Política
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5 de janeiro de 2025
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09:15

‘Eu sou a líder do PT e sou uma travesti’: Natasha Ferreira fala dos desafios para a legislatura que se inicia

Natasha Ferreira, vereadora eleita de Porto Alegre. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Natasha Ferreira, vereadora eleita de Porto Alegre. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

A legislatura que iniciou nesta quarta-feira (1º) na Câmara Municipal de Porto Alegre é histórica, pois conta com as duas primeiras pessoas trans eleitas vereadoras no município. No caso de Natasha Ferreira (PT), ela é também a primeira travesti a liderar uma bancada na Casa. Ao Sul21, a vereadora falou sobre os desafios de ocupar esse posto e de defender os direitos humanos em meio ao conservadorismo do atual mandato.

Leia a entrevista na íntegra:

Sul21: O que você espera do mandato sendo líder da bancada do PT?

Natasha: É uma honra liderar o PT, que é o partido do presidente Lula e da ex-presidenta Dilma. Nossa principal função na cidade é reorganizar a esquerda como um campo. Acho que o PT precisa de fato atualizar a agenda da luta de classes. Acho que nós estamos nas bases, mas a gente precisa entender melhor como elas estão funcionando e o que elas de fato esperam. O PT fez 14 mil votos na legenda em Porto Alegre, é fundamental que nossa bancada expresse os 42% que fizemos nas eleições. Além dos que não foram votar, 42% votaram contra a atual gestão; a gente representa esse anseio por mudança política e por gestão popular. É fundamental a rearticulação, para dentro da Câmara – que sabemos ser um jogo mais complexo – mas também fazer com que o povo volte a se identificar com o PT desde a base, desde o movimento estudantil.

Sul21: Como se deu a escolha da liderança da bancada petista na Câmara?

Natasha:  A nossa renovação do PT, que são três vereadores novos – eu, Juliana [de Souza] e Alexandre [Bublitz] – expressa um novo momento do partido, de uma transição geracional. Acho que, aqui na Câmara, a escolha se deu por consenso de o PT ter uma nova cara. O partido sabe como foi difícil uma pessoa trans chegar a um espaço de tomada de decisão. A gente sabe que a Câmara não nos vê com bons olhos. Acho que liderar o PT sendo uma travesti mostra o processo de renovação e de compromisso político com as defesas históricas do PT. Uma delas sempre foi a defesa do movimento LGBT. 

Sul21: Quais os desafios de estar à frente da bancada sendo a primeira pessoa trans a ocupar esse lugar?

Natasha: O principal desafio é a pauta dos direitos humanos. Quando se fala de cidade, na perspectiva de uma população que pouco tem acesso à cidade – as pessoas trans e travestis –, direitos humanos é acesso à água, à casa, posto de saúde, vaga na creche. Definitivamente, você acessar o espaço público e ser respeitada. Acho que isso fala muito sobre a pauta trans, mas também comunicar ao povo que ao ser uma travesti na liderança do PT com mandato de vereadora, eu não falo somente sobre as pessoas trans. Eu quero falar sobre a cidade, porque as pessoas trans vivem a cidade. É nessa cidade sem emprego, com aumento da violência, onde tudo está sendo privatizado, que a gente precisa fazer uma disputa. Mas não uma disputa nichada; é uma disputa de estrutura, de cidade, de orçamento. Para nós do PT, as pessoas LGBT estão dentro do orçamento para a cidade. Acho que esse gesto é fundamental, ainda mais entendendo que o orçamento de cidade vai ser debatido no contexto todo. Ser uma líder e pessoa trans é fundamental para fazer esse debate ser mais amplo.

Sul21: E o que esse posto representa para você?

Natasha: Ser líder do PT hoje, além de toda essa responsabilidade de ser o partido do presidente, ter o legado petista a nível nacional e aqui no município os governos Olívio [Dutra] e Tarso [Genro], acho que também é fruto de uma luta de anos. Cito em especial o Célio Golin, do grupo [ONG] Nuances, que é um lutador histórico do PT, um homem gay que fez uma das lutas mais generosas do partido para que os LGBTS estivessem aqui. Tem muita gente que já se foi e que lutou para que pessoas como eu pudessem estar nesse lugar. Essa conquista não é minha, é uma celebração coletiva, porque nós vivemos em coletividade. […] Além da responsabilidade de ser olhada como uma pretensa pessoa-erro – por conta de ser uma pessoa trans, eu sei que sou muito mais vigiada, desde já, do que os outros líderes de bancada; por ser uma travesti e estar liderando a maior bancada da Câmara nesse primeiro ano – tem esse acúmulo histórico. Acho que isso é muito mais simbólico e me deixa mais confortável para dizer eu sou a líder do PT e sou uma travesti. Existe um acúmulo político histórico do movimento LGBT com o PT, mas que não tinha se expressado em nenhuma figura. Acho que hoje eu consigo ser essa figura, mas que faz um brinde a um passado de muita luta e muita história.

Sul21: Como você espera que seja esse ano com a com a vereadora Comandante Nádia na presidência da Câmara, aliada ao prefeito Melo e conhecida por seu conservadorismo?

Natasha: Na função de presidente da Casa, a vereadora Nádia não vai ter a condição de ser a vereadora que era antes. O presidente ou a presidente da Câmara acaba ficando numa função muito burocrata. Por óbvio, ela tem todos os dispositivos da Casa. Mas acho que, na função de presidente, tem questões de regimento que não podem ser atropeladas. A [cerimônia de] posse já foi um ponto que mostrou as nossas divergências com as posições políticas – desde a fala do prefeito Melo. Espero que, na presidência, a vereadora possa ser o mais constitucionalista possível e fazer com que a Casa funcione. Nos últimos anos, a Câmara tem virado um stand up. As pessoas fazem apenas falas, recortes para suas bases. Nós, da oposição, queremos debater as coisas na sua raiz. Quando se fala de saúde pública, por exemplo, não é só ir lá fazer um vídeo dizendo que não tem médico. A gente tem que saber qual o orçamento da saúde, se ele está sendo aplicado, se esse recurso está sendo para o povo. Acho que aí vai entrar o plano diretor, onde teremos uma disputa mais ideológica dentro da Casa, de quem quer o setor público e quem quer a terceirização. Mas esperamos que a presidência da Câmara seja a condutora da democracia e nunca fechando espaços da Casa ou barrando pedidos que nós, da oposição, podemos fazer, desde audiências públicas, moções e notas de repúdio. É fundamental para que o sistema democrático seja respeitado.

Sul21: Como a oposição tem se articulado quanto aos muitos projetos de retirada de direitos das mulheres e da população LGBT que tramitam na câmara?

Natasha: Temos tido muitas reuniões da oposição. Somos 12, um terço da casa. A gente tem conversado sobre vários projetos – inclusive o pacote que vai ser votado na segunda-feira sobre a privatização do Dmae e o fim da Fasc. Nós temos construído consenso dentro da oposição. O PT, o PSOL e o PCdoB nem sempre têm as convergências necessárias, mas a gente já entendeu, do ponto de vista tático, que hoje nós 12 somos o bloco que precisa fazer frente aos ataques contra o funcionalismo público e as minorias. Falando de LGBTs, de mulheres, de pessoas negras, a oposição tem sido – desde a legislatura passada – o grande ponto de referência e de luta para barrar esses horrores.

Agora, a gente sabe que para mexer na lei orgânica eles precisam de 24 votos e têm só 23. Nós temos 12, o número de vereadores para abrir CPI. A gente agora consegue competir com esses ataques de forma melhor.


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