Opinião
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7 de julho de 2022
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19:37

‘E não se esqueça dos pobres’ (por Selvino Heck)

Dom Cláudio Hummes faleceu em decorrência de câncer no pulmão. Foto: Arquivo
Dom Cláudio Hummes faleceu em decorrência de câncer no pulmão. Foto: Arquivo "O São Paulo"

Selvino Heck (*)

A Dom Cláudio Hummes, in memoriam

Argentino, torcedor do San Lorenzo, o então Cardeal Jorge Bergoglio era amigo do Cardeal brasileiro e franciscano Dom Cláudio Hummes, franciscano e gremista, que soprou-lhe ao ouvido ao ser eleito Papa: ‘E não se esqueça dos pobres’. Tocado pela lembrança, sugestão e pedido, surpreendentes, para quem conhece as diferenças internas da Igreja católica, ele um jesuíta, escolhe o nome Francisco. O que era impensável na histórica relação entre jesuítas e franciscanos, diferenças de pensamento e formas de ver o mundo e de constituir uma Ordem religiosa, São Francisco de Assis e Santo Inácio de Loyola.

 Por isso, ineditamente, o já Papa Francisco convidou Dom Cláudio para acompanhá-lo na tradicional aparição na janela, e cumprimentar os fiéis que estavam à espera do novo Papa na Praça da Sé. Consta que isso deu-se a (quase) cotoveladas, porque Cardeais e Assessores do Vaticano eram contra. Estava fora, longe das tradições. Mas o Papa Chiquinho insistiu. Ele e Dom Cláudio apareceram juntos na hora da sua primeira saudação ao povo e ao mundo.  

O Papa Francisco continuou inovando, com a Encíclica ‘Laudato Sì’, celebrada no mundo inteiro e por todas as correntes progressistas de pensamento, ligadas à igreja católica ou não, propondo a ecologia integral e o cuidado com a Casa Comum. Depois, inovou de novo, com a Encíclica, assinada dia 4 de outubro, data da morte de São Francisco, em Assis, Itália, com o sugestivo título ‘FRATELLI TUTTI – Somos todos irmãos!’, sobre a fraternidade e a amizade social, onde ele relaciona a política com a ternura e diz que a política é caridade máxima.

Importante lembrar algumas outras frases da Fratelli Tutti. 

“A especulação financeira com o lucro fácil como objetivo fundamental continua provocando estragos. O vírus do individualismo radical é o vírus mais difícil de derrotar.

A fragilidade dos sistemas mundiais diante das pandemias evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado.”

É uma denúncia forte do sistema capitalista e do mercado.

“Cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos. Mas precisamos des constituir como um  ‘nós’ que habita a casa comum.”

A escuta, o diálogo, a solidariedade, o cuidado com a Casa Comum, já defendidos na ‘Laudato Sì’, continuam no centro das preocupações do Papa na Fratelli Tutti.

“É possível aceitar o desafio de sonhar e pensar em outra humanidade. É possível ansiar por um planeta que garanta terra, abrigo e trabalho para todos.”

A Sexta Semana Social Brasileira, promovida pela CNBB até 2023, e sintonizada com o Papa, convoca toda sociedade em torno do tema e lema ‘Mutirão pela vida – Terra, Trabalho e Teto’. Foi o que motivou e inspirou sucessivos Encontros do Papa Francisco com movimentos sociais na Bolívia e no Vaticano.  

“É preciso a construção planetária de uma verdadeira cultura do encontro, ’que supere as dialéticas que colocam um contra o outro’.  Isto implica incluir as periferias. Quem vive nelas tem outro ponto de vista, vê aspectos da realidade que não se descobrem a partir dos centros de poder onde tomam decisões mais determinantes. O mundo de hoje é principalmente um mundo surdo.”

O Papa Francisco até cita Vinícius de Moraes e o seu Samba da Bênção: ‘A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida’.

“A esperança é ousada, sabe olhar para além das comodidades pessoais, das pequenas seguranças e compensações que reduzem o horizonte para se abrir aos grandes ideais que tornam a vida mais bela e digna. Caminhemos na esperança!”

Todas estas reflexões lembram o educador popular, e cristão, Paulo Freire, com sua dialogicidade, amorosidade, sua Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Indignação e Pedagogia  da Esperança. Paulo Freire e suas palavras-chave: DENÚNCIA, ANÚNCIO, PROFECIA, UTOPIA, SONHO.    E ESPERANÇAR.

Escrevi um artigo em fevereiro de 2013: ‘Quero um Papa do Sul’ (www.sul21com.br, 16.02.2013). Traduzia um sonho, escrito antes da eleição do Papa Francisco. Acabou sendo profético.

“Quero um Papa no Sul para olhar para os pobres e trabalhadoras/es e dizer: Vinde a mim pequeninos, porque de vocês é o Reino dos céus.

Quero um Papa do Sul para olhar os continentes historicamente subjugados, inclusive pela Igreja católica, tratados apenas como terras a serem conquistadas e catequizadas e não coo espaços de liberdade e construção de povos e nações.

Quero um Papa do Sul para olhar indígenas, negras/os, quilombolas, catadoras/es de materiais recicláveis, população em situação de rua e todas/os as/os oprimidas/os como sujeitos de direitos.

Quero um Papa do Sul para olhar com outros olhos, tal como Jesus olhou e abençoou a samaritana, as mulheres, os homossexuais, todas/os aquelas/es jogados/as à margem.

Quero um Papa do Sul parra que o cristianismo retorne às raízes das comunidades dos primeiros cristãos, onde a Assembleia dos fiéis tinha um só coração e uma só alma, e ninguém considerava como seu o que possuía e colocava em comum tudo o que tinha.

Quero um Papa do Sul que veja e trate o sexo como vida, prazer e fonte de juventude e alegria.

Quero um Papa do Sul capaz de dialogar com todas as igrejas e religiões, de judeus e muçulmanos, evangélicos e de religiões de matriz africana, budistas, espíritas e também os ateus.

Quero um Papa do Sul compreendendo os novos ventos que sopram na América Latina e no Brasil, os movimentos sociais e governos democrático-populares da região.

Quero um Papa do Sul que seja humano, não um quase deus longe do povo, da vida e do testemunho dos fiéis e da realidade do povo vivida por cristãos e comunidades.

Estou querendo muito? Um dia, se não agora, irá acontecer. E em algum tempo da História, será uma mulher.”

Dom Cláudio Hummes não foi eleito Papa em 2005, embora tivesse sido candidato forte.  Mas em 2013, com forte apoio de Dom Cláudio, foi eleito um Papa do Sul. Deus me atendeu, dando ao mundo o Papa Francisco e suas LAUDATO SÌ e a FRATELLI TUTTI. Um Papa do Sul, pela primeira vez na história, para o bem da igreja católica e do futuro da humanidade.

Em 2022, despede-se um frade, um profeta, um pastor: Dom Cláudio Hummes. Ele está-estará vivo e presente! 

(*) Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990). Membro da Coordenação Ampliada nacional do Movimento Fé e Política

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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