
Metas não atingidas e informações contraditórias foram a justificativa para o Conselho Municipal de Saúde (CMS/POA) reprovar o Relatório Anual de Gestão da Saúde de Porto Alegre 2022. A votação no plenário do conselho ocorreu no último dia 19, com 30 conselheiros votando pela reprovação do relatório e três pela aprovação.
O Relatório Anual de Gestão (RAG) 2022 é um instrumento de planejamento do SUS, com as ações realizadas pela gestão e o cumprimento das metas propostas para o primeiro ano de execução do Plano Municipal de Saúde (PMS) 2022-2025, que também foi reprovado pela maioria dos usuários e trabalhadores do SUS com assento no conselho.
A análise e votação do relatório é uma das atribuições do Conselho Municipal de Saúde (CMS). Com a reprovação do relatório, a expectativa do colegiado é que sejam feitos ajustes nas ações planejadas pela Prefeitura para a Programação Anual de Saúde de 2024, que deve ser apresentada até o final deste ano ao conselho.
A decisão do plenário foi subsidiada pelo parecer nº 3 de 2023, da Secretaria Técnica, aprovado pelos conselheiros em 28 de setembro. O documento destaca a ausência de diversas informações, especialmente aquelas relacionadas aos indicadores, além de contradições. O parecer enfatiza a falta de parâmetros balizadores para a análise comparativa. “Deve ser salientado que números absolutos, sem a identificação de parâmetros, não se prestam às análises avaliativas, como ocorreu em diversas áreas apresentadas”, diz trecho do documento.
Também é pontuada a preocupação com o descumprimento de ações estruturais, como o cadastramento por território de toda a população para a abertura de novas equipes de Saúde da Família, além do descumprimento da deliberação da Conferência de Saúde e da Resolução da Atenção Básica para garantia de 100% de cobertura da população das equipes de Saúde da Família com agentes comunitários de saúde.
Em relação ao trabalho dos agentes, o parecer alerta que foram retiradas do Relatório Anual de Gestão as tabelas que “historicamente” apresentavam a cobertura de agentes por região, trabalho considerado fundamental para a efetividade da Saúde da Família. Os registros possibilitavam o monitoramento da série histórica desse indicador.
“Eu quero me mudar para esta cidade que o secretário de Saúde está falando”, disse Djanira Correa da Conceição, usuária do SUS da região Sul-Centro Sul, referindo-se à apresentação do relatório feita pelo secretário Fernando Ritter na reunião. “Enquanto moradora, eu entendo que só vou ter cobertura de saúde quando eu for ao médico e eu tenha resolvido o meu problema. Antigamente, nós tínhamos acolhimento porque não estava tudo terceirizado, agora não temos mais acolhimento e muito pouco até de verificação de pressão, que raramente é feita. Temos um médico que não resolve os problemas porque ele encaminha para consulta com especialistas e exames e ficamos na fila de espera e nada acontece. Isso não é cobertura da saúde da população”, denunciou Djanira.
Josiane Machado Garcia, trabalhadora e representante do Conselho Distrital Humaitá-Navegantes-Ilhas, disse que o governo municipal deveria, pelo menos, garantir o que está proposto na Política Nacional de Atenção Básica 2017, referindo-se a composição de, no mínimo, um agente comunitário de saúde por equipe de saúde para as visitas domiciliares, o que não acontece em Porto Alegre.
“As pessoas não são números e estão morrendo. A primeira coisa que deveria ter como meta para a cobertura populacional é garantir pelo menos um agente comunitário de saúde por equipe, e isso nem é pedir aumento do quadro, é ter pelo menos o quadro mínimo”, lamentou Josiane.
O parecer retrata que o percentual de 17,06% aplicado em Ações e Serviços Públicos de Saúde em 2022 é o menor desde 2013, em contraposição à Receita Líquida de Impostos e Transferências que apresenta crescimento. Com isso, nos indicadores do Sistema de Informações em Orçamentos Públicos em Saúde, Porto Alegre passou a figurar como cidade que investe abaixo das médias nacional e estadual em gastos por habitante e aplica percentual em Ações e Serviços Públicos de Saúde também abaixo das médias nacional e estadual.
Em 2022, o Município investiu R$ 506,19 por habitante, um valor menor que em 2021, quando o investimento foi de R$ 541,50. O parecer compara com o investimento feito em saúde na cidade de Belo Horizonte, capital com porte semelhante a Porto Alegre, que aplicou, em 2022, 20,45% em Ações e Serviços Públicos de Saúde e investiu R$ 659,73 por habitante, um valor R$ 153,44 maior que a capital gaúcha.
