Eleições 2024
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19 de setembro de 2024
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14:22

Bairro mais populoso da Capital, Rubem Berta carece de vagas em creches, saneamento e segurança

Por
Bettina Gehm
bettinagehm@sul21.com.br
Arte: Matheus Leal/Sul21
Arte: Matheus Leal/Sul21

De olho nas eleições municipais, o Sul21 conversou com lideranças dos bairros mais populosos de Porto Alegre para entender quais são as principais demandas das comunidades. O especial Raio-X das periferias inicia nesta quinta, pelo bairro Rubem Berta. Nos próximos dias, falaremos sobre Restinga, Sarandi e Lomba do Pinheiro.

No bairro Rubem Berta, Zona Norte de Porto Alegre, não é difícil encontrar moradores carregando bandeiras de candidatos a prefeito e a vereador no período de campanha eleitoral. Apesar disso, a população local enfrenta a invisibilização por parte do poder público: falta acesso a serviços básicos, como saneamento e educação.

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De acordo com lideranças comunitárias do Rubem Berta, a falta de vagas em creches é um dos principais problemas do bairro. “A periferia em geral é formada por mães solteiras”, explica Rosalia Fraga, que coordena o jornal comunitário Fala Cohab. “A maior dificuldade é onde deixar os filhos. Além da falta de vagas em creches [municipais], as escolas conveniadas têm horários que abrangem períodos em que as mães estão trabalhando e não têm como buscar a criança”.

O Atlas de Vulnerabilidade Social do bairro, desenvolvido no curso de Geografia da UFRGS, mostra o percentual de mães chefes de família com pelo menos um filho menor de 10 anos em cada parte do Rubem Berta. Em geral, as regiões com maior percentual coincidem com as áreas onde há mais crianças de 0 a 4 anos que não frequentam a escola, também de acordo com o Atlas. Existem cinco escolas municipais de educação infantil no bairro.

Fonte: Atlas de Vulnerabilidade Social do bairro Rubem Berta / UFRGS

A educação em tempo integral e as creches representam uma oportunidade para que as mães possam buscar empregos bem remunerados. “Muitas mães acabam trabalhando por diária, numa lancheria mais próxima, porque daí têm tempo para ficar com os filhos. Se essas pessoas tivessem onde deixar as crianças, iriam buscar oportunidades melhores”, diz Rosalia.

Catarina Machado, integrante do Espaço Cultural Marlon e Marcelinho, lembra que muitas mulheres chefes de família perderam o emprego durante as enchentes. “São porteiras e zeladoras de empresas, auxiliares de limpeza, diaristas. Existe uma invisibilização desse público que é super importante para a economia da cidade”, ressalta.

No Rubem Berta, segundo as líderes comunitárias, há pouca oferta de trabalho bem remunerado. “Trabalho melhor, só mais longe. No bairro mesmo a maioria trabalha vendendo lanche, fazendo algum bico”, afirma Rosalia.

 

Saneamento básico e vagas na educação infantil são as principais demandas do bairro Rubem Berta. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

A parca oferta de creches – e de emprego – no Rubem Berta fica mais evidente por causa da densidade demográfica do bairro, o mais populoso da Capital. Eram 87,3 mil habitantes em 2010, conforme o Censo IBGE. O bairro é composto por diversos micro territórios chamados de vilas, além da Cohab Rubem Berta. O conjunto habitacional concentra cerca de 30 mil moradores em 39 núcleos e foi ocupado por invasão em 1987.

Nos últimos anos, mais pessoas têm ido morar no Rubem Berta. Um dos motivos é a remoção de famílias da Vila Nazaré, para ampliação do Aeroporto Salgado Filho, a partir de 2019. A comunidade passou a ser deslocada para o loteamento Irmãos Maristas. Além disso, as lideranças comunitárias citam a construção recente de condomínios compostos por grandes torres de apartamentos.

“O bairro vem de um processo histórico de urbanização e higienização”, explica Catarina. “Nosso povo negro foi levado do centro para os morros”.

Segundo ela, pode haver ainda uma subnotificação do número de moradores: as garagens dos edifícios da Cohab, ao invés de abrigarem carros, são transformadas em moradias e sublocadas. Segundo Catarina, os moradores de garagens não foram entrevistados pelo IBGE.

