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25 de julho de 2024
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07:45

Central nos últimos debates eleitorais e castigado pela enchente, 4º Distrito tem futuro incerto

Por
Luís Gomes
luisgomes@sul21.com.br
Região do bairro Navegantes, no 4º Distrito, foi uma das mais impactadas pelos alagamentos. Foto: Luiza Castro/Sul21
Região do bairro Navegantes, no 4º Distrito, foi uma das mais impactadas pelos alagamentos. Foto: Luiza Castro/Sul21

O 4º Distrito de Porto Alegre, composto pelos bairros Floresta, Navegantes, Humaitá, São Geraldo e Farrapos, durante décadas foi objeto de discussões sobre possíveis projetos de revitalização. O tema ganhou peso na gestão do prefeito José Fortunati (então PDT, 2010-2016), que contratou, junto a uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Masterplan da região. Desde então, o 4º Distrito esteve presente nas campanhas à Prefeitura da Capital e nas gestões de Nelson Marchezan Júnior (PSDB, 2017-2020) e Sebastião Melo (MDB, 2021-presente), sendo alvo também de propostas de adversários, como Manuela D’Ávila (PCdoB), em 2020.

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Em 2022, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprovou o Programa +4D de Regeneração Urbana do 4º Distrito, uma das principais iniciativas da gestão Melo, com o objetivo de facilitar investimentos e atrair novos moradores aos bairros. Já em maio deste ano, a região foi uma das mais afetadas pelas enchentes, com pessoas chegando a ficar desabrigadas por mais de um mês e, em alguns casos, permanecendo nesta condição até o momento. Para entender o cenário no qual a região chega a mais uma disputa pela Prefeitura de Porto Alegre, o Sul21 conversou com o Secretário do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm, e com as professores Vanessa Marx e Heleniza Avila Campos, da UFRGS.

Uma das metas do Programa +4D era ao menos triplicar o número de economias – endereços ocupados e ativos — na região. O Plano Diretor vigente da cidade prevê uma densidade de 100 a 150 economias por hectare, mas a ocupação atual é de 32.9 econ/ha, segundo a Prefeitura. De acordo com dados do Censo de 2010, do IBGE, os bairros, somados, têm uma população de cerca de 55 mil pessoas — os dados de população por bairro do Censo de 2022 ainda não foram divulgados. Para incentivar o adensamento, o programa prevê a delimitação de uma zona prioritária de 267 hectares — inclui o bairro São Geraldo, o entorno da Farrapos da Estação do Trensurb até o viaduto da Conceição e as proximidades da Rodoviária –, em que serão oferecidos descontos substanciais no solo criado, que é o direito de construir, e será aumentado o índice construtivo, o que significa o aumento na altura permitida para construção.

Para determinar o nível de benefício a ser concedido, foi estabelecido um sistema de pontos que varia de acordo com a atividade do empreendimento (residencial, comercial, de serviço ou industrial), dos parâmetros urbanísticos do projeto, enquadramentos específicos e utilização de técnicas e práticas sustentáveis. Também são oferecidos incentivos de Imposto Sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) para quem se instalar no 4º Distrito. Em 2023, a Prefeitura de Porto Alegre apresentou ainda um projeto de lei para aumentar a zona de incentivos fiscais na região do Programa +4D, com o objetivo de ampliar as áreas que contam com a concessão de isenção, por até 15 anos, do IPTU e do ITBI.

Para o secretário Germano Bremm, que comanda a Smamus desde a gestão Marchezan, o Programa +4D tem o objetivo de incentivar a habitação para que ela acompanhe a “pujança econômica, de entretenimento e tecnologia” que se desenvolveu na região nas últimas décadas. “Como é uma região industrial e tem uma compatibilização com Patrimônio Histórico, tu tinha uma série de dificuldades do ponto de vista legal de implementação de residências ali para atender essa pujança que estava acontecendo meio naturalmente. Então, a gente faz o programa, o programa em parte atende a essa necessidade premente de produzir a habitação”, diz.

