
Aos 38 anos e na segunda gestação, a professora Gabriela Luft estava se planejando para que o parto da filha Manuela fosse como o do primogênito, Augusto: via vaginal, levando o tempo que fosse necessário. Para isso, ela escolheu dar à luz pela segunda vez no hospital Mãe de Deus. “Eu sabia que teria uma assistência adequada para esse momento tão especial, com o apoio de uma equipe previamente contratada, pioneira na assistência interdisciplinar ao parto humanizado hospitalar. Muitos hospitais veem o parto natural com maus olhos”, afirma.
Mas o hospital alagou durante a enchente que atingiu Porto Alegre, justo na época em que Gabriela entrava na última semana de gestação. Junto da obstetra e da enfermeira obstetra, ela então procurou o hospital Divina Providência. “Tive a sala de parto com todos os recursos que eu precisei, foi um parto muito respeitoso”, relembra.
Os demais setores do hospital Mãe de Deus reabriram após a enchente, mas a maternidade e a UTI neonatal não. O comunicado oficial, no final de julho, informou que “serviços essenciais para o funcionamento do hospital, que ficavam no subsolo, precisaram ser realocados para o 3º andar, onde fica o Centro Obstétrico”.
“Quanto mais a gente estuda e se aprofunda sobre o assunto da gestação, mais a gente percebe que mulheres sabem parir e bebês sabem nascer. Só que, muitas vezes, a mulher não encontra um local que acolha e respeite a fisiologia do seu corpo”, afirma Gabriela. Apesar do fechamento da maternidade do Mãe de Deus, ela conseguiu vivenciar a experiência do modo que desejava, mas essa pode não ser a realidade de outras mulheres com o passar do tempo: o encerramento de maternidades pode dificultar a redução do percentual de cesáreas na Capital e no estado.
Esse percentual já é alto, mesmo com a Organização Mundial da Saúde atestando que não existem evidências de benefícios ao realizar cesáreas em mulheres que não necessitam dessa cirurgia por motivos médicos – como o parto prematuro, por exemplo. De 2015 a 2022, variou entre 49% e 50% o índice de cesáreas entre os partos realizados na Capital. Os dados foram obtidos com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e são referentes a crianças registradas em Porto Alegre.
“A redução do número de vagas em maternidades pode fazer com que as pacientes, pelo temor da falta de assistência, optem por agendar uma cesariana”, alerta o médico Lucas Schreiner, presidente da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Rio Grande do Sul (SOGIRGS). “Nós esperamos que a reabertura das vagas de maternidade possa fazer com que as pacientes optem cada vez mais pelo parto vaginal”, acrescenta.
O hospital Mãe de Deus, por exemplo, era um dos poucos que permitia a entrada de doulas e equipes multidisciplinares no centro obstétrico.
“A gente perde essa grande carta e fica com poucas opções boas. Se a gestante tem que optar entre uma cesárea e a desassistência, ela não tem opção”, pontua Gabrielle Cury, que atua como doula há dez anos e faz parte da coordenação da Associação de Doulas do Rio Grande do Sul (Adosul). “Muitas mulheres são forçadas a optar pela cesárea porque já não há uma quantidade de profissionais que assista parto normal, já não tem estrutura”, afirma.
Doulas são profissionais que oferecem apoio psicológico, conforto e suporte emocional à gestante durante todo o período de gravidez, parto e período pós-parto. Além de incentivar o parto normal, ajudam com técnicas de respiração e vocalização para que o parto ocorra da melhor forma possível.
“A primeira coisa para entender se o hospital incentiva o parto vaginal e digno é ver como essa equipe se organiza. Como se pensa a recuperação da puérpera, o alojamento dos bebês”, pontua Júlia Maciel, que também integra a coordenação da Adosul e trabalha como doula há sete anos.
O presidente da SOGIRGS elenca a estrutura necessária para que um hospital possa acolher gestantes que decidam pelo parto vaginal: disponibilidade de anestesista de plantão, no caso da paciente assim desejar, é uma delas. “O medo da dor é uma das principais razões para as pacientes optarem por cesariana ou desistirem de uma tentativa de parto normal”, explica o médico. Espaços para que a gestante possa se movimentar, medidas não farmacológicas para alívio da dor e bom treinamento das equipes de assistência ao parto também estão entre os requisitos.
Mas essa nem sempre é a realidade dos hospitais. Segundo a doula Gabrielle, a falta de estrutura adequada se soma ao incentivo à realização de cesarianas – pelo menos na rede privada de saúde, já que o SUS tem a prerrogativa de incentivar o parto normal através da Rede Cegonha. Isso porque o pagamento que os obstetras recebem por ambas as formas de parto é muito semelhante, só que o parto normal pode durar uma madrugada inteira.
“Além disso, o bebê pode nascer entre 37 e 42 semanas de gestação, o que torna muito difícil prever quando vai acontecer o parto normal e também organizar o fluxo do hospital”, explica Gabrielle.
Já a cesárea pode ser agendada desde a primeira consulta com o obstetra. Acontece no bloco cirúrgico, com hora marcada, e normalmente é rápida – dura cerca de uma hora, se não houver complicações. Do ponto de vista financeiro, compensa realizar diversas cesáreas no tempo em que seria feito um parto vaginal, pelo qual os profissionais recebem praticamente o mesmo de uma cesárea.