Cohab Rubem Berta concentra cerca de 30 mil moradores em seus 39 núcleos. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

A oferta de educação infantil não é o único serviço público que deixou de acompanhar o crescimento populacional do bairro. A população também reclama da falta de saneamento básico e coleta de lixo.

“Não tem tratamento de esgoto porque, quando invadiram a Cohab, os prédios não estavam acabados. Os próprios moradores fizeram o [sistema de] esgoto”, explica Rosalia. “A Prefeitura deu uma remendada, mas, se andar por aqui, vai ver o esgoto explodindo em todo lugar. Em alguns lugares, colocaram asfalto sem fazer o esgoto, o que causa alagamentos”.

Na Casa do Hip Hop Rubem Berta, Leandro Seré, mais conhecido pelo nome artístico Tiry BFN, aponta para a água suja que escorre pelo chão da parte externa do local. “Tá vendo ali, o esgoto correndo é da Martim [Estrada Martim Félix Berta]. Tem que sair em algum lugar, e sai aqui do lado, onde tem uma creche. Crianças saem pisando nos dejetos, a real é essa”.

O atlas desenvolvido na UFRGS explicita que algumas regiões censitárias do Rubem Berta chegam a ter 80% das pessoas vivendo em domicílios cujo abastecimento de água não provém de rede geral e o esgotamento sanitário não é realizado por rede coletora de esgoto ou fossa séptica.

Fonte: Atlas de Vulnerabilidade Social do bairro Rubem Berta / UFRGS

A situação é agravada pela falta de coleta seletiva. “Não tem lixeira na rua. A coleta seletiva passa só nas ruas principais, não adentra os núcleos [da Cohab]. A coleta de grandes volumes é só duas vezes por ano, agendada, a não ser por solicitação via 156”, explica Rosalia.

“Aqui tem um negócio que é muito ruim e não deveria ser normal”, destaca Leandro. “Estamos parados na rua, alguém vem e mete bala na outra pessoa, que cai e fica ali sangrando. Um monte de gente em volta falando ‘É isso aí, né? Amanhã é outro dia’. Mas não é normal um jovem de 20 anos cair ali, morrer, tomar um monte de tiro. A gente se adapta porque é o que tem para nós”.

A cena narrada pelo artista escancara a violência presente no bairro Rubem Berta. Rosalia, do jornal Fala Cohab, lembra que o ano de 2023 foi marcado por diversos toques de recolher em virtude de conflitos envolvendo o tráfico de drogas.

Cleusi Coelho, pai de Leandro e um dos primeiros moradores da Cohab, afirma que há cada vez mais crianças e adolescentes sendo aliciadas para o crime. “Se essa casa [do Hip Hop] estivesse funcionando cinco anos atrás, acolhido as crianças, nós não estaríamos dominados pelo tráfico. Aqui quem manda é o tráfico. De dois anos para cá, isso aumentou e vai aumentar ainda mais”.

Do outro lado, a violência policial. Leandro e o pai relatam que a polícia é truculenta com moradores e, ao mesmo tempo, representa uma segurança para os traficantes, que se sentem protegidos dos rivais.

“A gente tem o problema do crime, que faz o aliciamento, e tem o problema da polícia, que oprime os moradores. Para os moradores, os criminosos são a polícia, entendeu? Polícia corrupta”, diz Leandro. Ele conta que a Casa do Hip Hop surgiu como um tipo de resposta à realidade violenta em que os moradores do Rubem Berta estão inseridos. “Onde não tem cultura, o crime vira espetáculo”, resume.

“Meu irmão morreu há dez anos e eu optei por fazer uma revolução de maneira lícita. Procuro fazer a diferença para o meu bairro, usando o hip hop como ferramenta de inclusão social, de resgate”, explica o artista. 

A Casa do Hip Hop foi conquistada através do Orçamento Participativo, ferramenta que as lideranças comunitárias do Rubem Berta citam frequentemente como forma de conseguir melhorias para o bairro. O local é um antigo posto de polícia, concedido no ano passado pela Prefeitura de Porto Alegre ao Instituto Cultural Cohab É Só Rap.

