Eleições 2024
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5 de outubro de 2024
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16:18

‘Precisamos reinaugurar o diálogo e o que estamos fazendo é uma guerra. E guerra, ganha quem é mais idiota’

Por
Luciano Velleda
lucianovelleda@sul21.com.br
Milanez diz que as pessoas estão vivendo em nome das urgências e não estão pensando no que é importante, como o destino da vida. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Milanez diz que as pessoas estão vivendo em nome das urgências e não estão pensando no que é importante, como o destino da vida. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Um dos mais conhecidos ambientalistas do Rio Grande do Sul, Francisco Milanez esteve durante anos à frente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) como presidente, entidade em que agora continua atuando como diretor científico e técnico. Às vésperas da eleição que elegerá prefeitos e vereadores, o biólogo e arquiteto tem se dedicado a refletir sobre os impactos sociais da crise ambiental por outra perspectiva: a da saúde e da educação.

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Atualmente fazendo pós-doutorado em que pesquisa a Teoria da Complexidade é aplicada na saúde, Milanez tem feito a leitura da sociedade também pela ótica da educação, na qual tem formação com mestrado e doutorado. Ao avaliar o atual momento e a inserção da pauta ambiental na campanha eleitoral, diz que observa o cenário de duas formas. Inicialmente, argumenta que o mundo está vivendo um processo fascista e destaca o quanto os processos fascistas “surfam” na desgraça. “É interessante como eles destroem as condições de vida do povo e depois oferecem promessas óbvias”, pondera.

Para ele, as pessoas estão vivendo em nome das urgências e não estão pensando no que é importante. Nesse contexto, a melhor forma de “distrair” as pessoas é falar das urgências, como é o caso das consequências da enchente.

“A urgência talvez seja reconstruir a economia, reconstruir a sociedade e as casas, e a gente vai reconstruir igualzinho como estava antes para derrubar de novo”, critica. “Todo mundo que vive de urgências, mesmo que sejam artificiais, mas com a sensação de urgência de insegurança ou de faltar trabalho, geralmente não se dedica a pensar as coisas importantes, e a coisa importante é o destino do planeta, o destino da nossa vida. Só que ele não tem espaço diante das coisas urgentes. Então, ocupar as pessoas com desgraça é a melhor coisa para manipulá-las”, explica.

 

Em tempos em que o céu é coberto por fumaça, o ambientalista defende que as pessoas aprendam a pensar. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Em outro sentido e num caminho complementar, Milanez destaca o papel da educação na transformação social e elogia o trabalho de inclusão de alunos nas série iniciais no passado recente de Porto Alegre e do País. No plano federal, elogia a inclusão de milhares de jovens no ensino superior por meio do financiamento estudantil, do programa de cotas e outras ações afirmativas. “É a maior obra prima do futuro do Brasil”, acredita.

Apesar de apontar esses avanços, Milanez lamenta que o País ainda não tenha realmente transformado sua educação. Ao menos não como ele defende. Com a experiência de quem há mais de 30 anos trabalha com capacitação de professores, avalia que o avanço do ensino pressupõe agir junto aos professores, pois, segundo ele, não adianta ter o “mais lindo” propósito de educação se os professores estão enfraquecidos e descapacitados. Além da educação das crianças, ele enfatiza a necessidade de educar também os adultos, pois não há mais tempo para esperar as crianças crescerem para transformar o mundo. “Ninguém ensina ninguém a pensar. O Paulo Freire deu a receita. A gente faz as perguntas e as pessoas aprendem a pensar, porque se aprende a pensar, não se pode é ensinar a pensar”, afirma.

O especialista em educação defende a criação de um ambiente favorável para que as pessoas pensem, algo que, ele avalia, a escola ainda não consegue fazer do modo idealizado por Paulo Freire. A mesma questão se coloca com os adultos, sendo que estes já não estão mais na escola. “Tínhamos que fazer uma educação popular de adultos em massa. Não para fazer pensar como nós. Não é fazer catequese, é fazer perguntas para levar a reflexões. Se quiser ser de direita, tudo bem, só que seja com alguma razão. Hoje as pessoas são de direita e, às vezes, de esquerda, e não sabem o porquê. Quando não se sabe o porquê, a pessoa é uma besta sempre manipulada”, define, sem medir as palavras.

Milanez ainda acrescenta o mundo das redes sociais e a superficialidade da informação à sua análise. Por acreditar que é esse caldo cultural que leva uma sociedade a eleger governos autoritários e ditatoriais, ele defende a necessidade de construir cidadãos com pensamentos críticos e diferentes, porque tal diversidade é “a riqueza do ser humano”.

 

Francisco Milanez diz que as pessoas só valorizam a saúde e o meio ambiente depois da perda. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Com a vivência de quem esteve na presidência da Agapan, a mais antiga entidade ambientalista do Brasil, Francisco Milanez ressalta que a complexidade da agenda ambiental dificulta o entendimento da sociedade sobre a gravidade do tema. Sobra crítica também para quem tenta simplificar de modo simplório um tema complexo, pois acredita que isso tampouco ajuda a melhorar o cenário.

Fazendo referência à saúde, seu atual objeto de estudo, Milanez destaca que é justamente a saúde da população que têm sido impactada com os fenômenos climáticos extremos. Ainda assim, observa com certa naturalidade a dificuldade da população em relacionar a necessidade de preservar o meio ambiente com a sua própria vida. “As pessoas só dão bola pra saúde quando perdem.”

Ou quando tomam um susto muito grande, é outra constatação feita por ele. Caso contrário, diz que a tendência é manter hábitos não saudáveis mesmo tendo consciência dos problemas que podem causar. “As pessoas, em geral, seja sobre saúde ou meio ambiente, só valorizam depois da perda.”

No caso dos gaúchos, que têm sofrido ora com severas secas, ora com inundações destrutivas, ele credita a dificuldade de relacionar a crise climática com as escolhas eleitorais com a falta de capacidade de um pensamento mais profundo. Diante das urgências da vida, o ciclo vicioso gira mais uma vez e o cidadão é levado a construir novamente sua casa em área de risco.

“Quando o sentimento aflora como na enchente, aí vem o sistema te ajudar a interpretar e te manipula. Temos que fazer uma ruptura e acho que é uma educação muito amorosa, muito acolhedora, para romper com a cisão atual. Nós precisamos das pessoas que são bolsonaristas, elas são iguais a nós, só não tiveram a oportunidade de entender algumas coisas que a gente entendeu ou elas são igualmente burras como nós, só que por outro lado. A gente precisa reinaugurar o diálogo e o que estamos fazendo é uma guerra. E guerra, ganha quem é mais idiota.”


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