Vanessa Marx, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS, coordenadora do Grupo de Pesquisa Sociologia Urbana e Internacionalização das Cidades (GPSUIC) e Pesquisadora do Observatório das Metrópoles-Núcleo Porto Alegre, diz que o Programa +4D surge para aproveitar vocações dos bairros que despertaram a partir de iniciativas pontuais, como a instalação de empresas do setor da economia criativa na região, bem como do chamado polo cervejeiro, e a chegada de bares e casas noturnas. Contudo, ela avalia que, na raiz do programa há o equívoco de priorizar a atração de investimentos antes de se enfrentar vulnerabilidades históricas da região, como a questão dos alagamentos.

Ela destaca que, em 2019, o Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS) desenvolveu, em antecipação à revisão do Plano Diretor — que deveria ocorrer no período e ainda não saiu do papel –, Planos Populares de Ação Regional (PPAR) para todas as regiões de planejamento (RPs) da cidade. Ao acompanhar as reuniões das RP1 e RP2, que abarcam os bairros do 4º Distrito, a professora percebeu que a questão dos alagamentos frequentes já aparecia como um dos principais problemas citados pelos moradores.

“Eu penso que esse projeto se atentou muito mais para a questão dos novos empreendimentos que poderiam ter na área do que para a questão de como a gente trabalha a drenagem, saneamento, espaço público, moradia social, o que deveria vir antes. O que se vê é essa inversão de prioridades, porque, na verdade, se começou pela questão dos benefícios fiscais, ou seja isenção, em vez de começar com o que tem nessa área e o não foi feito ainda. Na apresentação do projeto, várias vezes eu assisti e participei, falava-se sempre em densificar a área, a questão dos vazios. A gente fica pensando: ‘agora, tem que ser tudo repensado com as enchentes’”, diz Vanessa, acrescentando ainda que o próprio Escritório de Resiliência da Prefeitura já tinha a pauta das inundações como central para a região em 2016.

Para a professora, a concessão de benefícios fiscais, inclusive, dificulta a resolução dos problemas, uma vez que reduz a arrecadação de tributos que deveriam ser revertidos para as obras necessárias. “Esse tema já vem há muito tempo. E, claro, com essa questão das mudanças climáticas, acentuou-se a gravidade. Mas é uma coisa que a gente já convivia com isso,e as comunidades vulneráveis mais ainda. Então, acho que, por exemplo, não é possível ter isenção de IPTU e isenção de ITBI para a construção enquanto não se fizer melhorias sociais e socioambientais, porque é dinheiro que a prefeitura está deixando de arrecadar”, afirma.

Ne mesma linha, Heleniza Avila Campos, professora do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (Propur) e também pesquisadora do Observatório das Metrópoles, avalia que o +4D não deu a devida atenção às comunidades de baixa renda que habitam a região, que seriam ao menos 19 em situação irregular e somariam aproximadamente 2.000 famílias com ameaça de despejo e remoção, tendo sido voltado para priorizar interesses do mercado imobiliário, com a valorização da verticalização.

“A proposta já não apresentava muitos avanços, em virtude de propostas pouco eficientes, inclusive sobre o real retorno econômico para o próprio mercado imobiliário, além da desconsideração de sua complexidade, da diversidade de moradores e tipologias habitacionais. A região possui uma história importante para a cidade e uma localização privilegiada em relação à mobilidade metropolitana para o norte (Trensurb e BR-116), para leste (RS-448) e para oeste (RS-290). Do ponto de vista intraurbano, a área está muito próxima ao Centro Histórico e a bairros populosos e dinâmicos da cidade — Moinhos de Vento, por exemplo –, mas essas relações não aparecem de forma clara nas propostas do plano”, diz Heleniza.

