
Marcos Rolim (*)
Quem acompanha os noticiários tem visto matérias sobre um conflito envolvendo facções ligadas ao tráfico de drogas que já se prolonga há mais de duas semanas em Porto Alegre. Normalmente, há uma tendência a interpretar esse tipo de disputa em uma moldura simplificada do tipo “bandidos se matando”. Por consequência, é como se o Estado pouco tivesse a fazer. Esse senso comum está presente, inclusive, entre alguns gestores e profissionais da segurança que, na ausência de uma política consistente, percebem o policiamento exclusivamente a partir de uma postura reativa. Há também quem, na sequência do horror disseminado pelo neofascismo, comemore o que no seu linguajar miliciano chamam de “CPF cancelado”. O que está ocorrendo deveria, entretanto, mobilizar grande atenção do Poder Público e providências urgentes em defesa dos residentes das áreas afetadas, até para se evitar o escalonamento da violência.
Para situar o problema, o conflito atual é entre duas facções, cada uma delas com bases territoriais conhecidas. Essas duas facções mantinham uma aliança formada para impedir o crescimento de uma terceira facção. Não se sabe ao certo a origem do conflito em curso, mas é possível que ele tenha começado por disputas banais e não, necessariamente, por dívidas ou “acertos” do tráfico. O fato é que a aliança entre as duas facções que agora estão em conflito havia estabilizado o mercado de drogas no estado, o que, seguramente, concorreu para a queda das taxas de homicídio desde 2016, momento da última guerra entre facções.
Quando disputas desse tipo ocorrem, temos três problemas graves: o primeiro é a tendência ao escalonamento da violência, porque, na ótica dos criminosos, cada morte demanda vingança; o segundo, é que todas as pessoas que residem, trabalham ou se deslocam pelas regiões atingidas são expostas a sérios riscos e a possibilidade de que sejam feridas ou mortas cresce exponencialmente e, por fim, fenômenos do tipo podem propiciar um realinhamento entre as facções, viabilizando uma estratégia de “guerra de conquista” para a tomada de uma região. Se isso ocorrer, poderemos descobrir que as mortes até agora foram apenas o início de uma nova guerra, o que poderá conflagrar várias regiões e mesmo outras cidades.
Agora, imagine que isso esteja ocorrendo em seu bairro, que você não saiba se pode circular nas vizinhanças, mandar seus filhos para a escola ou mesmo se deslocar para o trabalho. Parece claro que a demanda de todos os moradores em uma realidade do tipo seria a de policiamento ostensivo. Na verdade, a estratégia de adensar policiamento em áreas geográficas específicas marcadas pela violência (ao invés do policiamento aleatório) é uma das poucas que pode, efetivamente, conter dinâmicas criminais locais e produzir benefícios também em áreas contíguas (veja, por exemplo, revisão sistemática sobre hot spot policing aqui). Essa é, também, a estratégia mais eficiente para que o Poder Público desmobilize eventuais “toques de recolher” anunciados por grupos armados e garanta a segurança dos residentes.
Não se trata, por óbvio, de medida para a superação dos problemas mais amplos da violência, para o que é preciso uma política capaz de articular ações em diversos níveis, desde o fim da desastrosa “guerra às drogas” que tem demandado imensos recursos das polícias e do sistema de persecução penal, com resultados agregados amplamente disfuncionais e multiplicadores do crime, até as ações que contrastem fatores de risco para a violência e o crime e que agenciem oportunidades aos grupos mais fragilizados, especialmente às juventudes periféricas.
O fato é que as iniciativas a serem tomadas ao início de uma disputa que pode se desdobrar em uma guerra são específicas e urgentes e não devem ser subestimadas. Não é preciso, como regra, lembrar isso quando a violência ocorre em áreas privilegiadas socialmente, mas quando ela se desdobra em comunidades pobres, parece que os critérios, a noção de urgência e a sensibilidade geral mudam de natureza. Pelo que se tem divulgado, a Brigada passou a adensar policiamento nas áreas mais afetadas desde a última terça-feira (05), o que é a iniciativa correta que deveria ter sido tomada mais cedo, assim que identificada a gravidade do novo conflito.
A experiência de outros países em situações de crise aguda como nos conflitos entre gangs nos EUA, por exemplo, indicam também que há programas muito exitosos para impedir as espirais de violência que se formam nas dinâmicas de vingança. Uma das iniciativas mais bem avaliadas é o Cure Violence, fundado pelo médico infectologista Gary Slutkin, que trabalhou por muito tempo na Organização Mundial da Saúde (OMS), o que incluiu a experiência de atuar na Somália, com apenas cinco outros médicos, em um campo de refugiados com um milhão de pessoas. Veja o TED com Gary Slutkin aqui.
O Cure Violence começou em uma das regiões mais violentas de Chicago, reduzindo em 67% os casos de disparos de arma de fogo. Rapidamente, passou a ser aplicado em muitas outras cidades americanas e, atualmente, tem colhido resultados impressionantes em muitos países, entre eles Colômbia, El Salvador, Honduras, Jamaica, Quênia, México, África do Sul e Trinidade e Tobago. Cure Violence detém a propagação da violência empregando um método epidemiológico em que pessoas da comunidade, especialmente treinadas e com trânsito entre os jovens, identificam e tratam os indivíduos de maior risco. Essas pessoas são os “desligadores” (interruptors) que percebem situações em que a violência pode escalar e procuram mediar os conflitos no seu nascedouro. Basta um disparo de arma de fogo no bairro ou uma ameaça para que eles entrem em ação e que toda a rede comunitária seja acionada e o problema resolvido. Recentemente, o presidente Biden visitou o programa na região do Queens em Nova Iorque, onde, há um ano, não se registra um só disparo de arma de fogo. Eis uma sugestão para uma visita de nossos governantes quando forem aos EUA. Mas, se não houver como, basta conhecer o que projetos como o Pacto Pela Paz, têm realizado em algumas cidades brasileiras, entre elas Pelotas. Quem sabe, um dia, um governador ou uma governadora se interessa por segurança pública com base em evidências? Importante manter a esperança.
(*) Marcos Rolim é Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).
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