
Em 29 de junho, o Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP) completou 140 anos de uma história que ajuda a explicar a evolução do tratamento de saúde mental e da própria cidade de Porto Alegre, marcada por páginas tristes e violações que levaram, ao longo das últimas décadas, a movimentos em defesa de seu fechamento. Milhares de pessoas já moraram ali, muitos delas forçadas e submetidas a tratamentos hoje considerados como práticas de tortura. Contudo, a atual Secretaria Estadual de Saúde (SES), que concluiu recentemente o processo de desinstitucionalização dos internados no hospital, busca manter o espaço como referência no tratamento de saúde mental sob outros moldes. Para marcar este processo, a pasta celebra nesta quinta-feira (18) — tardiamente em razão das enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em maio — os 140 anos da instituição.
O São Pedro foi inaugurado em 29 de junho de 1884, sob o nome de Hospício São Pedro. Ao nascer, era a primeira instituição psiquiátrica de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, à época ainda chamado de Província de São Pedro. Como um hospício, tinha o objetivo de abrigar os indivíduos que eram taxados de “loucos”, mas acabou por cumprir um papel de higienização social, uma vez que para os hospícios eram enviadas as pessoas que não se enquadravam nas normas sociais, os chamados desajustados, que não necessariamente padeciam de condições psiquiátricas.
Conforme consta na ata de tombamento de prédios do HSPS como patrimônio histórico da cidade de Porto Alegre, datada de agosto de 1993, o contexto para a criação das instituição precede algumas décadas a sua inauguração. Para estabelecer novos padrões de convívio social com o objetivo de acelerar a organização capitalista do espaço da cidade, a Câmara Municipal começou a adotar na década de 1850 uma série de medidas de “disciplinamento dos espaços urbanos”, visando uma higienização da Capital. Para efetivar esse processo e “limpar” as ruas da cidade, é criada em 13 de março de 1974, por decreto provincial, a Fundação do Hospício São Pedro, que lançaria as bases para inauguração do prédio uma década mais tarde.
Ao longo do século XX, a instituição foi se configurando, na prática, como um hospital psiquiátrico, chegando, em seu pico, a ter até 5 mil pacientes internados simultaneamente, entre institucionalizados — pessoas que não deixavam as dependências do hospital — e pacientes internados temporariamente.
Entre 1927 e 1950, passou por um grande processo de remodelagem, ganhando novos pavilhões e instalações mais modernas. Destaca-se que grande parte das obras foram realizadas pelos próprios pacientes internados, com a justificativa de que se tratava de uma atividade terapêutica ocupacional.
Na década de 1980, ganha força o movimento pela Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Sul, que tinha o objetivo de mudar as formas de tratamento dados a pacientes com distúrbios, doenças e transtornos mentais, o que se contrapunha justamente à existência de manicômios e hospícios. O São Pedro foi, como consta em sua ata de tombamento, palco de violações de direitos humanos à épocas consideradas formas de tratamento para estes pacientes, como choques elétricos, uso de coletes de força, jejuns forçados, entre outros castigos.
“O Hospital São Pedro tem a sua história como portador de tristes lembranças, mas mesmo assim, precisa ser preservado com o objetivo de estabelecer reflexões sobre a condição humana, onde a função social deve ser a reabilitação, e não ser lembrado como depósito de loucos ou pela sua superpopulação ou por denúncias de maus tratos e a falta de estrutura de atendimento concorram com a consagração dessa imagem centenária ao longo do tempo esses fatores contribuem para o preconceito mental”, diz a ata de tombamento.
O processo de desinstitucionalização dos internados do São Pedro começou no governo de Pedro Simon (MDB), sob coordenação de Sandra Fagundes, que depois viria a ser secretária estadual de Saúde no governo Tarso Genro (PT). Ele é acentuado a partir de 1992, quando é sancionada a lei estadual 9.716, que determina a substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral em saúde mental. E volta a ganhar força a partir da aprovação, com a reforma psiquiátrica nacional, da Lei 10.216, de 2001.

