

Pedro Henrique Koeche Cunha (*)
Dezoito horas, foi o que o motorista de Uber que me levava para casa na sexta-feira à noite disse que trabalhava diariamente. Pensei que fosse exagero, mas ele logo emendou: começo a trabalhar às quatro da manhã e sigo no carro até às dez da noite. Questionei se ele não descansava, e ele explicou: não trabalho nas segundas-feiras, para aproveitar o dia que a namorada folga no trabalho ao lado dela.
Dezoito horas por dia, seis dias por semana. São cento e oito horas de trabalho por semana. Mais do que o dobro das quarenta e quatro horas semanais estipuladas pela Constituição Federal da República Federativa do Brasil como duração máxima do trabalho semanal.
A mesma Constituição, aliás, que consagra como direitos sociais de todos os cidadãos brasileiros a educação, a saúde, o lazer e a previdência social. Um cidadão que trabalha dezoito horas por dia seis dias por semana dirigindo um veículo tem tempo para o lazer ou para buscar acesso à educação? Tem garantido o direito à saúde?
A Uber e outros aplicativos do gênero não contribuem para a previdência social. Se um motorista que presta serviço à Uber sofre um acidente e fica impossibilitado de trabalhar por questões de saúde ou por danos ao seu veículo, a empresa não lhe garante uma renda mínima para a subsistência no período – e tampouco permite que o Estado o faça, uma vez que, não contribuindo para a previdência, a Uber não garante aos seus motoristas a condição de segurados do INSS.
Quem deu à Uber e aos demais aplicativos de transporte o direito de negar todos os direitos?
Criou-se na sociedade e no Estado uma espécie de convenção implícita que parte da premissa de que aplicativos de transporte como a Uber não precisam seguir qualquer tipo de legislação trabalhista. Partindo dessa premissa, os trabalhadores que se dedicam por incontáveis horas à empresa e geram um lucro milionário à Uber não possuem quaisquer direitos inerentes à sua relação de trabalho.
Ao lucrar com o trabalho de um cidadão que se dedica a dirigir um veículo dezoito horas por dia seis dias por semana, a Uber viola os direitos trabalhistas mais básicos existentes na legislação de qualquer nação minimamente preocupada com seus cidadãos. O trabalho em jornadas exaustivas que fogem completamente à razoabilidade e implicam na negativa de direitos humanos, aliás, é reconhecido internacionalmente como trabalho análogo à escravidão.
Há quem chame isso tudo de liberdade. Talvez estejamos mais próximos do distópico 1984 de George Orwell do que imaginamos. Não é exagero dizer que, nos conceitos peculiares de alguns arautos do neoliberalismo, liberdade é escravidão.
(*) Advogado
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