Leandro Seré, mais conhecido como Tiry BFN, ao lado do pai, Cleusi Coelho, na Casa do Hip Hop Rubem Berta. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Apesar de já estar oferecendo um curso de inglês para a comunidade, a Casa ainda enfrenta obstáculos financeiros para realizar mais atividades. Além disso, quando o Sul21 visitou o local, a Casa estava sem abastecimento de água e a ligação de luz havia sido recém feita. “O projeto é uma praça aqui na frente, uma sala para atendimento jurídico, uma biblioteca com livros e computadores”, elenca Leandro. 

O imóvel é separado da rua por um portão bastante precário. “A gente tem que fechar isso aqui para pôr equipamentos de som – queremos fazer oficinas. Trabalhamos com edição de vídeo, o pessoal sabe fazer essas coisas, só que são aparelhagens caras. A partir do momento em que a gente colocar isso aqui, não dá para ser aquele portão que se empurra com a mão e abre”, explica o coordenador do projeto. Ele relata que, apesar de haver emendas parlamentares destinadas à Casa do Hip Hop, a burocracia envolvida no processo atrasa o recebimento dos valores.

“A água não chegou na Cohab, mas as pessoas abrigavam muita gente [de outros bairros] nos apartamentos”, relembra Rosalia sobre a enchente que atingiu o estado em maio. “Houve um aumento da população por causa das pessoas que perderam as casas no Sarandi e acabaram alugando ou dividindo casa com alguém aqui”.

Catarina, do espaço Marlon e Marcelinho, diz que a água invadiu as casas de fora do conjunto habitacional, que ficam em vilas. “As casas ficam em cima de um ‘valão’ e, com a enchente, a água aumentou. Havia crianças dormindo em colchões molhados. Os equipamentos de saúde não conseguiam atender a demanda nem de dentro do bairro nem das pessoas que chegavam de fora”, relata.

Mesmo que a catástrofe não tenha sido tão devastadora no Rubem Berta quanto em outros locais, ela deixou uma herança para o bairro. O bota-espera do Porto Seco, instalado no complexo cultural onde ocorrem os desfiles de escola de samba, acumula os rejeitos da enchente. Quando o Sul21 esteve no local, em 29 de agosto, presenciou pessoas selecionando objetos no meio do lixo e também carros chegando para descarregar mais material.

“Diziam que [o bota-espera] era um lugar passageiro, mas foi suspenso o contrato com o aterro de Gravataí”, afirma Rosalia. “No início o lixão era uma montanha, e depois que começaram a reclamar quase foi extinto. Quando suspenderam o contrato, voltou a aumentar e agora ninguém sabe o que vai acontecer”.

Bota-espera do Porto Seco. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

“Dar educação para o pobre de periferia não é vantagem para determinadas ideologias. É mais fácil a pessoa ter pouco conhecimento político, que é mais fácil de ludibriar”, diz Leandro. “Ou pior, uma pessoa que tem necessidade de um prato de comida e, por causa de um rancho, vota em alguém que vai passar quatro anos fazendo privatizações”.

Nas eleições municipais de 2020, Sebastião Melo (MDB) foi eleito no segundo turno, concorrendo com Manuela DÁvila (PCdoB). A diferença de votos entre os dois candidatos foi irrisória no Rubem Berta: Melo recebeu 196 votos a mais. O bairro concentra 17% dos votos no prefeito eleito e 19% dos votos em Manuela.

O Sul21 questionou as lideranças comunitárias sobre o que poderia causar essa divisão política no bairro. “O bolsonarismo estava muito forte naquela época, e todo pequeno comerciante se sente representado pelo bolsonarismo. Eles acabam puxando um pouco dos votos”, arrisca Rosalia. Ela relata que esse público, por vezes, rejeita a entrega gratuita do jornal Fala Cohab sob suspeita de que o veículo seja “esquerdista”. “O que iguala essa disputa é a quantidade de mulheres, que se identificaram mais com a Manuela”, afirma.

Cleusi atribui os votos em Melo a motivos semelhantes. “O cara pega uma gerência de mercado e acha que é rico, não pobre como nós. E o patrão começa a doutrinar todas as pessoas que precisam trabalhar: ‘olha, se tu não votar assim, vou ter que fechar a minha empresa e tu vai perder o emprego’”.


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