Saúde
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17 de julho de 2024
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18:06

Após 30 anos no IPE, aposentada precisa recorrer a cirurgia particular na luta contra tumor

Por
Luciano Velleda
lucianovelleda@sul21.com.br
A ressonância magnética realizada pela segurada do IPE Saúde mostra a localização do tumor no lado direito do pescoço. Foto: Arquivo pessoal
A ressonância magnética realizada pela segurada do IPE Saúde mostra a localização do tumor no lado direito do pescoço. Foto: Arquivo pessoal

A papiloscopista Tchilla Panitz Stark, de 60 anos, entrou no governo estadual por concurso público em 1989, aos 24 anos de idade. Naquela época ainda não existia o Instituto Geral de Perícias (IGP) – que seria criado em 1998 – e a servidora era lotada na Polícia Civil. O plano de saúde dos servidores do Estado, o IPE, não era dividido como atualmente, com uma parte de previdência e outra de assistência à saúde; era um único instituto para as duas funções.

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“Era um IPE bom, funcionava. Não era maravilhoso, mas funcionava”, afirma Tchilla, lembrando ter sido operada quando criança pelo sistema porque sua mãe era funcionária do Estado. Em 1990, voltou a usar o IPE para o nascimento da filha e, dois anos depois, precisou novamente para uma cirurgia de nariz. Nos anos seguintes, pelo fato do marido ter Unimed (e ela também), deixou de usar o IPE. 

Em 2016, Tchilla se deparou com a nova realidade do órgão. Primeiro, a mãe adoeceu e precisou colocar um marcapasso no coração. Estava internada no Hospital Beneficência Portuguesa quando Tchilla foi chamada no consultório pelo médico. “Ele me mostra a tabela e diz que receberia R$ 234,00 para a cirurgia de implante, mas queria R$ 3.600. Minha mãe, na época, recebia R$ 4.000. Eu já tinha despesas até ‘dizer chega’, estava cheia de empréstimo porque custeava toda a despesa da minha mãe, ela tinha uma UTI dentro de casa porque estava muito mal”, recorda. “Fui afrontada por quatro médicos, foi uma coisa bastante inusitada em que eu tinha que pagar aqueles R$ 3.600. Me senti super aviltada, acuada. Eu não estava preparada para aquilo, foi a primeira vez que eu tive o problema do ‘por fora’.”

Sem condições de pagar a diferença “por fora”, nos dias seguintes a mãe acabou falecendo. “Foi bastante difícil para mim. Me culpei, não paguei os R$ 3.600 e minha mãe morreu.” 

Dois anos depois, em 2018, a papiloscopista se viu novamente diante de um drama de saúde familiar. E, mais uma vez, teve que enfrentar as tortuosas curvas do IPE. Seu marido precisou fazer cirurgia de catarata e o fantasma da cobrança “por fora” apareceu novamente. Em 2022, cego dos dois olhos, ele faleceu, sem que o casal tenha tido condições financeiras de pagar o “por fora”. 

A sucessão de eventos trágicos teve novo baque dois anos depois da morte do marido. Agora em 2024, morando em Capão da Canoa, Tchilla começou o ano observando, dia após dia, um caroço crescer no lado direito do seu pescoço, sob uma tatuagem. “Ele já existia desde 2016, mas era só um gânglio infartado, pequenininho, um pouco maior que uma ervilha”, explica. Na ocasião, ela ainda morava em Porto Alegre e os médicos que a atenderam lhe disseram que não precisava se preocupar, não era nada grave. 

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Sem querer assustar os filhos no primeiro momento, optou por ficar em silêncio. Em abril, todavia, sua saúde começou a ter abalos. Tchilla passou a ter seguidos desmaios, nas mais variadas situações, em casa ou na rua. E então, esconder dos filhos o caroço que crescia no pescoço se tornou impossível.  

Imagem do tumor no pescoço um dia antes da cirurgia. Foto: Arquivo pessoal

 “Aprendi que sentia uma coisa antes, dava uma tontura muito grande, eu já me atirava no chão porque eu sabia que ia cair”, relata. Apesar do sintoma, ela ainda buscava outros motivos que não fossem o caroço; ora a falta de líquido, ora o calor. Até que um dia decidiu ir ao médico. Em Capão da Canoa, realizou uma consulta pelo SUS, pois via IPE Saúde o prazo de espera era maior. Nos dias seguintes, conseguiu realizar uma série de exames, parte pelo SUS e outros pelo IPE. Foi quando um dos exames de imagens apontou a existência do tumor. 

