
Simone Mainieri Paulon (*)
Estrela que brilha, clareia a trilha
Ilumina e guia o meu caminhar
Alumeia um pouquinho esse meu caminho
Me dê uma luz, tá difícil enxergar
Bia Ferreira – “Não precisa ser Amélia”
A súplica de Bia Ferreira, cantora, compositora e multi-instrumentista negra brasileira, parece fazer todo sentido neste momento obscuro da realidade brasileira. Menos metafórica, ela faz-se ainda mais verossímil se voltarmos nosso olhar à realidade local e atual vivida pela Casa de Referência Mulheres Mirabal, na zona norte da capital gaúcha. Desde o 1º dia de setembro, quando a falta de pagamento por parte da Prefeitura de POA, resultou no corte de luz do prédio que as abriga, mulheres e crianças, cujas vidas dependem de uma alternativa de moradia que as tirassem dos mesmos tetos em que vivam com seus agressores, estão vivendo literalmente às escuras.
Tão difícil quanto é, para essas mulheres, enxergarem uma saída às suas vidas marcadas por sucessivas violências, é para nós enxergarmos uma justificativa plausível para o modo com que o poder público municipal tem agido em relação ao impasse gerado com a Ocupação Mirabal. Tentando alumiar os caminhos de quem não tenha acompanhado este capítulo triste da história de nossa cidade, faço uma breve síntese, cujos detalhamentos podem ser encontrados nas redes sociais (@mulheres.mirabal).
A casa surgiu em 2016, após a ocupação de um prédio, no centro de Porto Alegre, que se encontrava há anos desocupado, quase sucateado e sem cumprir qualquer função social, como exigido para resguardar o direito à propriedade, segundo nossa constituição federal. Nesses 5 anos de existência e resistência, o Movimento de Mulheres Olga Benário, que organiza a Mirabal, tenta negociar com a comunidade, os antigos proprietários e o poder público a regularização institucional do serviço de acolhimento e abrigamento de mulheres vítimas de violência, reconhecendo-a como Casa de Referência. Frente à imensa lacuna existente na oferta de assistência social e políticas públicas para mulheres vítimas de violência na cidade de Porto Alegre, assim como diante do déficit de vagas na rede de enfrentamento à violência da cidade e do estado, o Movimento Olga Benário estruturou uma ampla rede solidária para atender às necessidades emergenciais de mulheres que, para escaparem a feminicídios e toda sorte de violências, abandonam suas casas, muitas vezes apenas com filhos no colo e roupas do corpo.
A rede hoje conta com inúmeras parcerias de psicólogas, advogadas, artistas plásticas, assistentes sociais, médicas, educadoras e tantos outros conhecimentos que se juntaram à iniciativa por entenderem que uma alternativa que ajude a evitar uma noite a mais na mesma casa, um tom acima na agressão costumeira, uma dose adicional na droga de sempre podem significar uma vida a menos. Após dois anos de intensas negociações, entremeados por inúmeros episódios aterrorizantes de despejo iminente e constantes ameaças de reintegração de posse por parte dos donos do antigo imóvel abandonado no Centro Histórico, a prefeitura municipal fechou um acordo com governo do Estado que cedeu um prédio, também desocupado há anos por uma antiga escola desativada, para que a casa fosse transferida e pudesse continuar seu trabalho. O Município aceitou o imóvel, mas, descumprindo o acordo firmado em reuniões públicas com representantes dos poderes estatais e dos movimentos sociais, negou-se a dar seguimento ao combinado, alegando ter outras prioridades para utilização do espaço.
Frente à desresponsabilização das funções de proteção da população a que deveria atender e ao descaso com a vida das mulheres, por parte do Município, em 7 de setembro de 2018, o Movimento ocupou o prédio da antiga Escola Estadual Benjamin Constant, onde persiste acolhendo e cuidando das muitas famílias que a ele continuam recorrendo, inclusive ao longo de um período de um ano e meio de pandemia. Irônica, ou perversamente, os mesmos atores públicos que nesses 5 longos anos não reconhecem formalmente o serviço público que a Casa Mirabal realiza, a utilizam como única alternativa de encaminhamento. Quando agentes do Estado nas Delegacias Especializadas de Atendimento a Mulheres/DEAM, Hospitais Públicos, defensorias e serviços da rede de segurança se deparam com as mulheres em extrema vulnerabilidade que lhes chegam, frente à realidade precarizada e subfinanciada dos serviços da rede da assistência social e saúde dos territórios, com serviços lotados, inexistentes ou simplesmente sem condições de as acolher, a casa Mirabal é frequentemente indicada como única possibilidade frente a situação-limite.
Mesmo assim, e em que pese as inúmeras tentativas de diálogos e negociações que o Movimento Olga Benário nunca desistiu de fazer, além do cumprimento de todas as exigências feitas pelo Município para regularizar a situação da Casa (Projeto técnico, registro do CNPJ, Estatuto, etc) , a Prefeitura de Porto Alegre segue arrastando um processo judicial de regularização de posse do prédio da escola desativada e não respeitando o trabalho peculiar e imprescindível que o movimento de mulheres consegue realizar, apesar de todos ataques e boicotes que nunca cessaram sobre a Casa Mirabal.
A proposta da Casa de Referência Mulheres Mirabal se distingue dos modelos de Casas Abrigos. Estas últimas, seguem a Norma Técnica que orienta sobre o funcionamento deste tipo de serviço, uma importante e necessária política pública criada no âmbito do Sistema Único de Assistência Social. No entanto, por não ser um serviço público neste formato, a Casa Mirabal se distingue em sua forma de existir: as mulheres e crianças que ali estão possuem maior autonomia que nos abrigos, recebem apoios diversos para inserção em espaços de trabalho, podem aprender uma profissão – como a de costureira ou quituteira no “Quitutes Mirabal” -, retomam, seguidamente, seus estudos e tudo isto ajuda a ressignificar suas imagens de si, a refazer caminhos possíveis de vida, questionando vínculos de dependência que, por anos intermináveis, as aprisionou em ciclos de violência.
