Paulo d´Avila Filho*
O governo deve fazer sua sucessora agora no dia três de outubro. As razões que levam ao provável desfecho eleitoral para presidente da República neste domingo têm pouca ou nenhuma relação com o que foi veiculado na cobertura da chamada grande imprensa.
Se recuarmos um pouco no tempo, veremos que o favoritismo de José Serra era em função de sua vantagem nas pesquisas e de sua óbvia superioridade pessoal, por conta de seu claro maior preparo para o cargo pretendido, em comparação com uma incógnita que seria Dilma Rousseff. O adversário de Serra seria o que chamavam de “lulismo”. Pelo que pude depreender da argumentação, tratar-se-ia de um fenômeno político pós-PT (diagnosticado como morto). A capacidade desse fenômeno pessoal carismático batizado de “lulismo” transferir ou não seus votos para o que era considerado até então como um “poste”, sua sucessora Dilma, era a grande incógnita dos analistas cuidadosamente selecionados para dar a credibilidade necessária a mais um consenso midiático.
Ainda que vivamos em um ambiente midiático provido de inúmeras fontes de informação, a concentração ou o oligopólio formado pelos três grandes jornais do país, conduziu o debate e a cobertura eleitoral nessa direção, em particular o único grande jornal local do Rio de Janeiro, que pude acompanhar mais de perto.
Por esta razão fomos levados a consumir coberturas, comentários e diagnósticos sobre desempenho em debates televisivos: quem ganhou o debate, quem gagueja mais, quem tem mais preparo para o debate. Detalhes estéticos e de roteiro dos programas do horário eleitoral também foram explorados: os cenários, figurinos, texto, direção de arte, entre outros. Tudo voltado para as vantagens comparativas dos dois principais contendores, Dilma e Serra. Desde suas performances pregressas na vida pública até seus respectivos temperamentos: qual deles é mais carrancudo, mais maleável para trabalho em equipe, mais humano, etc.
Não resta dúvida que vender notícia não é um ramo fácil e estas curiosidades que podem ser comentadas cotidianamente constituem um filão importante de mercado. Mas para além dessas exigências, acredito que esse tipo de cobertura tenha relação com uma arraigada percepção do eleitor brasileiro inspirada na clássica interpretação de que o tal eleitor médio escolhe entre pessoas, não partidos ou programas de governo.
Acredito que o cálculo eleitoral nesta eleição tenha sido presidido muito mais por fatores estruturais ou de longa duração do que pelo escrutínio pessoal dos competidores. Analisando apenas variáveis de longa duração (que tendem a não oscilar ao longo da campanha) é possível estabelecer um quadro vantajoso à candidata do governo desde o ano passado, partindo de cinco informações básicas.
1- Segundo o Ibope, perguntados sobre o grau de satisfação com a vida que vem levando hoje, 85% estão satisfeitos ou muito satisfeitos. Esta satisfação está espalhada por todas as faixas de renda e escolaridade, embora proporcionalmente, os mais satisfeitos se encontrem nas faixas mais altas de escolaridade e renda.
2- Segundo o Ibope, perguntados sobre avaliação do governo, 96% o consideram ótimo, bom ou regular e apenas 4% o consideram ruim ou péssimo.
3- Segundo o Ibope, perguntados sobre como o presidente Lula conduz o governo, 86% aprovam.
4- Segundo o Ibope, quando perguntados sobre se sua vida ou a de seus conhecidos melhorou em relação ao consumo, 91% responderam que melhorou muito, melhorou pouco ou ficou igual. Apenas 7% acham que piorou. Os percentuais são estáveis em todas as faixas de renda e escolaridade.
5- Ainda segundo o Ibope, 26% dos eleitores afirmam possuir identidade partidária com o PT, o partido do governo e do Lula. Para se ter uma idéia do significado disso, os partidos que ficam em segundo são o PMDB e o PSDB, ambos com 6%. Os demais partidos ficam em torno de 1%.
Eleitorado satisfeito tende mais à conservação do que à mudança. Este sentimento poderia ser creditado a variáveis alheias ao governo, mas não é o que se verifica. O eleitorado acha que sua vida melhorou e que o governo tem relações com isso. O eleitor poderia considerar o governo bom a despeito do titular da cadeira, mas não é o que acontece. Assim observamos uma associação entre uma percepção positiva da vida que leva, do governo e do presidente, acompanhada da percepção comum de que sua capacidade de consumo aumentou. Ainda que com algumas variações, esta percepção se espalha pelas diversas faixas de renda e escolaridade.
Ora se estes elementos estão conectados na cabeça do eleitor é absolutamente racional seguir a orientação de Lula e votar em sua indicação, promessa de continuidade de um projeto político de inclusão, percebido de forma sensível pelo eleitor por intermédio do aumento em seus padrões de consumo, fruto do bolsa-família, bolsa-eletrodomésticos, bolsa-automóvel em 72 vezes, bolsa-casa própria, bolsa-viagem para o exterior, bolsa-juros bancários, etc. O aumento na sua capacidade de consumo é um elo que perpassa as diversas faixas de renda e escolaridade.