Conforme a análise, o Porto Alegre reduziu a execução da despesa apesar da ampliação dos recursos de fonte estadual, que chegou a 18,2%, e federal, que atingiu um aumento de 35,64% em relação ao ano anterior (2021). Além da entrada de recursos extraordinários e referentes às emendas parlamentares.
A Secretaria Técnica do conselho ainda denuncia, no documento, o uso indevido de R$ 29 milhões que foram retirados da Saúde para uso na Secretaria de Educação, por meio de créditos suplementares, a revelia do controle social e por decisão do Comitê de Gestão Orçamentária e Financeira, órgão vinculado ao Gabinete do Prefeito. O valor é parte dos recursos das despesas extraordinárias recebidas pelo Fundo Municipal de Saúde (FMS) e decorrentes da municipalização do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV).
No total, R$ 69 milhões ingressaram nas contas como pagamento da dívida do Governo Federal, por meio do Conselho Municipal de Saúde (CMS) que, em 2015, entrou com representação no Ministério Público Federal pedindo o pagamento de verba indenizatória prevista no termo de municipalização do HMIPV, assinado em 2000. No parecer, está em destaque que a “utilização do recurso para suplementar a educação é ilegal, constitui desvio de finalidade, visto que a decisão foi tomada por um órgão externo ao FMS, contrariando o disposto na Lei 141/2012”. O documento diz que tal ação afronta decisão judicial cuja sentença atribui à Secretaria da Saúde a gestão dos recursos do Fundo.
O parecer ainda ressalta o aumento de 3,8% da mortalidade prematura em pessoas de 30 a 69 anos com doenças crônicas não transmissíveis do aparelho circulatório, câncer, diabetes e doenças respiratórias crônicas. Os dados apontam 362,8 mortes para cada 100 mil pessoas, em 2022, ante 349,7 para cada 100 mil pessoas, em 2021.
Outro destaque no parecer foi a situação da tuberculose, doença que “mais emblematicamente caracteriza a pobreza no processo saúde/doença de uma população”. Em 2022, os indicadores demonstraram a presença da doença em 82 pessoas para cada 100 mil habitantes, sendo que a população negra compõe 40,6% dos casos mesmo representando apenas 20% da população da cidade. O relatório salienta que as ações desenvolvidas pela gestão para o enfrentamento da tuberculose foram “tímidas e insuficientes e não correspondem à realidade dos indicadores demonstrados”.
Maria Inês Bothôna Flores, usuária da região Leste e coordenadora adjunta do CMS, disse que na sua região o ano de 2022 marcou um período de retrocesso nos indicadores de saúde. “Aumentou o número de casos de tuberculose, sífilis e HIV. As unidades de saúde da região, que são terceirizadas, tiveram seu atendimento passado da Santa Casa para o Divina Providencia”, disse Maria Inês. “As pessoas lá, assim como em toda a cidade, não estão sendo atendidas nos seus encaminhamentos para exames e consultas especializadas”, criticou.
Sobre a Política de Saúde Mental, a análise salienta que Porto Alegre não tem “um planejamento com base territorial e epidemiológica para identificar os vazios assistenciais”, além de não implementar serviços próprios, em desrespeito às Conferências. O documento ressalta que, em comparação a 2021, em 2022 houve aumento de 20,5% na autoagressão, e de 25,8% na violência sexual. Adolescentes entre 15 e 19 anos são a população que mais busca atendimento nas Unidades de Saúde em decorrência da tentativa de suicídio, e predomínio das tentativas de suicídio em mulheres. Com isso, a análise destaca que a Política de Saúde Mental na cidade não garante o acesso a todas as ofertas previstas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), nem os princípios estruturantes do SUS, como universalidade, integralidade e equidade na organização dos serviços.
Em síntese, o parecer considerou haver um “abismo entre a análise apresentada com as metas estabelecidas para superação da realidade vivenciada das filas de espera, dos gargalos e vazios assistenciais e das barreiras de acesso e dos indicadores de saúde”. Por fim, conclui que “não foram atingidos os objetivos gerais de melhoria/aperfeiçoamento da gestão e das ações e serviços prestados à população, favorecendo também a participação e o controle social, previstos para a efetividade desse instrumento de planejamento no SUS”.