Germano Bremm afirma que o +4D, em sua concepção, já tinha previsto um eixo de transformação urbana e de investimentos públicos no território, o que levou a Prefeitura a buscar financiamento para realizar investimentos de qualificação da drenagem e “trazer a necessária segurança para quem quiser empreender ali”. Antes desses investimentos saírem do papel, a enchente de maio maximizou essa necessidade, reconhece o secretário.

“O que que nós fazemos a partir disso? A gente tenta, com o Escritório da Reconstrução, antecipar e acelerar essas obras previstas no sentido de qualificar a drenagem da região, mas especialmente corrigir as falhas do sistema de proteção, para gerar essa segurança necessária e a gente retomar esse processo de crescimento que estava acontecendo no 4º Distrito. Hoje, a gente sabe que há uma insegurança em relação a tudo que aconteceu, muitos investimentos feitos ali por empresários, e por isso o poder público está num esforço hercúleo no sentido de organizar, de contratar projetos, de fazer orçamento e captar recurso para efetivamente produzir essas melhorias, prioritariamente ao sistema de proteção, mas também tudo que envolve a drenagem do 4º Distrito”, afirma.

O secretário destaca que, conforme cálculos do DMAE, são necessárias obras emergenciais de R$ 510 milhões para recuperar e qualificar o sistema de proteção contra as cheias e o sistema de drenagem da cidade, mas não há uma previsão de quanto é necessário investir por bairro. No entanto, ele pontua que, por se tratar de um sistema integrado, também não seria possível avaliar a proteção de cada bairro de forma isolada. “Esse valor é o que a gente estima de obras efetivamente de recuperação. Nós estamos num esforço, já contratamos, através do DMAE, R$ 5 milhões em projetos, anteprojetos executivos e laudos técnicos para a gente produzir isso, porque são obras de engenharia complexas”, afirma.

Bremm diz que, no momento, não é possível estimar o tempo de duração das obras, mas ressalta que há um “esforço concentrado e voltado ao 4º Distrito” para dar segurança a quem deseja investir e morar na região. “Para a gente poder dar continuidade a essas políticas criadas no programa +4D e efetivamente levar população para aquele território, que já é um território próximo ao Centro, já é um território ocupado e tem uma perspectiva de crescimento de população naquela região”, diz.

Questionado se era possível apresentar dados sobre o efeito das medidas previstas pelo Programa +4D na habitação, o secretário explicou que a Prefeitura não possui esse número, uma vez que isso necessitaria de levantamentos do IBGE que ainda não estão disponíveis. “Tivemos algumas propostas de novos empreendimentos ali, muitos ajustes de atividades e edificações já na perspectiva da nova legislação”, diz.

Entre os censos de 2010 e 2022, a população de Porto Alegre caiu de 1.409.351 para 1.332.570 habitantes, o que significa uma redução de 5,4% na população. Como já citado, a população dos bairros que compõem o 4º Distrito era de cerca de 55 mil em 2010 e ainda não há dados referentes ao Censo de 2022, realizado antes da aprovação do +4D. A partir dos dados de 2022 por setor censitário — que não são precisos com relação ao desenho dos bairros –, o pesquisador André Augustin, do Observatório das Metrópoles, estimou que a população da região era de cerca de 50 mil pessoas no último Censo. Além disso, Augustin observou alto grau de desocupação nos imóveis da região (22,5%), acima da média da cidade (18,7%).

O secretário Germano Bremm reconhece que a enchente afeta os planos da Prefeitura com relação ao +4D e também pontua que as eleições municipais de 2024 terão o papel de definir o futuro da região. Contudo, independente do pleito e dos investimentos em obras de drenagem e proteção que deverão ser feitos, ele destaca que a Prefeitura encaminhou à Câmara de Vereadores um projeto de lei que busca ampliar os incentivos para que empreendimentos e moradias se instalem na região até o final do ano, quando se encerra a gestão do prefeito Melo. A medida tem o objetivo de reverter a tendência de as pessoas se afastarem da região, justamente por ter sido uma das áreas mais afetadas pelas enchentes.