Se isso faz sentido, então esta eleição não pode ser explicada apenas pela transferência de votos de um líder carismático, mas pela adesão do eleitorado a um projeto de governo a partir das suas sensações ordinárias. Um governo produto de um projeto de poder de mais de 30 anos. Nestes 30 anos criou-se uma marca, o PT, que para parte do eleitorado encarna um projeto que seria inclusivo e redistributivo. Se, de fato, realizou isto é uma outra história, mas o eleitor enxerga a coerência desse projeto de poder alardeado há mais de 30 anos. É possível questionar a percepção do eleitor, mas não o caráter absolutamente racional do seu cálculo eleitoral.
O erro de alguns analistas e da oposição midiática foi não entender o amadurecimento do eleitorado que não está votando em uma pessoa, mas em um projeto político. Daí explica-se o fracasso da principal campanha de oposição, montada na desqualificação pessoal da adversária e na superioridade pessoal do seu candidato. Serra tornou-se um Quixote, sem apoio das principais lideranças de um partido rachado, cheio de trânsfugas locais e aliado de um partido em franca decadência. Sua recusa em aproveitar o legado tucano do governo FHC só enfraqueceu e descaracterizou uma candidatura partidária. Isolada, sem projeto partidário, a campanha oscilou, flutuando ao sabor das vicissitudes quotidianas, como uma folha de papel ao vento. Não se combate o projeto de poder mencionado desta forma mambembe.
O trabalho de oposição acabou se tornando tarefa da imprensa oposicionista. Não vejo nenhum mal nisso, trata-se de embate absolutamente democrático. Ocorre que a imprensa oposicionista sofreu três grandes derrotas provenientes de erros de diagnóstico. Esta eleição presidencial de 2010 é marcada pela baixa qualidade das informações e diagnósticos que circularam pela grande imprensa.
A primeira derrota aconteceu antes de ser deflagrado o processo eleitoral. O nosso grande jornal local, por exemplo, esforçou-se para creditar a sensação de melhoria da vida das pessoas ao cenário internacional ou aos agentes do mercado e não ao governo. Operando em uma realidade paralela, não conseguiu convencer a maioria do eleitorado, perdeu credibilidade e chegou ao período eleitoral já bastante isolado, contando apenas com a aquiescência de parte dos seus leitores habituais, que seguram as vendas, mas não alteraram os rumos da eleição. A baixa credibilidade associasse ao abandono da “fábula” da neutralidade jornalística. Lembram? Agora seriam “dois gritando”. Embora seja uma opção absolutamente democrática para um ator político em um contexto de liberdade de juízo, não sei se boa parte dos leitores absorveram a mudança em direção a uma postura claramente oposicionista.
O diagnóstico equivocado, o de um eleitor motivado por comparações pessoais, explica também porque a oposição midiática foi mal sucedida. A cobertura baseada na pessoalização disse pouco ao eleitor que precisava ser conquistado. Seus leitores, mal informados dos verdadeiros processos que definiam as preferências eleitorais ficaram desarmados, o que nos ajuda a compreender porque, mais uma vez, a opinião publicada não se transformou em opinião pública.
A terceira derrota decorre da escolha de centrar sua pauta na cobertura dos ditos escândalos de corrupção e sucumbir em sua própria armadilha. Nenhum problema em que a imprensa noticie o que considera fraudulento. O problema é que como o nosso grande jornal local possui a cultura de retratar a política como algo indiscriminadamente sujo, sugerindo a indiferenciação da atividade política, enfraquece sua própria iniciativa de denunciar aquilo que lhe parece ilícito. Outro erro de avaliação que antecede a eleição e leva ao descrédito da informação: a generalização é um descerviço a democracia. Desta forma, mesmo que se sustente que o governo praticou atos de corrupção, o eleitorado não tem garantias de que uma articulação política ou partido de oposição fará diferente. A variável perde força. É algo como a velha fábula do “é o lobo, é o lobo…”
Movido certamente por certo desespero, o quarto e último erro de avaliação foi embarcar de cabeça, de forma apressada, na pesquisa do Datafolha realizada nesta segunda feira e alardear o segundo turno. Aproveitando a capa do jornal para “demonstrar” que seriam formadores de opinião, pois teriam alterado os rumos da eleição. Na pressa, esqueceram que existem mais três ou quatro institutos de pesquisa com alta credibilidade que seguem afirmando que nada significativo foi alterado desde agosto, quando iniciou-se o horário eleitoral e Dilma foi reconhecida como candidata do governo, chegando aos 50% dos votos. Hoje, o tom do editorial já mudou. É forçoso reconhecer que o nosso grande jornal local nem arranhou o rumo desta eleição, apesar de ter dedicado mais de 250 páginas à crítica do governo nos últimos 50 dias. Se algo pode produzir alguma alteração é a exigência do documento com foto. Ou seja, o fim do título de eleitor.
Se estiver certo, o debate que começa dentro de instantes (termino este texto pouco antes do último debate eleitoral) não afetará em nada o resultado eleitoral. A lição importante que fica desta eleição é motivo de um outro texto: a necessária reinvenção da oposição, para se tornar capaz de enfrentar o projeto de poder que será reconduzido nas urnas. O debate público e a democracia agradecerão esta imperativa renovação.
*Cientista político, professor do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio
Originalmente publicado no portal Ibase