Política
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16 de abril de 2025
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17:04

Proposta de concessão do Dmae passa filé para o privado e deixa Prefeitura com osso, avalia professor

Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21

A Prefeitura de Porto Alegre deu início ao projeto de repasse à iniciativa privada de parte dos serviços de água e saneamento básico, atualmente sob responsabilidade do Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae). A proposta de concessão parcial, uma das principais promessas do governo Sebastião Melo (MDB), foi apresentada na segunda-feira (14) a vereadores da base aliada, durante reunião na Câmara Municipal.

Segundo o plano inicial, o modelo prevê a divisão dos serviços prestados pelo Dmae entre os setores público e privado. Ficam sob responsabilidade da iniciativa privada atividades como distribuição de água, ampliação das redes, coleta e tratamento de esgoto, além da cobrança das contas. Já a captação e o tratamento da água, a drenagem urbana e os sistemas de proteção contra cheias seguem sob gestão do poder público.

Para Arilson Wünsch, presidente do Sindiágua/RS, esse modelo coloca a empresa privada como uma intermediária entre a água tratada e a população. O poder público vai continuar responsável pela linha de produção, com os setores de captação e tratamento da água, mas a concessionária fica responsável pela comercialização, atendimento ao público, distribuição de água e emissão de contas.

Melo apresentou projeto à base aliada na segunda. Foto: Fernando Antunes/CMPA

Nesse cenário, a água tratada seria comprada pela concessionária junto ao Dmae, com valores definidos pela prefeitura. A tarifa final ao consumidor incluiria esse custo de aquisição, os gastos operacionais da empresa privada e uma margem de lucro. “O Dmae público que restou produz a água, vende para a empresa que adquiriu a concessão e ela vende para nós, população”, explica Arilson.

Com isso, o valor da conta de água, atualmente fixado pelo poder público, pode passar a ser estipulado pela empresa concessionária. Arilson avalia que a modificação no valor das tarifas é uma consequência esperada. Ele destaca que há a regulamentação dos valores, para não ser cobrado tarifas abusivas, mas que um aumento deverá acontecer.

“Hoje, na empresa pública você tem apenas o preço do serviço, do que é utilizado para produzir a água, não tem a questão do lucro. O lucro é uma consequência, se vai ter ou não vai ter. Na empresa privada, automaticamente tem a margem de lucro que eles colocam”, diz.

Arilson observa que o projeto de concessão parcial proposto pela Prefeitura ainda é pouco comum no país. Ele destaca que o modelo mais conhecido é o desenvolvido com a Corsan, onde houve a entrega total dos serviços de saneamento à iniciativa privada. Já a proposta da Capital se assemelha ao modelo adotado no Rio de Janeiro, com a concessão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae). “Esse modelo, se ele deu certo ou não, tá dando certo ou não, não há ainda um diagnóstico final. Até porque o Cedae também é uma privatização nova. Mas o que aconteceu lá e o que vai acontecer aqui, é a população pagar um pouco mais caro”, conclui.

Na divisão dos serviços proposta no projeto, além da comercialização da água, a concessionária também seria responsável por serviços operacionais, como o conserto de vazamentos, a expansão da rede e o manejo do esgoto. Ao poder público caberia manter o gerenciamento dos sistemas de proteção contra cheias.

Para o professor Aragon Érico Dasso Júnior, da Escola de Administração da UFRGS e especialista em administração pública, o modelo proposto favorece o setor privado ao transferir os serviços mais lucrativos. “É como se eu tivesse ali um pacote – vou fazer uma figura de linguagem – tenho um pacote onde eu tenho uma casa de carnes, vendo carnes nobres e carnes de segunda, então tenho uma parte em que eu ganho mais e uma parte em que eu ganho menos, em que a margem de lucro é menor. O governo está transferindo o filé, a melhor parte, para o setor privado e tá ficando com a parte que é mais o garrão, o osso do processo”, compara.

A ausência de informações públicas sobre o projeto é, na avaliação do professor Aragon, um dos principais motivos de preocupação. Até o momento, o texto final da proposta não foi divulgado, e muitos pontos seguem indefinidos. Entre eles, estão o formato da concessão, que pode ser uma Parceria Público-Privada (PPP) ou em modelo de concessão comum, além do prazo de validade do contrato.

Aragon destaca que o governo municipal sinaliza a intenção de estabelecer uma concessão com prazo de 30 anos, o que comprometeria sete mandatos e meio de futuras gestões. “Quando há uma concessão público-privada, tu será consumidor cativo daquela empresa por 20 anos, 30 anos. O serviço de abastecimento de água é um monopólio, quando esse monopólio é público tu tem uma relação com o poder público, tu tem a relação do voto para mostrar insatisfação, quando o monopólio é privado tu é escravo daquela relação”, diz.

Outro ponto ainda indefinido é o futuro dos servidores públicos que atuam nos setores do Dmae que seriam repassados à concessionária. Edson Zomar, diretor do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa), acredita que os profissionais deverão ser realocados para áreas do Dmae que permanecerão sob a gestão pública ou outros setores da administração municipal.

“Nós não sabemos com clareza, isso não tem sido colocado. O que tem sido colocado, que é uma coisa óbvia, é que não pode ser demitido os servidores. Mas com certeza, se na medida que essas áreas forem transferidas para o privado, e a gente vai lutar para que isso não aconteça, eles não serão servidores que vão trabalhar para a empresa privada, eles serão realocados em outras áreas, serão adaptados”, pontua.

Na avaliação de Aragon, o impacto para o funcionalismo público será significativo. “Por mais que o governo sinalize que haverá estabilidade dos servidores do Dmae, que estão em uma autarquia, na prática, esses servidores entrarão num quadro de extinção em relação às suas atribuições originais”, analisa.

O diretor do Simpa, Edson Zomar, destaca que a proposta apresentada pelo prefeito Sebastião Melo ainda se encontra em fase inicial de construção. Segundo ele, o governo está em um processo de convencimento interno, dialogando com a base aliada e parceiros antes de formalizar o projeto. “É um trâmite que ainda deve ter um período de debate, até para respeitar a legislação ambiental e que dá andamento ao que a gente chama de processo de privatização, porque a concessão mesmo parcial nada mais é do que uma privatização disfarçada e facilitada”, diz.

Para o professor Aragon, o cenário de incertezas se deve ao fato de o governo Melo ainda estar medindo o grau de apoio na própria base aliada, que pode variar conforme os termos do projeto. “Não me parece que o modelo de concessão esteja fechado. Acho que o governo ainda não lançou o projeto porque há muitas dúvidas sobre o modelo e do que a base aliada concorda. Do contrário, já teríamos o projeto tramitando”, avalia.


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