 “O temor foi bem grande. Pensei: ‘Não posso morrer, sou a última’.” Conversando com a filha Débora, ponderou que a família era elas duas e o irmão, mais ninguém. “Nossa família são três pessoas: eu e meus dois filhos. Então falei para minha filha: ‘Olha, Débora, estou disposta a enfrentar o que eu tinha receio. Vamos à luta.”

Com a orientação obtida numa consulta com oncologista credenciada no IPE Saúde, Tchilla começou a procurar médico especialista em cirurgia de cabeça e pescoço no portal do instituto. Procurou, procurou e não encontrou. De repente, percebeu que não havia nenhum cirurgião especialista em cabeça e pescoço que atendesse pelo IPE Saúde, em Porto Alegre ou em qualquer outra cidade do Rio Grande do Sul. 

A saída foi procurar um cirurgião geral. Em Capão da Canoa, consultou com um ligado ao IPE e ouviu que seria possível tirar o caroço. Era final de abril e o médico lhe disse que em cerca de 10 ou 15 dias, realizaria a cirurgia. Não foi bem assim. 

“Ele começou a me enrolar. Não podia me atender e não dizia o por quê. Mas não me cobrou ‘por fora’”, afirma. Quando enfim conseguiu marcar a consulta, Tchilla chegou a oferecer um valor extra para o médico. Segundo ela, impulsionada pelo medo do câncer. Foi então que o médico disse não ser habilitado para aquele tipo de cirurgia e reforçou a indicação de um especialista em cabeça e pescoço. 

A última consulta com o cirurgião de Capão da Canoa foi marcada por um fato fora do comum. Tchilla, a filha e o médico, cada um com seu motivo, gravaram a conversa. A papiloscopista não sabe dizer qual foi o motivo do cirurgião, mas suspeita que ele tivesse algum medo por ela ser também advogada; já ela e a filha queriam uma prova de que não havia atendimento de especialista em cabeça e pescoço pelo IPE Saúde. “Todos nós estávamos ali ‘armados’, gravando, uma coisa absurda. Não era mais uma consulta médica.”

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E assim, no dia 29 de abril, antes da trágica enchente que varreu o Rio Grande do Sul, ela fez uma queixa contra o IPE Saúde na ouvidoria do governo estadual. No momento da reclamação, ouviu que receberia resposta dentro de alguns dias. Os dias passaram, a gravidade da situação não permitiu esperar e, atualmente, já operada após pagar o procedimento de modo particular, a aposentada que contribuiu por mais de 30 anos para o IPE ainda aguarda o retorno da ouvidoria. 

“Até hoje não tenho resposta”, diz, indignada. “Como assim, eu pago e não tenho (médico)? Mesmo que tivesse que esperar um ano, o que não seria possível, mas não tem! Fiz toda a queixa, a pessoa ouve, registra e diz que terá um prazo entre 20 a 30 dias para uma resposta que nunca houve.”

Já era final de maio, início de junho, e o tempo corria contra Tchilla. A decisão foi buscar um médico particular e assim encontrou um especialista em Lajeado. Ela gostou do atendimento, uma primeira consulta via vídeo, na qual o cirurgião lhe explicou sobre a delicadeza do procedimento, os riscos da intervenção na área e falou da possibilidade de ficar com sequelas – hoje, Tchilla tem encurtamento no movimento do braço direito. No primeiro momento, o valor da cirurgia foi estimado em R$ 30 mil. 

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No dia 21 de junho, já fraca e debilitada, há dois meses aguardando resposta da ouvidoria do governo estadual e acuada pelo tumor que crescia, ela deu início a uma disputa jurídica com o IPE Saúde, denunciando na Vara do Juizado Especial da Fazenda Pública (JEF) a inexistência de cirurgião especialista em cabeça e pescoço conveniado com o instituto. A vara do JEF costuma ser o local de socorro judicial para tutela de urgência quando o paciente busca medicações, insumos ou cirurgia recusada pelo IPE Saúde. A ação buscava cobrar o direito à internação hospitalar, médico, anestesista e a cirurgia.

