
A necessidade de apresentação de um comprovante de vacina, o chamado passaporte sanitário ou vacinal, contra a covid-19 para acessar locais com público é uma pauta que vem ganhando força no Brasil nas últimas semanas. Em São Paulo, havia previsão de entrada em vigor na última sexta-feira (27) da obrigatoriedade de apresentar a comprovação para o acesso a bares, restaurantes e shoppings. Por problemas técnicos, a Prefeitura de São Paulo acabou adiando a medida.
Em Porto Alegre, o assunto foi debatido durante a semana que passou na Câmara de Vereadores, onde há ao menos três iniciativas com propostas relacionadas a condicionar à vacinação o acesso a alguns espaços. O vereador Claudio Janta (SD) defendeu na tribuna da Casa a implementação de um passaporte vacinal em Porto Alegre como forma de acelerar a retomada da “normalidade” e da economia, especialmente do setor de eventos que depende do retorno do público. “A vida segue, mas segue para quem cumpriu. Para quem se vacinou e não transformou a vacina em questão ideológica. Mais necessário do que nunca ter o passaporte da vacinação”, disse Janta.
Em seguida, foi rebatido pela vereadora Fernanda Barth (PRTB), que encabeça um grupo de parlamentares contrários à medida, que afirmou que o “passaporte não vale nada”.
Uma das propostas em tramitação para a implementação de um passaporte vacinal, de autoria do vereador Leonal Radde (PT), propõe que seja necessária a apresentação de comprovação de vacinação contra a covid-19 para ingresso em imóveis vinculados ao município, salvo aqueles vinculados à prestação de serviços de saúde, e para nomeação em cargos públicos e demais modalidades de prestação de serviços ou relação com o Executivo Municipal. Inicialmente, previa também comprovação para crianças, estudantes, professores, funcionários e prestadores de serviços ingressarem nas creches e nas unidades de ensino fundamental e médio, mas uma emenda proposta retira a obrigatoriedade para crianças para adequar às orientações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Radde diz que o passaporte vacinal é uma experiência adotada por diversos países desenvolvidos e que se observa que é uma forma de proteger a população e, também, de permitir a retomada gradativa de eventos de grande porte. “É uma lógica justamente da gente incentivar a vacinação, que não adianta ser feita por um grupo e não ser feita por outro, isso já está comprovado, e também é uma possibilidade da gente acelerar a retomada da atividade econômica e diária com um mínimo de segurança, a gente sabe que nunca vai ser absoluto isso, mas com uma mínimo de segurança”, afirma.
Para o vereador, a contrariedade a qualquer proposta do tipo é resultado de uma ideologização do debate. “Isso é uma política pública baseada na ciência, baseada em evidência, não se trata de uma política ideológica ou partidária. Mas quem está se opondo quer fazer uma política partidária e fazer um discurso para motivar os grupos negacionistas, ligados ao bolsonarismo e a esse fascismo, que se opõe à vacinação porque é uma postura política e ideológica, pura e simplesmente”, diz.
Já a vereadora Fernanda Barth (PRTB), em resposta à reportagem, frisou que não apenas é contra a qualquer tipo de passaporte vacinal, como apresentou um projeto, em coautoria com os vereadores Alexandre Bobadra (PSL), Comandante Nádia (DEM), Hamilton Sossmeier (PTB) e Jesse Sangalli (Cidadania), para proibir a implementação de qualquer política que exija comprovação de vacinação para acesso a qualquer lugar. A iniciativa também proíbe a Prefeitura de aplicar sanções a servidores públicos que recusem a vacinação.
“Vem justamente para assegurar o direito de livre locomoção dos indivíduos, princípio este garantido pela Constituição Federal e direito fundamental dos Direitos Humanos. Por se tratar de uma escolha do ser humano não tomar a vacina, não pode o mesmo ser compelido pelo Estado de transitar, permanecer e/ou acessar lugares públicos ou privados. A Administração Pública Municipal também não possui prerrogativas mandamentais ao ponto de proibir o direito de qualquer cidadão de transitar livremente ou, até mesmo, obrigá-lo a apresentar um documento permissivo para compor a referida liberdade”, diz a vereadora.