“A gente isenta na totalidade a outorga onerosa, o solo criado, para quem vier a se implantar ali, especialmente porque se tem agora esse ambiente de insegurança no território, uma fuga de investimentos natural em função da insegurança. A gente posiciona no sentido de isentar a outorga onerosa e o solo criado. Isso é uma proposta que está na Câmara de Vereadores para o 4º Distrito. Todo novo empreendimento que quiser se instalar lá, se precisar se comprar potencial construtivo, vai ser isento até o período do final do ano”, afirma.

A professora Heleniza Campos avalia que o cenário pós-enchente vai exigir da Prefeitura um maior diálogo com a população da região, o que ela considera que não foi efetivo durante a elaboração do +4D.

“O tratamento da Prefeitura durante as enchentes, não apenas no 4º Distrito, mas nos demais bairros afetados, demonstra a ausência de olhar sobre o futuro da cidade, sem diálogos participativos com os grupos sociais que efetivamente foram impactados e com pouca atenção aos avisos sobre as dificuldades técnicas pela má gestão do funcionamento do sistema de contenção de enchentes. Tal postura só coloca dúvidas sobre o que deverá ocorrer daqui para a frente para a população que, num primeiro momento, busca se afastar de novos riscos e das áreas mais atingidas. É possível uma retração de investimentos no setor imobiliário, mas como se trata de área importante para a cidade, a médio e longo prazos, poderá ser reincorporada nos planos de investimento da cidade. Mas, para isso, é preciso diálogo com os diversos atores sociais, definição claras de estratégias de planejamento e transparência nas ações”, diz.

Ela também avalia que, com o passar do tempo, a perda de interesse na região facilita que os interesses do mercado imobiliário avancem, uma vez que o afastamento das pessoas pode levar à desvalorização de imóveis e a uma concentração de propriedades nas mãos do mercado. “É muito provável que, com o tempo, haja uma recomposição desses interesses, não apenas pelo acesso aos terrenos que se desvalorizaram e foram desocupados pelas classes de menor renda — inclusive com a proposta das ‘cidades temporárias’. No entanto, a população precisa ficar atenta sobre as condições físicas e funcionais do sistema de contenção de enchentes, pois eventos semelhantes podem voltar a acontecer”, diz Heleniza.

Nesta terça-feira (22), o jornal Zero Hora publicou um artigo da arquitete e urbanista Barbara Perin Remussi, associada ao Instituto de Estudos Empresariais (IEE), defendendo que o município facilite a densificação dos bairros e a verticalização das áreas de risco no processo de reconstrução pós-enchente. Além disso, defende que a revisão do Plano Diretor, cuja tramitação foi praticamente paralisada pela enchente, deve seguir a linha da desregulamentação que conduzia os debates na Prefeitura antes do evento climático extremo. “Não seria necessário que o Estado ditasse realocações de moradia”, diz trecho destacado do artigo.

A professora Vanessa Marx avalia que manter esse rumo para as discussões da cidade e do 4º Distrito seria “catastrófico”, porque este momento requer mais regulação e uma atuação mais forte do Estado. “As mudanças climáticas estão vindo aí e o que a gente precisa realmente é de alguém que regule isso. Quer dizer, não dá para deixar na mão no mercado. E eu acho que o mercado, as grandes incorporadoras, têm que se dar conta do bem comum. Ou seja, o que afeta a todos. Tem que ter uma unidade de pensamento, onde as pessoas pensem, por exemplo, como a gente vai revitalizar uma área que é extremamente vulnerável. Um risco que envolve essa ideia de desregulamentar é fragmentar ainda mais o território. Por exemplo, a gente pode ter zonas que sejam melhores que outras, dependendo do investimento”, diz.


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