Quase uma semana depois de ingressar com a ação, no dia 26 de junho e novamente sem resposta, só que dessa vez da Justiça, Tchilla foi a Porto Alegre tentar conversar com o assessor da juíza responsável pelo caso. “Este tipo de processo tem que ter uma resposta entre 24 e 48 horas, principalmente quando se trata de urgência. Só que eu tinha um laudo e um orçamento e, no Rio Grande do Sul, tem que ter três laudos e três orçamentos. Mas me custaria dinheiro e eu não tinha. Não consegui fazer outras consultas e o tempo era contrário a mim porque o caroço começou a crescer violentamente.”

A ida ao Fórum foi em vão. Tchilla não conseguiu ser atendida pela assessoria da magistrada. Foi ao IPE Saúde e o órgão estava fechado, devido à enchente que havia acontecido quase dois meses antes. “O IPE fechou as portas. Não tinha comunicação, não tinha como falar com o IPE”, recorda. 

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Sem saída, a papiloscopista marcou a cirurgia particular. Em contato com o médico, soube que ele era credenciado ao IPE Saúde, mas não estava atendendo pelo instituto. Ainda assim, foi possível emitir um pedido de internação que, dias depois, foi aceito. Com isso, a cirurgia orçada em R$ 30 mil baixou para R$ 26 mil. Ela também fez uma vaquinha online e conseguiu arrecadar R$ 4 mil. O detalhe é que a autorização da internação hospitalar concedida pelo IPE Saúde para a retirada do tumor foi de apenas um dia.

Ao mesmo tempo, o desgaste com a ação judicial prosseguia. Tchilla afirma que a juíza do caso colocou “todas as barreiras possíveis e imagináveis” para ela não ter a concessão de tutela de urgência. Uma série de exigências que, segundo ela, eram impossíveis de serem cumpridas num prazo curto, como novos orçamentos e laudos – e tempo era tudo o que ela não tinha mais. 

“Ela realmente foi uma pessoa má, ela fez questão de criar o que a gente, dentro do direito, chama de prova impossível ou prova diabólica. Se eu não tenho contato com o IPE, se eu não tenho jeito de conseguir mais orçamentos, eu não vou conseguir realizar e era esse o intuito”, afirma. Sem esperança de vitória na via judicial, no começo de julho ela pediu o arquivamento da ação.

Revoltada por não ter auxílio do IPE Saúde no momento mais dramático da sua vida, após contribuir com o instituto desde 1989, Tchilla foi então para a cirurgia particular. Ainda conseguiu com o médico um desconto de mais mil reais pelo encaminhamento da biópsia via IPE, e mais R$ 3 mil de abatimento por propor e acordar fazer a operação sem receber recibo – algo que ela admite ser errado, mas justifica por ter se sentido num beco sem saída. 

“Não tenho comprovação dele, tenho comprovação do que eu gastei com o empréstimo”, explica, ressaltando ter também os comprovantes da internação hospitalar e do anestesista – que custou R$ 3.200 e cujo reembolso via IPE Saúde será de R$ 156,00.

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No dia 2 de julho, Tchilla foi finalmente operada de modo particular em Lajeado, no Hospital Bruno Born. O tumor tinha o tamanho de uma batata doce. A cirurgia foi filmada e fotografada. Sem esquecer da magistrada que não lhe deu a tutela de urgência, a papiloscopista enviou para ela as imagens da operação no dia 7 de julho. Até o dia 8 de julho, o réu, no caso o IPE Saúde, sequer havia sido citado pela juíza. “Mandei para ela os dois vídeos e as duas fotos, dizendo: ‘Foi de grande porte a cirurgia, né? Pois é, passei por isso’.”

De acordo com ela, a ação judicial, que havia sido protocolada no dia 21 de junho com urgência e deveria ter tido resposta em 48h, no dia 7 de julho ainda não havia decisão. “Ela ignorou que era uma coisa grave, colocou de lado e me pediu um monte de coisa impossível para se respaldar de que eu não apresentei”, explica. “Gastei R$ 23.500 do meu bolso e não tinha mais de onde arrancar (dinheiro). Não tenho mais nem carro.” 

Decepcionada, revoltada, endividada e com um tratamento de saúde a enfrentar, a servidora aposentada não se conforma com a situação. “Estive na mão do Estado agora na cirurgia e o Estado não me deu aquilo que ele tinha, por obrigação, que me dar. Estou botando o meu pescoço na reta, literalmente, e não pretendo morrer na praia”, diz a papiloscopista residente em Capão da Canoa, enquanto aguarda a consulta que fará até o final de julho com o médico que a operou.


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