todas as linhas são muito elevadas, parece algo muito estranho se falar em “juro zero” ou “sem juros”. Alguém está pagando juros, disfarçado, implícito, transferido de um agente para outro, mas alguém paga.
No Brasil da inflação sem controle (pré Real) e antes da aparição dos meios de pagamento digitais, usava-se muito no comércio o “sistema” do cheque pré-datado, que passava a impressão, principalmente para consumidores não esclarecidos – a maioria – de que se tratava de uma operação sem juros. Isto porque a operação de crédito era feita diretamente entre consumidor e lojista pela emissão de vários cheques com valores nominais exatamente iguais a serem descontados em vários e sucessivos meses. Nos valores destes cheques estava embutida uma taxa de juros nominal que deveria cobrir a expectativa de inflação nos meses à frente e uma taxa de juros real, além da inflação. Tanto isto é verdade que se o consumidor decidisse pagar a compra à vista, ele tinha um grande desconto. Como a inflação era muito alta e a conta financeira nunca foi fácil, o consumidor não reconhecia no valor de cada cheque a parcela que se destinava a cobrir a inflação e a parcela do juro real.
O sucessor da fórmula do cheque pré é o parcelado “sem juros” no cartão de crédito. Do ponto de vista do consumidor, parece ser a mesma coisa, porque ele assume o compromisso de pagar várias parcelas fixas descontadas diretamente no seu cartão de crédito, mês a mês. Mas não é igual, é bem mais complexo e envolve agentes econômicos com interesses antagônicos que não necessariamente estavam envolvidos nas operações do passado. Agora temos a mais, no mínimo, os bancos que oferecem os cartões e o limite de crédito aos consumidores, e as operadoras das máquinas que as lojas usam. Mais empresas envolvidas e, portanto, mais capital a ser remunerado. É claro que quem paga tudo no final é o consumidor. E também é claro que se o consumidor preferir pagar à vista, ele barganha um desconto e, na maioria das vezes, consegue, o que prova a existência de juros embutidos no parcelado “sem juros”.
O debate sobre os juros embutidos nas operações de crediário no comércio sempre foi importante no Brasil, em alguns momentos foi mais quente, noutros consumiu menos energia. Recentemente, o debate esquentou de novo, muito em função das estratosféricas taxas cobradas no chamado crédito rotativo, quase 450% ao ano. O rotativo é aquela modalidade em que o consumidor entra automaticamente se não conseguir pagar sua parcela regular do cartão; é considerado um crédito automático e de alto risco de inadimplência. Isto leva os bancos a cobrarem taxas de juros absurdas, mas não se deve esquecer que antes dos consumidores chegarem a esta situação – muitas vezes por extrema necessidade, por ignorância e/ou por irresponsabilidade – os bancos ofereceram os cartões e os limites de crédito para quem não tinha capacidade de pagamento. Qual a responsabilidade dos bancos neste processo?
Ocorre que na modalidade do parcelado “sem juros”, amplamente utilizada no comércio brasileiro e adorada por consumidores e lojistas, a loja vende, o consumidor assume o compromisso de pagar várias parcelas e o risco em caso de não pagamento fica com os bancos. As operadoras das máquinas de cartões tiram a sua parte de duas formas: cobram pela intermediação do negócio e oferecem adiantamento das parcelas a vencer para os comerciantes, com desconto do valor nominal das parcelas, ou seja, cobram juros dos comerciantes numa operação originalmente dita “sem juros”. Curioso, como é que uma operação inicial “sem juros” entre consumidor e lojista se transforma numa operação com juros entre lojista e sistema financeiro?
Como a economia brasileira cresceu pouco desde a recessão de 2015/2016, situação agravada pela pandemia, e a inflação foi muito alta no passado recente, as famílias se endividaram. A partir de março de 2021 o Banco Central começou um ciclo de alta da taxa de juros básica que somente agora começou a ser revertido. Mas este ciclo de alta dos juros pegou muitas famílias em situação difícil e já endividadas, o que fez a inadimplência crescer bastante. Naturalmente, elas caíram no rotativo, o que só aumentou o problema. Não é por acaso que desde a campanha eleitoral do ano passado se discutia alguma forma de resolver o problema da inadimplência e o Governo Lula aposta muito no Programa Desenrola.
Os bancos argumentam que, dada a inadimplência, as taxas altas do rotativo servem para remunerar suas perdas no parcelado “sem juros”, pois o risco do não pagamento é absorvido pelos bancos e não pelos lojistas. E este tipo de crédito tem sido concedido indiscriminadamente, inclusive descolando o número de parcelas do tipo de produto. Assim, por exemplo, se compram bens não duráveis (alimentos, bebidas, vestuário, combustíveis) em várias parcelas, produzindo um descasamento entre a duração da dívida e a vida útil do bem. Desta forma, os bancos só aceitam regras para baixar a taxa do rotativo, se houver regras também para o parcelado “sem juros”, de forma a diminuir seu risco. Por sua vez, o comércio, as operadoras de máquinas e os consumidores não aceitam mexer no parcelado, verdadeira mania nacional, hábito cultural consagrado. Argumentam os consumidores, principalmente os das camadas de baixa renda, que sem esta modalidade não conseguem comprar bens, nem os do dia a dia, nem, principalmente, duráveis, como eletrodomésticos, de valor unitário mais elevado. Aceitam a ilusão de que não estão pagando juros.
Como o debate esquentou muito e se explicitaram as discordâncias e os interesses, e como o tema mexe diretamente com o nível de atividade – através do poder de compra da população – e com a popularidade do Governo, a Câmara propôs na semana passada um projeto que dá 90 dias para o setor se auto regular, isto é, bancos, comerciantes e intermediários devem estabelecer suas próprias regras. Se não conseguirem fazer isto no prazo estabelecido, considera-se que a taxa do rotativo deve ser no máximo de 100%, algo semelhante a uma legislação inglesa.
Está difícil prever como vai acabar esta história, até porque há posições muito fechadas e bem antagônicas entre os vários agentes deste mercado; e muito dinheiro envolvido. Desconfio, contudo, que, dada a tradição brasileira, ocorrerão alguns ajustes nas regras de operação do mercado, como uma limitação no número de parcelas, mas que o principal será algum acerto entre os bancos, o comércio e os intermediários de tal forma que preserve a ilusão do parcelado “sem juros”. Afinal, consumidores adoram ser enganados com esta ilusão e os agentes do mercado não podem deixar passar esta oportunidade de se beneficiar da ignorância alheia. Por mais que a disputa esteja até bem acirrada neste momento, vale para os agentes deste mercado a velha máxima de que “o que os une é mais forte do que os separa”. E eles bem sabem quem está de cada lado desta pendenga.
(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS
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