Ao longo das décadas, o objetivo da desinstitucionalização era promover, à medida do possível, o retorno dos internos para o cuidado familiar ou de redes municipais de Saúde. Contudo, muitos deles já não tinham mais vínculos familiares e acabaram permanecendo internados em hospitais psiquiátricos, como é o caso do São Pedro. Em 2002 foi inaugurado em Porto Alegre o primeiro serviço residencial terapêutico (SRT) para abrigar pacientes do São Pedro em processo de desinstitucionalização, o Morada São Pedro, localizado ao lado do hospital, na atual Vila São Pedro. Com o passar do tempo, os pacientes que já não tinham mais vínculos fora dos muros da instituição passaram a ser transferidos para este e outros residenciais que foram sendo criados ao longo dos anos. Ainda assim, um grupo reduzido de pacientes permanecia morando no hospital até a presente década.
Este movimento, contudo, enfrentou oposições, como a chamada contrarreforma, que defendia a manutenção de instituições como o São Pedro. Uma das lideranças dessa contrarreforma no Estado foi o atual deputado federal Osmar Terra (MDB), quando atuou como secretário de Saúde do governo de Germano Rigotto (MDB), a partir de 2003.
Em março de 2023, quando o HSPS completou 139 anos, a Secretaria Estadual de Saúde conseguiu concluir o processo de desinstitucionalização ao transferir os últimos pacientes que ainda residiam na ala de moradia para o Serviço Residencial Terapêutico Florescer, na Vila São Pedro. Os moradores dos residenciais vizinhos ao hospital permanecem, dessa forma, como o último elo de ligação entre o passado e o presente da instituição. Como contou ao Sul21, em maio de 2022, a secretária adjunta de Saúde, Ana Costa, em uma reportagem sobre os residenciais, os moradores destes espaços — 104, em julho de 2024 — eram idosos para os quais já não se encontravam outras alternativas.
“O processo de desinstitucionalização acontece há 20 anos. A gente trabalhou, por exemplo, a tentativa de voltar pra vínculos familiares. Essas pessoas que hoje estão nesses dois espaços não há, pelo menos em nossos planos terapêuticos até o momento, nenhum que tenha este resguardo familiar preservado. São pessoas mais idosas, então seus familiares foram também seguindo. Alguns já não tinham vínculo com a família. Mas muitos, sim, voltaram no decorrer desses vinte anos, alguns foram para suas casas. Neste momento, o cenário tem se mostrado para os residenciais terapêuticos”, disse Ana Costa, na ocasião.
Diante do histórico da instituição e pela defesa de novas formas de tratamento, entidades que atuam na luta antimanicomial e pela implantação dos conceitos da reforma psiquiátrica, como o Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP-RS), defendem que hospitais psiquiátricos como o São Pedro não deveriam existir, com os pacientes sendo tratados em leitos psiquiátricos de hospitais gerais.
“Se algo tem que ser celebrado nesta marca de 140 anos de um hospital psiquiátrico, é o quanto ele já é extemporâneo, que já passou da hora de que ele tivesse sido fechado e que as suas funções, que nunca foram devidamente cumpridas no sentido da missão que ele diz cumprir, de tratamento de saúde mental e de melhorar a vida das pessoas em sofrimento psíquico agudo e crônico, já deveriam ter sido repassadas para uma rede de atenção psicossocial. Uma rede que, se ainda não está devidamente fortalecida e estruturada como deveria para atender as necessidades da população, é justamente porque os investimentos públicos sempre ficaram dentro dessas instituições asilares e não foram devidamente repassados, como estava previsto na Lei 10.216, de 2001”, diz a psicóloga e professora da UFRGS Simone Mainieiri Paulon, uma das principais militantes da luta antimanicomial no RS.
Para Simone, o São Pedro continua sendo uma instituição asilar absolutamente anacrônica. “Como a gente sempre diz no movimento antimanicomial, as estruturas manicomiais estão para a sua finalidade de curar a saúde mental ou de melhorar a vida das pessoas em sofrimento psíquico tanto quanto as prisões estão para a ressocialização dos indivíduos. Se a gente olhar para a história dos presídios na sua função reintegradora à sociedade e para a história dos manicômios na sua função de cuidado e qualificação da vida das pessoas com problemas de saúde mental, a gente vai ver o quanto essas as duas instituições já deveriam ter sido substituídas há muito tempo”, afirma.