Leonel Radde avalia que, mesmo com a resistência desse grupo de vereadores, há margem para aprovação do passaporte vacinal na Câmara. Embora a oposição tenha enfrentado grande dificuldade para aprovar projetos, mesmo aqueles que seriam “quase consensuais”, ele diz que vereadores governistas, como o próprio Janta, também defendem propostas do tipo. “Eu acredito que essa é uma política que atinja interesses de diversos campos políticos e ideológicos”, diz.
Radde ainda crítica o argumento de que o bem coletivo não pode se sobrepor a decisões individuais. “Afinal de contas, a gente vai começar a abolir a proibição de beber e dirigir, a obrigação de parar no sinal vermelho, de usar cinto de segurança? Se exacerba esse discurso, daqui a pouco a gente não tem mais limites na sociedade”, conclui.
O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), não se manifestou oficialmente nas últimas semanas sobre a discussão. Em 22 de julho, a Prefeitura, por meio de nota, disse que “não trabalha com projeto que obrigue a imunização ou crie punições para quem não se vacinar”, pois as políticas municipais teriam foco no incentivo à vacinação. Procurado pela reportagem, o governo municipal diz que a posição segue a mesma.
Maria Eugênia Bresolin Pinto, médica da família e professora Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), argumenta que a implementação do passaporte seria um estímulo adicional à vacinação, uma vez que as pessoas teriam interesse em receber a vacina, hoje disponível para todos os adultos acima de 18 anos, para poderem retomar atividade que envolvam público. Ela pondera que a vacina já é uma exigência, por exemplo, em viagens.
“Hoje, não existe nenhum país que vai aceitar a entrada de pessoas sem comprovante de vacinação ou testagem negativa”, diz. “Se eu estou dizendo que para entrar num estádio de futebol tem que estar vacinado com as duas doses, isso é uma estratégia positiva porque, quem quiser entrar no estádio, vai ter que ter essa vacinação. Ser certo ou errado é questão de estratégia populacional, a pandemia nos mostrou que não adianta pensar apenas no indivíduo, tem que pensar na população. Essa é uma estratégia de proteção da população”, afirma.
A professora destaca que a implementação de algum tipo de controle de circulação relacionado à vacinação foi adotado na Europa logo no início das campanhas de imunização. “Isso é uma estratégia que já vem sendo utilizada em muitos países, não é nenhuma novidade. Para ter uma ideia, quando começaram a fazer a vacinação na Europa, a Alemanha, por exemplo, era um lugar que, para tu tomar um café na rua, tinha que mostrar o demonstrativo da vacinação completa”, pontua.
Contudo, ela ressalta que a adoção de um passaporte vacinal não é uma política que viria para substituir outros cuidados, frisando que seguiria sendo necessário o uso de máscaras, a higienização das mãos e o distanciamento social. Além disso, ressalta que diminuiria, mas não interromperia o risco de transmissão do vírus, pois já é sabido que pessoas vacinadas continuam a transmitir a covid, ainda que mais devagar do que pessoas não vacinadas.
Ela também frisa que, em caso de implementação, seria essencial que o passaporte levasse em conta apenas os casos em que as pessoas estejam com o esquema vacinal completo, isto é, com as duas doses de vacinas aplicadas ou a dose única, no caso no imunizante da Janssen.
“O que é claro é que não dá para ser meio passaporte. Se é para ter, tem que ser para o esquema vacinal completo e pelo menos duas semanas após a aplicação da segunda dose”, diz, frisando que esse seria outra fator de controvérsia, uma vez que adiaria por mais alguns meses a retomada de eventos voltados para os jovens. “Se a gente usar essa estratégia, não dá para ser meia estratégia, não dá para ser só primeira dose e não dá para ser, imaginando em termos de população que frequenta esses locais, a gente pensar que os jovens que só vão poder frequentar esses locais no meio de novembro, não é exatamente o que o comércio e os governantes estão querendo para liberar”.