Gabriela relembra o nascimento do primeiro filho, em 2021: “Fiquei por 14 horas em trabalho de parto. Em nenhum momento o processo foi acelerado. No espaço de tempo em que se pode fazer diversas cesáreas, eu tive o espaço e o tempo necessário para parir”.
A cesárea normalmente não tem acompanhamento de doula. “Conheço algumas equipes que permitem a entrada em cesarianas de emergência, que são equipes mais alinhadas com o parto adequado. Mas, de um modo geral, se usa muito a justificativa da esterilização, da quantidade de pessoas na sala”, afirma Júlia.
“O Rio Grande do Sul não tem uma lei estadual para doulas, mas mesmo onde a presença é garantida, isso fica muito condicionado à autorização dos profissionais técnicos”, acrescenta Gabrielle. Segundo ela, o momento de uma cesárea de emergência – que pode ser realizada por motivos médicos mesmo com a gestante optando inicialmente pelo parto normal –, é muito delicado e a família não tem condições de exigir a presença de uma doula. “É uma desigualdade de forças. A gente entra em cesáreas dependendo da equipe, dependendo do contexto”, diz.
A maternidade do hospital Mãe de Deus é a terceira a fechar em Porto Alegre nos últimos anos. Em 2017 fechou a do hospital Ernesto Dornelles, instituição privada. Três anos depois, foi encerrada a maternidade do hospital São Lucas da PUCRS, que também atendia tanto a rede privada quanto a pública.
Nesse meio tempo, o percentual de cesáreas na Capital permaneceu alto, entre 49% e 50%. Já a quantidade de partos domiciliares caiu: foram 29 em 2015 e 6 em 2022.
As maternidades onde menos são feitas cesáreas em Porto Alegre estão no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV), onde 33% dos partos são cesarianas, e no hospital Conceição, onde o índice de cesáreas chega a 37%. Ambos atendem apenas pelo SUS.
“O incentivo ao parto natural é uma política do Ministério da Saúde”, explica Fernanda Fernandes, diretora-geral da SMS. “A literatura descreve as vantagens, tanto para a mãe quanto para o bebê, de se realizar o parto via vaginal. A taxa de cesárea [do SUS em Porto Alegre] está até um pouco acima do recomendado, porque nossos hospitais são referência para alto risco, inclusive para o interior do estado. É uma característica do nosso serviço”, ressalta.
Os maiores índices de cesáreas são realizados nos hospitais Moinhos de Vento (80%) e Divina Providência (76%), instituições privadas. Mesmo com baixo número de partos vaginais, alguns desses locais oferecem estrutura adequada e o acompanhamento de doulas para quem opta por dar à luz sem passar por cirurgia. É o caso do Divina Providência, onde Gabriela teve a filha, e do Mãe de Deus, que apesar de reconhecido pela assistência adequada, tinha o índice de cesáreas em 75%.
A lotação da rede pública normalmente não é impactada quando fecham maternidades de instituições privadas, pois as gestantes que dariam à luz nesses hospitais procuram outro hospital particular para fazer o parto. Por isso o fechamento do Mãe de Deus pode pressionar o Divina Providência, por exemplo, e sobrecarregar o serviço de referência que é prestado lá.
“Em 2020, quando fechou o hospital São Lucas, nós redirecionamos os serviços para o HMIPV”, afirma Fernanda. “Tivemos um impacto [na rede SUS], sim, em 2020 – mas porque fechou a maternidade de Viamão, que repercutiu no hospital Femina. Quando se fala do SUS, se fala de funcionamento em rede. Então, quando fecha algum serviço, a gente organiza para que outro possa atender essa demanda”.
“Hoje nascem 5 mil crianças a menos na rede SUS em Porto Alegre”, afirma a diretora-geral da SMS, ao comparar dados de 2023 com o ano de 2014.
Os dados obtidos com a pasta, que são referentes ao período entre 2015 e 2022 e abarcam também a rede privada, corroboram com a queda na taxa de natalidade. O índice reduziu em cerca de 5%.
A doula Júlia entende que esse dado não justifica o fechamento de maternidades. “Até porque Porto Alegre absorve muita demanda da Região Metropolitana”, pontua.
Segundo o presidente da SOGIRGS, o motivo dos fechamentos tem natureza financeira: “Sempre que há alguma instabilidade econômica no hospital, ele acaba fechando o setor que tem a menor margem [de lucro], e a maternidade em geral está entre esses setores de menor margem ou de prejuízo. O fechamento das maternidades tem relação com o baixo valor que é repassado aos hospitais pelos planos, e também pelo próprio SUS, na realização de partos vaginais e cesarianas”, afirma.
Informações do DATASUS mostram que os valores repassados pelo sistema público pelo parto normal são de R$ 267 para o hospital e R$ 175 para o obstetra. Já para a cesariana são repassados R$ 395 ao hospital e R$ 150 ao médico. “Muitas vezes, os valores são complementados pelos estados e municípios”, explica o obstetra Lucas.
O valor repassado pelos convênios tem variação, segundo o médico. O IPE, por exemplo, paga R$ 1 mil para parto normal ou cesariana, independente do tempo de trabalho de parto.