O corte de luz por falta de um pagamento, que se soma a uma dívida astronômica da prefeitura com a CEEE, ocorrer, pela segunda vez em meio à pandemia, não é um detalhe qualquer. Fala das prioridades de uma gestão pública e diz muito do lugar que a saúde e a vida das mulheres ocupa em seu projeto político para a cidade.
Ainda em março de 2020, a ONU Mulheres emitiu um documento direcionado a governantes da América-Latina e Caribe, alertando-os em relação aos impactos maiores e específicos que a pandemia teria sobre as mulheres. Era um prenúncio fundamentado em episódios trágicos observáveis na história do que, em seguida seria observável no cotidiano de nossas cidades e nas estatísticas da violência: em um contexto de emergência, devido ao aumento do desemprego, aos efeitos do isolamento social, ao incremento das adicções, as tensões em casa aumentariam os riscos de violência contra mulheres e meninas, traria obstáculos adicionais para fugir de situações violentas ou acessar serviços essenciais que as protejam. Em função disso, recomendava que governos locais considerassem a dimensão de gênero na resposta à Covid-19, alocando recursos indispensáveis para atendimento das necessidades de proteção deste segmento mais vulnerável com as restrições sanitárias, e sugeria: “As organizações de mulheres no nível comunitário devem ser apoiadas para garantir que as mensagens sobre estratégias de prevenção e resposta cheguem a todas as mulheres. Da mesma forma, é essencial aumentar as capacidades delas para desenvolver estratégias, aproveitar canais de comunicação alternativos e melhorar a identificação e apoio em nível comunitário nos casos de violência contra as mulheres.”
Os dados crescentes de feminicídios do Brasil e em nosso estado, o aumento do consumo de ansiolíticos, anti-depressivos, redução drástica de atendimentos em saúde mental do SUS com aumento equivalente dos atendimentos à crise nas emergências, atestam por si quão distantes das recomendações da ONU-Mulheres estão as preocupações dos gestores brasileiros. Se é verdade que este não possa ser considerado um problema específico da capital gaúcha, nem sejam resultados tributáveis à inépcia de algum dos seus circunstanciais governantes, não menos verdade é que nenhum dos dois prefeitos que, neste período, teria poder de resolver a situação fez movimentos efetivos neste sentido.
E a Casa de Referência Mulheres Mirabal continua às escuras.
Um recente manifesto propondo 11 teses para “Um feminismo para os 99%” dá alguma pista quanto às possíveis razões difíceis de enxergar, como comentava acima, das escolhas, como esta, feitas por um gestor público. “Essas dinâmicas, embora endêmicas no capitalismo, se expandem no atual período de crise. Em nome da ‘responsabilidade individual’, o neoliberalismo cortou verbas públicas de programas sociais. Em alguns casos, comercializa serviços públicos, transformando-os em fluxo de lucro direto; em outros, transfere-os às famílias isoladamente, forçando-as – em particular as mulheres – a suportar todo ônus do cuidado. O resultado é encorajar ainda mais a violência de gênero”. [1]
No contraponto da tristeza que é pensarmos o que este processo kafkaniano, que se arrasta há 5 anos e duas gestões municipais, conta do que os últimos projetos políticos encorajam em nossa cidade, temos a paradoxal constatação de uma hoje robusta, solidária, criativa, resistente e fundamentalmente humana rede de apoio que ele também promove. Como pesquisadoras do campo da saúde mental e extensionistas do “Programa Clínica Feminista na perspectiva da Interseccionalidade” da UFRGS, criado a partir das demandas de acolhimento ao sofrimento psíquico de algumas dessas mulheres, temos acompanhado, em rodas de conversa, eventos de pesquisa, atendimentos individuais, grupos de escuta on-line, muitas das acolhidas pela casa Mirabal. Nesses espaços de compartilhamento de dores, de elaborações coletivas de sofrimentos antes vividos como individuais, de trocas de ideias e orientações sobre como lidar com as demandas das crianças, com as angústias de um futuro incerto, com as reiteradas violências de uma justiça machista e racista, com o medo iminente de se verem novamente frente à opção de voltarem a seus agressores ou se renderem à escuridão das ruas.…vão-se construindo aprendizados mútuos. São frestas de luz que alumeiam um pouquinho o caminhar. São mulheres, que se hoje ensaiam novas trilhas, se têm voz pra pedir luz e tudo o mais que for preciso prá continuarem no jogo da vida, é porque, em um momento crucial, cruzaram seus caminhos com a Casa de Referência Mulheres Mirabal. Ao obscurantismo de gestores públicos que não enxerguem a importância deste espaço, em sua história e funcionamento singular, para a vida das mulheres e para a saúde de Porto Alegre, o contraponto da poetisa cujos versos dão a letra a que vale aqui retomar.
O jogo só vale quando todas as partes puderem jogar
Sou Frida, sou preta, essa é minha treta
Me deram um palco e eu vou cantar.
Nota
[1] Arruzza, C.; Bhattacharya, T.; Fraser, N. Feminismo para os 99%: Um Manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 53.
(*) Professora do PPG de Psicologia Social da UFRGS, Dra. em Psicologia Clínica (PUC-SP), coordenadora da Clínica Feminista na perspectiva da Interseccionalidade – UFRGS.
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