Ainda há outra questão que permeia a continuidade da instituição, que é a deterioração das suas instalações. Em 27 de junho deste ano, o promotor de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre, Felipe Teixeira Neto realizou uma vistoria nos prédios para avaliar suas condições, especialmente a situação de telhados, que resultava em infiltrações muito severas em uma das edificações. “As janelas estão abertas e deterioradas, o telhado não tem cobertura em vários pontos, os assoalhos estão em grande parte comprometidos, fazendo com que períodos de chuva intensa como os ocorridos recentemente comprometam, inclusive, a higidez estrutural do prédio”, disse Felipe Teixeira Neto durante a vistoria.
O fechamento, contudo, não é considerado pela atual diretora do HSPS, Chris Allves. Ela avalia que a instituição continua sendo necessária para o atendimento a questões de saúde mental no Estado, uma vez que conta com 90 leitos para atendimento ambulatorial a pacientes de 88 cidades, com populações somadas de mais de 5 milhões de pessoas. “O Hospital São Pedro é de suma importância para a população de pacientes de saúde mental que é mais carente e vulnerável”, diz. “Hoje, a gente precisa olhar saúde mental, é necessário para a população, é necessário para a questão hospitalar. É um hospital que entende realmente e tem uma história de 140 anos, dali saíram muitos profissionais de todo estado e do Brasil”, complementa.
A diretora ainda pondera que a utilização do hospital não pode ser observada sob as lentes do passado. “Nós temos que lembrar que muita coisa mudou. É a primeira vez em 140 anos que existe uma mulher trans dentro da direção, que sou eu, então a instituição está sendo olhada de uma outra forma. Imagina, uma mulher transexual, assistente social, a gente está olhando o tombamento, a gente está olhando prédio por prédio, estamos revisando todas as obras. Então, para nós, é muito importante a saúde mental e o Hospital São Pedro”, afirma Chris Allves.
De acordo com a SES, o HPSP segue como referência de cuidado em saúde mental e um ponto de atenção da Rede Psicossocial (RAPS), com suas dependências sendo utilizadas para atendimentos ambulatoriais de referência, internação para casos agudos, reabilitação através dos dispositivos Oficina de Criatividade e Jardim Terapêutico, bem como atividades de ensino e pesquisa.
À medida que o número de internos foi sendo reduzido, as dependências do HSPS passaram a ficar esvaziadas, abrindo espaço, por um lado, para a aceleração do abandono do prédio, mas, por outro, permitindo que outros tipos de atividades passassem a ser realizadas ali. No início dos anos 2000, grupos de teatro de Porto Alegre passaram a ocupar os prédios históricos e sem uso da instituição, constituindo o que ficou conhecido como Condomínio Cênico. Além de guardar equipamentos, figurinos e cenários, o espaço passou a servir também de palco para vários espetáculos,
Este reaproveitamento cultural do São Pedro perdurou por mais de uma década e meia. Em janeiro de 2016, a SES solicitou de volta os prédios tombados como patrimônio histórico que haviam sido cedidos à Secretaria Estadual de Cultura (Sedac), mas as duas pastas acabaram entrando em acordo e ficou definido que seis pavilhões do São Pedro desativados há mais de 30 anos seriam destinados às atividades culturais. No final do ano, porém, a Saúde mudou de ideia mais uma vez, alegando ter outro projeto para o espaço.
Em meio à essa situação, em 10 de novembro daquele ano, o Corpo de Bombeiros interditou o espaço do Condomínio Cênico, após uma visita surpresa, sob a justificativa de que os prédios históricos não tinham “infraestrutura” ou condições para “prevenção a acidentes e incêndios”. A vistoria aconteceu apenas dois dias antes da estreia do espetáculo Mithos, do grupo Falos&Stercus, que tinha autorização da Sedac para ser realizado no espaço do Hospital. Na ocasião, cinco grupos teatrais utilizavam-se das dependências da instituição.